Leitura espiritual
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A Cidade de Deus |
Vol. 1
CAPÍTULO
XX
Não
há autoridade que permita aos cristãos, seja por que razão for, que
voluntariamente acabem com a própria vida.
Não
é sem razão que é possível encontrar nos santos livros canónicos qualquer passo
em que se preceitue ou se permita darmo-nos a morte, quer para evitarmos algum mal,
quer mesmo para conseguirmos a imortalidade. Pelo contrário, devemos
considerar-nos disso proibidos por este preceito da lei: não matarás [i],
sobretudo por se não ter acrescentado «o teu
próximo», tal como o que se diz ao proibir-se o falso testemunho:
Não
darás falso testemunho contra o teu próximo [ii].
Contudo,
se alguém der contra si falso testemunho, não se julgue livre deste crime —
porque a regra de amar o próximo a tem em si próprio o que ama, segundo o
texto:
Amarás
o teu próximo como a ti mesmo [iii].
Pois
bem, não seria menos réu de falso testemunho quem o levantasse contra si
próprio do que quem o levantasse contra o próximo. Mas, se, no preceito que
proíbe o falso testemunho, esta proibição se limita ao próximo e numa
incorrecta compreensão alguém pode entender que lhe é permitido apresentar-se
com falso testemunho contra si mesmo — com quanta maior força se há-de entender
que não é lícito ao homem acabar com a própria vida, já que no texto non occides sem mais acrescentamentos,
ninguém se pode considerar exceptuado, nem mesmo aquele a quem é dirigido o
preceito.
Daí
que alguns pretendam estender este preceito aos animais selvagens e domésticos,
e por ele lhes seja vedado matá-los. E porque não também às plantas e tudo o
que por raízes se fixar ao solo e dele se alimenta? Efectivamente, as coisas
deste género, embora não sintam, diz-se que vivem e por isso podem morrer e até
se podem matar se se usar de violência. A propósito, diz o Apóstolo falando das
sementes das plantas:
O
que semeias não se vivificará se não morrer [iv].
E
no salmo está escrito:
Matou-lhes
as vinhas com granizo [v].
Quer dizer que, em virtude do preceito non occides, devemos considerar ilícito
arrancar abrolhos, e adoptar estultamente o erro dos maniqueus? Arredemos pois
estes devaneios e quando lermos non
occides não incluamos nesta proibição as plantas que carecem de
sensibilidade, nem os animais irracionais, tais como as aves, os peixes, os quadrúpedes,
os répteis, diferentes de nós na razão pois que a eles não foi concedido
participar dela connosco. Por justa disposição do Criador, a sua vida e a sua
morte estão ao nosso serviço. Só nos resta concluir que temos de aplicar apenas
ao homem as palavras não matarás —
nem a outro nem a ti próprio matarás pois quem a si próprio se mata, mata um
homem [vi]
CAPÍTULO
XXI
Casos
em que a execução do homem não constitui o crime de homicídio.
A
própria autoridade divina opôs algumas excepções ao princípio de que não é
lícito matar um homem. Mas trata-se de excepções em que ordena que se dê a
morte, quer por uma lei promulgada, quer por uma ordem expressa que, na
ocasião, visa certa pessoa. (Mas então aquele que deve o seu ministério ao
chefe que manda, não é ele próprio que mata; comporta-se como um instrumento como
a espada para o que a utiliza. Por isso não violaram o preceito não matarás os
homens que, movidos por Deus, levaram a cabo guerras, ou os que, investidos de pública
autoridade e respeitando a sua lei, isto é, por imperativo de uma razão
justíssima, puniram com a morte os criminosos. Assim Abraão, não só não é
culpado do crime de crueldade, como até foi louvado com o nome de piedade por
querer executar o filho, não criminosamente mas por obediência. Pergunta-se com
razão se se deve tomar como uma ordem de Deus o caso de Jefté, que deu a morte
à sua filha por ter sido ela quem, correndo, saiu ao seu encontro pois ele
tinha feito a promessa de imolar a Deus o primeiro ser que viesse ao seu
encontro quando voltasse vitorioso da batalha. Nem Sansão seria de qualquer
forma desculpado de se ter a si mesmo sepultado com os seus inimigos na ruína
do templo, se o Espírito Santo, que por seu intermédio fizera milagres, lho não
tivesse no íntimo ordenado. Portanto, à excepção destes, a quem é dada a ordem
de matar, quer de uma forma geral por uma lei justa, quer de um modo particular
pela própria fonte da justiça que é Deus — o que matar um homem, quer se trate
de si mesmo, quer se trate de qualquer outro, é arguido do crime de homicídio.
CAPÍTULO
XXII
A
morte voluntária jamais pode constituir uma prova de fortaleza de ânimo.
Todos
os que contra si próprios perpetraram este crime, talvez sejam dignos de
admiração pela sua fortaleza de ânimo, mas não devem ser louvados pela sanidade
da sua razão. Se mais cuidadosamente consultares a razão, nem sequer lhe
poderemos chamar fortaleza de ânimo, pois entregaram-se à morte por não poderem
suportar as contrariedades da vida ou os pecados alheios. Antes se reconhece
neste caso uma alma débil que não é capaz de suportar a dura servidão do seu
corpo nem a estulta opinião do vulgo. Muito mais esforçado se deve considerar o
ânimo que é mais capaz de suportar uma vida penosa do que fugir dela e que à
luz de uma consciência pura, despreza o juízo humano, sobretudo o vulgar, a
maior parte das vezes envolvido nas trevas do erro. Se se deve considerar caso de
fortaleza de ânimo que um homem a si próprio imponha a morte — nesse caso de
fortaleza de ânimo se encontra antes Teômbroto. Contam deste que, depois de ter
lido um livro de Platão acerca da imortalidade da alma, se atirou de um muro
abaixo, passando assim desta para a vida que considerava melhor. Nenhuma
calamidade, nenhum crime, verdadeiro ou falso, impossível de suportar, o compeliu.
Apenas a fortaleza de ânimo lhe bastou para abraçar a morte e quebrar os suaves
laços desta vida. O próprio Platão que acabara de ler, pôde testemunhar que
aquele acto tinha mais de grandeza que de bondade. Seguramente que este teria
sido o primeiro a realizá-lo e até a ordená-lo se, graças a essa inteligência
que lhe mostrou a imortalidade da alma, ele não tivesse julgado que era
possível evitá-lo de qualquer forma e proibi-lo até.
Mas
o certo é que muitos se mataram para não caírem nas mãos do inimigo. Não
procuramos saber se isso é um facto — mas sim se deveria ter acontecido. Aos
exemplos deve ser anteposto um são juízo. Há exemplos, com certeza, que com
este juízo estão de acordo — e são tanto mais dignos de imitação quanto mais
notáveis são pela sua
piedade
religiosa.
Não
se mataram os patriarcas, nem os profetas, nem os apóstolos. O próprio Cristo
Senhor, quando os aconselhou a fugirem de uma cidade para outra cidade em caso de
perseguição, poderia com certeza tê-los aconselhado a morrerem às suas próprias
mãos para não caírem nas mãos dos seus perseguidores. Mas não: ele não ordenou
nem aconselhou aos seus que assim deixassem esta vida: prometeu-lhes, sim, aos
que de cá partissem, que lhes prepararia moradas eternas. É, pois, manifesto
que, aos que adoram o único Deus verdadeiro, isso não é permitido, por mais
exemplos que em contrário apresentem os povos que a Deus desconhecem.
CAPÍTULO
XXIII
Valor
do exemplo de Catão, que se suicidou por não poder suportar a vitória de César.
Contudo,
além do caso de Lucrécia, de que acima me parece que já dissemos bastante, não
encontram eles uma autoridade a invocar a não ser a de Catão, que se suicidou
em Útica. Não foi o único a fazê-lo; mas, como passava por um homem probo e
douto, julgou-se justamente por isso que se poderia e ainda se pode fazer
legitimamente o que ele fez.
Que
direi que valha a pena acerca deste facto, a não ser que os seus amigos, alguns
deles homens cultos, o dissuadiram com prudência de consumar o suicídio, pois eram
de opinião de que a façanha era mais própria de uma mentalidade cobarde do que
valorosa, por deixar patente que não se tratava de uma honra que pretende
evitar a desonra mas sim de debilidade que não é capaz de suportar a
adversidade?
Assim
pensou o próprio Catão a respeito do seu filho muito querido. Se era vergonhoso
viver humilhado pela vitória de César, porque é que ele se tornou para com o seu
filho em instigador de uma tal vergonha, prescrevendo-lhe que tudo esperasse da
benevolência de César? Porque é que não o obrigou a morrer com ele? Se Torcato
executou com aplauso o próprio filho — , aquele filho que, contra as suas
ordens, lutou contra o inimigo e alcançou a vitória — , porque é que Catão se
não perdoou a si próprio, vencido, e perdoou a seu filho, também vencido? Seria
mais desonroso ser vencido contra uma ordem do que suportar o vencedor contra a
honra? Catão não considerou desonroso viver submetido a César. Doutra forma,
teria libertado o filho da desonra com a espada paterna. Porquê então, a não
ser por isto: amou tanto o filho para quem quis e esperou a clemência de César
— quanto invejou, como se conta ter dito, o próprio César, ou (digamo-lo mais
benignamente) envergonhou-se da glória que ao próprio César adviria se o
poupasse.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[ii] Falsum testimonium non dices adrersus proxinum tuum.
Êxodo, XX, 16.
[iii] Diliges proximum tuum tanquam te ipsúm.
Mat. XXII, 39.
[iv] Tu quod seminas non vivificatur, nisi moriatur.
I Cor., XV, 36.
[v] Occidit uites eorum in grandine.
Salmo LXXVII, 47.
[vi] 6 Questão do suicídio.
A — Será legítimo o
suicídio? No paganismo, foram dadas à questão soluções diversas:
— Platão condena o
suicídio (Fedon), mas admite-o no caso de doença incurável ou de desonra (Leis
XI, 873).
— Aristóteles
condena-o, considerando-o uma cobardia (Eth. Ad Nicom. III, 11).
— Diógenes de Laércio
e os cínicos autorizam-no.
— Epicteto e os
estóicos condenam-no (Dissert I, 9) em princípio; admitem-no, porém, em
circunstâncias especiais. V. Cícero, Tascul. I, 34.
— Séneca começa por o
admitir, mas acaba por confessar que «o homem de coração, o sábio, não foge da
vida: sai dela». (Ep. 24-25).
— São ainda contra o
suicídio os neo-platónicos. (Plotino, Enéadas, I, 4.
B — Santo Agostinho
condena-o sem reservas. Nem o sofrimento — que é purificador, como no caso de
Job; nem o receio de cair nas mãos do inimigo; nem a ameaça de martírio— que é
uma graça; nem a desonra — pois que o pecado só na alma existe e um corpo
violado mantém-se puro se a vontade não aderiu ao pecado alheio; nem o receio
de perder a salvação — pois, a ser motivo, todos os neófitos se deviam suicidar
logo após o baptismo; nem o medo da violência — pois afinal sempre comete
violência contra si o que se suicida.
Sobre o caso, v. B.
Roland-Gosselin, La Morale de Saint
Augustin, Paris, 1925.
C — Todavia, perante
certos casos de suicídio, cometido em certas circunstâncias por pessoas a quem
a Igreja presta culto — tais como os referidos por Eusébio de Cesareia na sua «História Eclesiástica» (II, 8, 34), o de
Santa Apolónia, o dos Santos Bernice, Prosdoce e Domnina, o de Santa Pelágia
(P. G. 579-785 e P. L. XVI, 229, S. Ambrosio in «De Virginitate» III, 7, 33) — Santo Agostinho prudentemente
declara:
«não me atrevo a
afirmar temerariamente nada acerca delas (de
his nihil temere audeo judicare (v. De Civ. Dei L. I cap. XXVI). A celeberrima veneratio (De Civ. Dei. L. I
cap. XXVI) em que eram tidas pela Igreja católica impedia-o de formar um juízo
que não fosse o de que essas pessoas não agiram por qualquer ilusão humana mas
por inspiração ou mandato divino.
Sobre este ponto, v.
R. Thamim, Un problème moral dans
1’Antiquité, Paris, 1883; A. Bayet, Le
Suicide et la morale, Paris, 1902; H. Deleaye, Les légendes hagiografiques, Brux. 1927; idem, Les origines du culte des martyrs, Brux., 1921; P. Morceaux,
Histoire Litt. de 1’Afrique Chrét., T. VI. Paris 1922.
Bernice, Prosdoce e
Domnina, o de Santa Pelágia (P. G. 579-785 e P. L. XVI, 229, S. Ambrosio in «De Virginitate» III, 7, 33) — Santo
Agostinho prudentemente declara:
«não me atrevo a
afirmar temerariamente nada acerca delas (de
his nihil temere audeo judicare (v. De Civ. Dei L. I cap. XXVI). A celeberrima veneratio (De Civ. Dei. L. I
cap. XXVI) em que eram tidas pela Igreja católica impedia-o de formar um juízo
que não fosse o de que essas pessoas não agiram por qualquer ilusão humana mas
por inspiração ou mandato divino.
Sobre este ponto, v.
R. Thamim, Un problème moral dans
1’Antiquité, Paris, 1883; A. Bayet, Le
Suicide et la morale, Paris, 1902; H. Deleaye, Les légendes hagiografiques, Brux. 1927; idem, Les origines du culte des martyrs, Brux., 1921; P. Morceaux,
Histoire Litt. de 1’Afrique Chrét., T. VI. Paris 1922.
5 Occidit uites eorum
in grandine.