Tempo comum XX Semana
Evangelho:
Jo 6, 51-58
51 Eu sou o pão vivo
descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente; e o pão que Eu darei é
a Minha carne para a salvação do mundo». 52 Disputavam, então, entre si os
judeus: «Como pode Este dar-nos a comer a Sua carne?». 53 Jesus disse-lhes: «Em
verdade, em verdade vos digo: Se não comerdes a carne do Filho do Homem e não
beberdes o Seu sangue não tereis a vida em vós. 54 Quem come a Minha carne e
bebe o Meu sangue tem a vida eterna, e Eu o ressuscitarei no último dia. 55
Porque a Minha carne é verdadeiramente comida e o Meu sangue verdadeiramente
bebida. 56 Quem come a Minha carne e bebe o Meu sangue permanece em Mim e Eu
nele. 57 Assim como Me enviou o Pai que vive e Eu vivo pelo Pai, assim quem Me
comer a Mim, esse mesmo também viverá por Mim. 58 Este é o pão que desceu do
céu. Não é como o pão que comeram os vossos pais, e morreram. Quem come deste
pão viverá eternamente».
Comentário:
Por mais que tentemos nunca conseguiremos abarcar -
nem sequer palidamente – a grandeza maravilhosa deste Mistério Eucarístico.
Vai além, muito além de toda a compreensão humana
e, no entanto, é uma realidade.
Talvez seja o mais extraordinário acto de Amor de
Jesus Cristo, mais, talvez, que o próprio Sacrifício da Cruz.
Este ocorreu numa época determinada e foi decisivo
para a nossa salvação, aquele repete-se todos os dias – inúmeras vezes – e está
sempre presente como refúgio e alimento para as nossas almas.
(ama, comentário sobre Jo 6, 51-58, 2014.06.22)
Leitura espiritual
CRISTO QUE
PASSA
1
Começa o ano litúrgico e
o intróito da Missa propõe-nos uma consideração intimamente relacionada com o
princípio da nossa vida cristã: a vocação que recebemos.
Vias tuas, Domine, demonstra mihi et semitas tuas edoce me, mostra-me Senhor os
teus caminhos e ensina-me as tuas veredas.
Pedimos ao Senhor que no
guie, que nos deixe ver os seus passos, para que possamos aspirar à plenitude
dos seus mandamentos que é a caridade.
Julgo que vós, tal como
eu, ao pensar nas circunstâncias que acompanharam a vossa decisão de vos
esforçardes por viver integralmente a fé, dareis muitas graças ao Senhor e
tereis a convicção sincera - sem falsas humildades - de que não há mérito algum
da vossa parte.
Geralmente, aprendemos a
invocar Deus desde a infância, dos lábios de pais cristãos. Mais adiante,
professores, companheiros e simples conhecidos ajudaram-nos de muitas maneiras
a não perder de vista Jesus Cristo.
Um dia (não quero
generalizar; abre o coração ao Senhor e conta-lhe tu a história) talvez um
amigo, um cristão normal e corrente como tu, te tenha feito descobrir um
panorama profundo e novo e ao mesmo tempo tão antigo como o Evangelho.
Sugeriu-te a
possibilidade de te empenhares seriamente em seguir Cristo, em ser apóstolo de
apóstolos.
Talvez tenhas perdido
então a tranquilidade e não a terás recuperado, convertida em paz, até que,
livremente, "porque muito bem te apeteceu" - que é a razão mais
sobrenatural - respondeste a Deus que sim.
E veio a alegria,
vigorosa, constante, que só desaparece quando te afastas d'Ele.
Não me agrada falar de
escolhidos nem de privilegiados.
Mas é Cristo quem fala
disso, quem escolhe. É a linguagem da escritura: elegit nos in ipso ante mundi constitutionem - diz S. Paulo - ut essemus sancti, escolheu-nos antes da
criação do mundo para sermos santos.
Eu sei que isto não te
enche de orgulho, nem contribui para que te consideres superior aos outros
homens.
Essa escolha, raiz do
teu chamamento, deve ser a base da tua humildade.
Costuma levantar-se
porventura algum monumento aos pincéis dum grande pintor? Serviram para fazer
obras-primas mas o mérito é do artista.
Nós - os cristãos -
somos apenas instrumentos do Criador do mundo, do Redentor de todos os homens.
2
Os Apóstolos, homens
correntes
A mim, anima-me muito
considerar um precedente, narrado passo a passo, nas páginas do Evangelho: a
vocação dos primeiros doze.
Vamos meditá-la devagar,
pedindo a essas santas testemunhas do Senhor que saibamos seguir Cristo como
eles o fizeram.
Aqueles primeiros doze
apóstolos - a quem tenho grande devoção e carinho - eram, segundo os critérios
humanos, bem pouca coisa.
Quanto à posição social,
com excepção de Mateus - que com certeza ganhava bem a vida e deixou tudo
quando Jesus lhe pediu - eram pescadores; viviam do dia-a-dia, trabalhando até
de noite para poderem alcançar o seu sustento.
Mas a posição social é o
de menos.
Não eram cultos, nem
sequer muito inteligentes, pelo menos no que diz respeito às realidades
sobrenaturais.
Até os exemplos e as
comparações mais simples lhes eram incompreensíveis e pediam ao Mestre: Domine, edissere nobis parabolam,
Senhor, explica-nos a parábola.
Quando Jesus, com uma
imagem, alude ao fermento dos fariseus, supõem que os está a recriminar por não
terem comprado pão.
Pobres, ignorantes.
E nem sequer eram
simples, humildes.
Dentro das suas
limitações, eram ambiciosos. Muitas vezes discutem sobre quem seria o maior,
quando - segundo a sua mentalidade - Cristo instaurasse na terra o reino
definitivo de Israel.
Discutem e excitam-se
até naquela hora sublime em que Jesus está prestes a imolar-se pela humanidade,
na intimidade do Cenáculo.
Fé?
Pouca.
O próprio Jesus Cristo o
diz.
Viram ressuscitar
mortos, curar todo o tipo de doenças, multiplicar o pão e os peixes, acalmar
tempestades, expulsar demónios.
Pois S. Pedro, escolhido
como cabeça, é o único que sabe responder com prontidão: Tu és o Cristo, Filho
de Deus vivo.
Mas é uma fé que ele
interpreta à sua maneira; por isso atreve-se a enfrentar Jesus Cristo, a fim de
que Ele não se entregue pela redenção dos homens.
E Jesus tem de
responder-lhe: Retira-te de mim, Satanás; tu serves-me de escândalo, porque não
tens a sabedoria das coisas de Deus mas das coisas dos homens.
Pedro raciocinava
humanamente, comenta S. João Crisóstomo, e concluía que tudo aquilo (a Paixão e
a Morte) era indigno de Cristo, reprovável.
Por isso Jesus
repreende-o e diz-lhe: não, sofrer não é coisa indigna de Mim; tu pensas assim
porque raciocinas com ideias carnais, humanas.
Em que sobressaem então
aqueles homens de pouca fé?
Talvez no amor a Cristo?
Sem dúvida que O amavam,
pelo menos de palavra.
Chegam até a deixar-se
arrebatar pelo entusiasmo: Vamos nós também e morramos com Ele.
Mas à hora da verdade,
todos hão-de fugir, excepto João, que O amava com obras e de verdade. Só este
adolescente, o mais jovem dos Apóstolos, permanece junto da cruz.
Os outros não sentiam
esse amor tão forte como a morte.
Eram estes os discípulos
escolhidos pelo Senhor; assim os escolhe Cristo; assim se comportavam antes de
que, cheios do Espírito Santo, se tornassem colunas da Igreja. São homens
correntes, com defeitos, com debilidades, com palavras maiores do que as suas
obras.
E, contudo, Jesus
chama-os para fazer deles pescadores de homens, corredentores, administradores
da graça de Deus.
3
Sucedeu connosco uma
coisa semelhante.
Sem grande dificuldade,
poderíamos encontrar na nossa família, entre os nossos amigos e companheiros -
para não me referir já ao imenso panorama do mundo - tantas pessoas mais dignas
do que nós de receber o chamamento de Cristo.
Mais simples, mais
sábias, mais influentes, mais importantes, mais gratas, mais generosas...
Eu, ao pensar nisto,
fico envergonhado.
Mas compreendo também
que a nossa lógica humana não serve para explicar as realidades da graça.
Deus costuma procurar
instrumentos fracos para que se manifeste com evidente clareza que a obra é
sua.
O próprio S. Paulo evoca
com estremecimento a sua vocação; e por
último, depois de todos, foi também visto por mim, como por um aborto.
Porque eu sou o mínimo dos apóstolos, que não sou digno de ser
chamado apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus.
Assim escreve Paulo de
Tarso, homem de uma personalidade e de um vigor que a história não fez mais do
que engrandecer.
Fomos chamados sem
mérito algum da nossa parte, dizia-vos.
Realmente, na base da
nossa vocação está o conhecimento da nossa miséria, a consciência de que as
luzes que iluminam a alma - a fé - o amor com que amamos - a caridade - e o
desejo que nos mantém - a esperança - são dons gratuitos de Deus.
Por isso, não crescer em
humildade significa perder de vista o objectivo da escolha divina: ut essemus sancti, a santidade pessoal.
Agora, tomando como
ponto de partida essa humildade, podemos compreender toda a maravilha da
chamada divina.
A mão de Cristo
colheu-nos num trigal: o semeador aperta na sua mão chagada o punhado de trigo;
o sangue de Cristo banha a semente, empapa-a.
Depois, o Senhor lança
ao ar esse trigo, para que, morrendo, seja vida e, afundando-se na terra, seja
capaz de multiplicar-se em espigas de oiro.
4
É hora de despertar
A Epístola da Missa
recorda-nos que temos de assumir esta responsabilidade de apóstolos com novo
espírito, com ânimo, despertos.
Porque já é hora de nos
levantarmos do sono. Porquanto agora está mais perto a nossa salvação do que
quando abraçámos a fé.
A noite está quase
passada e o dia aproxima-se.
Deixemos, pois, as obras
das trevas e revistamo-nos das armas da luz.
Dir-me-eis que isso não
é fácil, e não vos faltará razão.
Os inimigos do homem,
que são os inimigos da santidade, procuram impedir essa vida nova, que é
revestirmo-nos com o espírito de Cristo.
Não conheço melhor
enumeração dos obstáculos à fidelidade cristã do que a que nos dá S. João: concupiscentia carnis, concupiscentia oculorum
et superbia vitae.
Tudo o que há no mundo é
concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e soberba de vida.
5
A concupiscência da
carne não é só a tendência desordenada dos sentidos em geral nem a apetência
sexual, que deve ser ordenada, mas que não é má em si mesma, pois é uma nobre
realidade humana santificável.
Por isso, nunca falo de
impureza mas de pureza, porque a todos se dirigem as palavras de Cristo:
bem-aventurados os limpos de coração porque verão a Deus.
Por vocação divina,
alguns terão de viver essa pureza no matrimónio; outros, pelo contrário,
renunciarão aos amores humanos, para corresponderem única e apaixonadamente ao
amor de Deus.
Nem uns nem outros devem
ser escravos da sensualidade, mas senhores do seu corpo e do seu coração para
os poderem dar sacrificadamente aos demais.
Ao tratar da virtude da
pureza, costumo acrescentar o qualificativo de santa.
A pureza cristã, a santa
pureza, não é o orgulho de sentir-se puro, não contaminado; é saber que temos
os pés de barro, embora a graça de Deus nos livre dia a dia das ciladas do
inimigo.
Considero uma deformação
do cristianismo a insistência de algumas pessoas em escrever ou pregar quase
exclusivamente sobre esta matéria, esquecendo outras virtudes que são capitais
para o cristão e, em geral, para a convivência entre os homens.
A santa pureza não é a
única nem a principal virtude cristã; contudo, é indispensável para perseverar
no esforço diário da nossa santificação e sem ela não é possível dedicar-se ao
apostolado.
A pureza é consequência
do amor com que entregámos ao Senhor a alma e o corpo, as potências e os
sentidos.
Não é uma negação; é uma
alegre afirmação.
Dizia que a
concupiscência da carne não se reduz exclusivamente à desordem da sensualidade;
também se traduz no comodismo, na falta de vibração que incita a procurar o que
é mais fácil, o mais agradável, o caminho aparentemente mais curto, por vezes à
custa de ceder na fidelidade a Deus.
Comportar-se assim seria
como abandonar-se ao império duma daquelas leis - a do pecado - contra as quais
nos previne S. Paulo: Eu encontro, pois,
esta lei em mim: quando quero fazer o bem, o mal está junto de mim; porque me
deleito na lei de Deus, segundo o homem interior; mas vejo nos meus membros
outra lei que se opõe à lei do meu espírito e que me faz escravo da lei do
pecado, que está nos meus membros. Infelix ego homo! Infeliz de mim! Quem me
livrará deste corpo de morte?
Ouvi o que responde o
apóstolo: a graça de Deus por Jesus Cristo Nosso Senhor.
Podemos e devemos lutar
contra a concupiscência da carne, porque, se formos humildes, sempre nos será
concedida a graça do Senhor.
(cont)