CARTA ENCÍCLICA
HAURIETIS AQUAS
DO SUMO PONTÍFICE PAPA PIO XII
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS PATRIARCAS, PRIMAZES,
ARCEBISPOS E BISPOS E OUTROS ORDINÁRIOS DO LUGAR
EM PAZ E COMUNHÃO COM A SÉ APOSTÓLICA
SOBRE O CULTO DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
IV
NASCIMENTO
E DESENVOLVIMENTO PROGRESSIVO
DO
CULTO AO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
3) Aprovação pontifícia da
festa do Coração Sacratíssimo de Jesus
53.
Prova evidente de que este culto promana das próprias fontes do dogma católico
dá-a o facto de haver a aprovação da festa litúrgica pela Sé Apostólica precedido
a aprovação dos escritos de Santa Margarida Maria.
Na
realidade, independentemente de toda revelação privada, e secundando só os
desejos dos fiéis, por decreto de 25 de Janeiro de 1765, aprovado pelo nosso predecessor
Clemente XIII, a 6 de Fevereiro do mesmo ano, a Sagrada Congregação dos Ritos
concedeu aos bispos da Polónia e à arquiconfraria romana do Sagrado Coração de
Jesus a faculdade de celebrar a festa litúrgica.
Com
esse acto, quis a Santa Sé que tomasse novo incremento um culto já em vigor,
cujo fim era "reavivar simbolicamente a lembrança do amor divino"[1]
que levara o Salvador a fazer-se vítima de expiação pelos pecados dos homens.
54.
A essa primeira aprovação, dada em forma de privilégio e limitadamente,
seguiu-se, a distância de quase um século, outra de importância muito maior, e
expressa em termos mais solenes.
Referimo-nos ao decreto da Sagrada Congregação
dos Ritos de 23 de Agosto de 1856, anteriormente mencionado, com o qual o nosso
predecessor Pio IX, de imortal memória, acolhendo as súplicas dos bispos da
França e de quase todo o orbe católico, estendeu a toda a Igreja a festa do
coração sacratíssimo de Jesus, e prescreveu a sua celebração litúrgica.[2]
Esse
facto merece ser recomendado à lembrança perene dos fiéis, pois, como vemos
escrito na própria liturgia da festa, "desde então o culto do sacratíssimo
coração de Jesus, semelhante a um rio que transborda, superou todos os
obstáculos e difundiu-se pelo mundo todo".
55.
De quanto até agora expusemos, veneráveis irmãos, aparece evidente que é nos
textos da Sagrada Escritura, na tradição e na sagrada liturgia que os fiéis hão-de
encontrar principalmente os mananciais límpidos e profundos do culto ao coração
sacratíssimo de Jesus, se desejam penetrar na sua íntima natureza e tirar da
sua piedosa meditação alimento e incremento do fervor religioso.
Iluminada,
e penetrando nela mais intimamente mediante esta meditação assídua, a alma fiel
não poderá deixar de chegar àquele doce conhecimento da caridade de Cristo no
qual se resume toda a vida cristã, tal como, instruído pela própria
experiência, o ensina o Apóstolo:
"Por
esta causa dobro meus joelhos ante o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo..., para
que, segundo as riquezas de sua glória, vos conceda por meio do seu Espírito
serdes fortalecidos em virtude no homem interior, e para que Cristo habite pela
fé nos vossos corações, estando vós arraigados e cimentados em caridade; a fim
de que possais conhecer também aquele amor de Cristo que sobrepuja todo
conhecimento, para serdes plenamente cumulados de toda a plenitude de
Deus"[3].
Dessa
plenitude universal é precisamente imagem esplêndida o Coração de Jesus Cristo:
plenitude da misericórdia própria do Novo Testamento, no qual "Deus nosso
Salvador manifestou a sua benignidade e amor para com os homens"[4];
pois "Deus não enviou seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas sim
para que, por meio dele, o mundo se salve"[5].
4) Espiritualidade e
excelência do culto ao coração sacratíssimo de Jesus
56.
Desde quando promulgou os primeiros documentos oficiais relativos ao culto do
coração sacratíssimo de Jesus, tem sido constante persuasão da Igreja, mestra
da verdade para os homens, que os elementos essenciais desse culto, quer dizer,
os actos de amor e de reparação tributados ao amor infinito de Deus para com os
homens, longe de estarem contaminados de materialismo e de superstição,
constituem uma forma de piedade em que se põe plenamente em prática aquela
religião espiritual e verdadeira que o próprio Salvador anunciou à samaritana:
"Já chega o tempo, e já estamos nele, em que
os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade"[6].
57.
Lícito não é, portanto, afirmar que a contemplação do coração físico de Jesus
impede de chegar ao amor íntimo de Deus e retarda o progresso da alma no
caminho que leva à posse das mais excelsas virtudes.
A
Igreja repele completamente esse falso misticismo, como, por boca do nosso
predecessor Inocêncio XI, de feliz memória, condenou a doutrina dos que
divulgavam que não devem (as almas desta via interior) fazer actos de amor à Santíssima
Virgem, aos santos ou a humanidade de Cristo, porque, sendo sensíveis estes
objectos, o amor que a eles se dirige também há-de ser sensível.
Nenhuma
criatura, nem mesmo a Santíssima Virgem e os santos, deve penetrar no nosso
coração, porque só Deus quer ocupá-lo e possuí-lo".[7]
Os
que assim pensam são, naturalmente, de opinião que o simbolismo do Coração de
Cristo não se estende a mais do que ao Seu amor sensível, e que, por
conseguinte, não pode constituir novo fundamento do culto de latria, culto
reservado só àquilo que é essencialmente divino.
Ora,
interpretação semelhante das sagradas imagens, todos vêem que é absolutamente
falsa, porque lhes coarcta injustamente o significado.
Contrária
a isso é a opinião e o ensino dos teólogos católicos, e entre eles São Tomás
assim escreve:
"Às
imagens tributa-se culto religioso, não consideradas em si mesmas, quer dizer,
enquanto realidades, mas sim enquanto imagens que nos levam até Deus encarnado.
O
movimento da alma para a imagem enquanto imagem não pára nesta, mas tende ao
objecto por ela representado.
Por
conseguinte, do fato de tributar culto religioso às imagens de Cristo não
resulta um culto de latria diverso nem uma virtude de religião diferente".[8]
À
própria pessoa do Verbo chega, pois, o culto relativo tributado às suas
imagens, sejam estas as relíquias da sua acerba paixão, seja a imagem que
supera todas em valor expressivo, quer dizer, o coração ferido de Cristo
crucificado.
PIO PP. XII.
(Revisão da versão
portuguesa por AMA)
Notas:
[1]
Cf. A. Gardellini, Decreta authentica, 1857, n. 4579, t. III, p.174.
[2]
Cf. Decr. S. C. Ritum em N. Nilles, De rationibus festorum Sacratissimi Cordis
Iesu et purissimi Cordis Mariae, 5e ed. Innsbruck,1885, t. I, p.167.
[7]
Inocêncio XI, Const. Ap. Coelestis Pastor, (19 de Novembro de 1687): Bullarium
Romanum, Romae 1734, t. VIII, p. 443.
[8] Summa theol., II-II, q. 81, a. 3; ed. Leon., t.
IX,1897, p.180.