JESUS CRISTO NOSSO SALVADOR
Iniciação à Cristologia
PRIMEIRA PARTE
A PESSOA DE JESUS CRISTO
Capítulo VI
OUTRAS CARACTERÍSTICAS QUE COMPLETAM A FIGURA DE JESUS
CRISTO ENQUANTO HOMEM
3. As acções humanas de Jesus Cristo
a) A existência de uma operação humana em Cristo
Já dissemos
que o monoergismo propugnava uma só operação em Cristo, que chamava teándrica (divino-humana); de modo que a
sua humanidade seria um instrumento passivo sem uma acção própria, como uma
marioneta da divindade. E foi condenado no III concílio de Constantinopla que
confessou «duas operações naturais
sem divisão, sem comutação, sem separação, sem confusão, no mesmo nosso Senhor
Jesus Cristo, nosso verdadeiro Deus, isto é, uma operação divina e outra
operação humana».
Já o tinha
dito São Leão Magno a propósito do monofisismo: «Uma e outra natureza operam,
com comunicação da outra, o que é próprio dela: quer dizer, que o Verbo obra o
que pertence ao Verbo e carne executa o que toca à carne».
A razão é
que ainda que as acções sejam das pessoas, são-no segundo o princípio dessas
operações. «E a natureza é o princípio da
operação. Por isso em Cristo não há uma só operação por ser um único sujeito,
mas duas operações porque são duas as naturezas. Enquanto na Santíssima Trindade,
pelo contrário, não há mais que uma só operação (e não três) por causa da
unidade da natureza».
A natureza
humana de Cristo tem a sua própria forma e virtude pelas quais actua do modo
que lhe é próprio: sente, conhece, quer livremente, etc. Daí que a natureza
humana tenha a sua própria operação diferente da operação divina.
b) O poder próprio, natural e sobrenatural, das
acções de Cristo homem
Qual é o
poder e alcance das acções próprias de Cristo homem? Digamos em primeiro lugar
que a sua natureza humana, como a de todo o homem, tem poder para realizar
todas as acções humanas naturais:
para conhecer, querer, falar, caminhar, etc.
Mas também,
como todo o homem em estado de graça, tem o poder para realizar obras sobrenaturais: trata-se de um poder
participado pelo Espírito Santo, mas outorgado ao homem para que este possa
realizar por si mesmo obras sobrenaturais; p. ex. amar a Deus e ao próximo,
orar, obedecer ou merecer. Jesus, como homem cheio de graça e de verdade, tinha
a capacidade sobrenatural de revelar o Pai e ensinar-nos as palavras de Deus,
assim como de merecer por todos os homens e satisfazer por todo o género
humano.
Tão
importante é esta capacidade sobrenatural, que sem ela não poderíamos afirmar a
realidade da obra redentora que Jesus levou a cabo por meio dessas acções.
É de notar
que todas estas acções naturais e sobrenaturais na humanidade assumida na
unidade de pessoa pelo Filho de Deus são «próprias»
da segunda pessoa da Trindade: não são acções comuns com o Pai e o Espírito
Santo.
c) O mérito das acções humanas próprias de Cristo
A
condescendência divina é tal que nos prometeu dar os bens divinos em modo de
uma retribuição pelas boas acções que realizemos em estado de graça e seguindo
as inspirações do Espírito Santo, pois torna-se mais digno para o homem ter
esses bens por si mesmo, como devidos a alguém, que recebê-los por pura dádiva.
Como as
acções humanas de Cristo eram livres e nasciam do imenso amor ao Pai que o
Espírito Santo tinha infundido na sua alma, todas
elas eram meritórias, quer dizer, eram dignas de alcançar o fim ao qual as
tinha ordenado o desígnio divino.
Assim pois,
Cristo, antes da sua Ressurreição, mereceu para si mesmo aqueles bens que ainda
não possuía, como eram a perfeita glorificação e exaltação da sua humanidade.
Isto é o que a Escritura manifesta quando diz: «humilhou-se a si mesmo fazendo-se obediente até à morte, e morte de
cruz. E por isso Deus o exaltou» (Flp 2,9).
E Cristo
também mereceu para nós a salvação. Ainda que, em princípio, o mérito – o
título para o prémio – olha só à retribuição da pessoa que realizou determinada
obra, todavia, a fé ensina-nos que Cristo mereceu a graça para todos os homens,
pois a este fim estava ordenada a Encarnação do Verbo. Mais adiante, ao estudar
a Paixão de Cristo, veremos melhor este ponto.
d) As acções humanas de Cristo enquanto são
instrumento da divindade
A
humanidade de Cristo, além do poder próprio que possui pela natureza ou pela
graça, tem a capacidade, como toda a criatura, de que Deus se sirva dela como
instrumento para levar a cabo obras acima do poder da sua natureza.
Assim na ordem física a divindade serviu-se de
alguns gestos e palavras humanas de Jesus para produzir milagres, que são
acções admiráveis que superam a capacidade da natureza humana e facilitam a fé
dos testemunhos, tais como dar a vista aos cegos, curar leprosos e paralíticos,
ou ressuscitar mortos.
A teologia
conservou o nome de teándricas, mas
num claro sentido diferente do monoergismo, para estas acções humanas de Cristo
enquanto servem de instrumento à divindade para realizar obras próprias da
omnipotência divina. Mas neste caso trata-se de duas operações naturais
coordenadas para produzir esse efeito, não se trata de uma só operação confusa,
mistura de ambas. Por
exemplo, na cura milagrosa de um cego há uma acção própria da natureza divina
(dar-lhe a vista) que se serve da acção própria da natureza humana de Jesus
(das suas palavras e do gesto de lhe ungir os olhos).
E
igualmente na ordem espiritual, mais
importante, a divindade serviu-se do seu querer humano e das suas palavras para
perdoar os pecados (cf. Mt 9,6). Ainda assim a escritura diz-nos que
a sua humanidade participa do poder de comunicar aos homens a vida eterna (cf.
Jo 17,2), que é uma acção própria de Deus. E igualmente as acções de
Cristo são instrumento da divindade para comunicar a graça a todos os homens.
Em todas
estas acções a causa eficiente principal é a natureza e o poder divino do
Verbo, que tem em comum com o Pai e o Espírito Santo; e a humanidade de Cristo
é a causa instrumental. Portanto, estas acções não são próprias e exclusivas do Verbo, pois nelas também intervêm
as outras pessoas divinas; p. ex. as três pessoas divinas comunicam a salvação
aos homens tornando-os partícipes da obra redentora de Cristo mediante os
sacramentos.
4. A afectividade humana de Cristo
A
afectividade humana, ponto de união entre o sensível e o intelectual no homem,
compreende os sentimentos, afectos, emoções e paixões. Ainda que cada um desses
termos tenha conotações diferentes, aqui falaremos dos sentimentos e das
paixões de uma forma genérica para ganhar em clareza e simplicidade.
a) Os sentimentos e as paixões de Jesus Cristo
Os
sentimentos ou paixões são os actos ou movimentos reactivos naturais da nossa
sensibilidade, produzidos pelos objectos percebidos pelos sentidos.
E Cristo
teve aqueles sentimentos e paixões próprios da natureza humana compatíveis com
a sua plenitude de graça e que serviam para a nossa redenção. Assim os Evangelhos
testemunham que Cristo teve alegria
pelas obras de seu Pai (cf. Lc
10,21) e de saber-se amado pelo pai (cf. Jo
15,10-11); ou que teve desejos
ardentes da nossa redenção (cf. Lc 12,50) e de ficar-se na Eucaristia (cf.
Lc 22,15),
etc.
A Escritura
mostra-nos igualmente que em Cristo houve tristeza ao contemplar os sofrimentos
da sua Paixão e o pecado dos seus (cf. Mt 26,38); ou que teve dor de alma até chorar pela morte de
Lázaro ou pela ruína do seu povo (cf. Jo 11,33-35; Lc 19,41); ou que teve a ira ante a hipocrisia de alguns (cf.
Mc 3,5), etc.
Mas n’Ele
esses sentimentos e paixões, que em si mesmos são parte da natureza humana e
são bons, deram-se de modo diferente que em nós, pois em nós normalmente
antecedem o juízo da razão, frequentemente tendem para o ilícito, e por vezes
arrastam a razão. Em Cristo, ao invés, a razão regia e controlava perfeitamente
toda a sua afectividade ainda que deixasse que cada uma das tendências
sensíveis regesse com o seu próprio movimento para o bem e do modo mais conveniente:
esses sentimentos jamais antecederam o juízo da razão, nem se dirigiram ao que
não fosse conveniente mas antes estavam ordenados ao bem, nem lhe impediram a
serenidade dos seus juízos, nem o arrastaram na sua actuação.
b) O amor de Cristo. O sagrado Coração de Jesus
Em Jesus
não faltou o sentimento principal, do qual derivam todos os outros, que é o
amor e que é sobre naturalizado pela caridade. Mais, este foi o motor da sua
vida, e a chave da harmonia e unidade de todo o seu ser: o seu amor e entrega
ao pai e a nós.
O amor a
seu Pai nasce de saber-se o Filho muito amado (cf. Mt 3,17). O seu
amor filial ressoa em todas as suas palavras e resplandece em todos os seus
actos. Vivia do amor e da entrega à vontade de seu Pai: «Faço sempre o que lhe agrada» (Jo 8,29).
O amor por
nós foi o prolongamento desse amor a seu Pai. Assim nos dizem os Evangelhos,
que quis aos seus (cf. Lc12,4; Jo 11,11); e que «Jesus amava Marta,
a sua irmã e a Lázaro» (Jo 11,5); ou que mostrou afecto e compaixão para com
muitos. Esse amor manifestava-se exteriormente com facilidade, de modo que era
patente e notório para todos (cf. Jo 11,3-35).
E esse amor
de Jesus não se estendia só aos mais próximos, mas também abarcava a todos e
cada um. O Novo Testamento certifica-o: «amou-nos
e entregou-se por nós» (Ef 5,2; cf. Rom 8,37); com um amor até
ao extremo: «ninguém tem maior amor que o
que dá a vida pelos seus amigos» (Jo 15,13). «Jesus, durante a sua vida, a sua agonia e a
sua Paixão conheceu-nos e amou-nos a todos e a cada um de nós e entregou-se por
cada um de nós: ‘O Filho de Deus amou-me e entregou-se a si mesmo por mim’ (Gal
2,20).
O Sagrado Coração de Jesus.
Jesus
Cristo amou-nos e ama-nos com o seu infinito amor divino, que tem em comum com
o Pai e o Espírito Santo, e também com o seu amor humano que o levou a
entregar-se por nós: ama-nos com o seu coração humano cheio da imensa caridade
infundida na sua alma e o seu afecto carinhoso.
«Amou-nos a
todos com um coração humano. Por esta razão, o Sagrado Coração de Jesus,
trespassado pelos nossos pecados e para nossa salvação (cf. Jo 19,34), ‘é
considerado como o principal indicador e símbolo (…) o amor com que o divino
Redentor ama continuamente o eterno Pai e todos os homens,’ (Pio XII, Auretis aquas, DES, 3924)».
5. Fisionomia de Jesus
No que
respeita ao rosto e ao aspecto físico de Jesus, os Evangelhos não nos
transmitiram nenhuma descrição directa sobre a sua estatura, os seus traços
físicos, sobre a cor dos seus olhos ou do cabelo, etc. Ainda que neste ponto
indubitavelmente os Apóstolos devem ter satisfeito a legítima curiosidade dos
primeiros cristãos, logo se perdeu a memória daquelas notícias. Por isso ao
longo da história têm-se dado múltiplas opiniões sobre a fisionomia de Jesus e
a arte representou-o inúmeras vezes, mas trata-se de imagens muito diferentes
que procedem só da imaginação dos cristãos.
Todavia, de
modo indirecto, a Sagrada Escritura sugere-nos alguns dados que nos servem para
fazermos uma ideia, ainda que vaga e geral, do aspecto físico do Senhor.
Assim,
podemos dizer devia ter uma presença agradável, amável e atraente, para que
muitos acudissem a Ele com facilidade, ou para que o chamassem «bom mestre» (Mc 10,17), ou
lhe levassem crianças para que lhes impusesse as mãos, etc.
Devia ter
um porte e uns modos dignos que inspiravam o respeito e o afecto de pessoas de
todas as condições, tanto da gente simples das aldeias, como pessoas de
categoria social ou intelectual elevada, tais como José de Arimateia, Nicodemos,
etc.
Tinha no
seu interior transparecia no seu rosto uma profunda paz e alegria, das quais
desejava que participassem os seus (cf. Jo 14,27; 15,11). Com efeito
vemo-lo sempre sereno, dono das suas palavras e dos seus actos. E habitualmente
ao seu rosto devia assomar um sorriso sincero, inclusive vemo-lo manifestamente
feliz, em ocasiões, com o bem espiritual das almas (cf. Lc 10,21), e compara a sua
vida com umas bodas nas quais ninguém pode estar triste (cf. Mt 9,15).
O olhar de
Jesus normalmente era alegre, carinhoso e profundo, de modo que chegava ao
fundo das almas. Esse olhar manifesta-se afectuoso com o jovem rico (cf.
Mc 10,21), compassivo coma viúva de Naim (cf. Lc 7,13), com pena para com Pedro depois das negações (cf. Lc 22,61). Que teria o seu
olhar, que removeu e arrastou Pedro,
Mateus, e tantos outros a que o seguissem, deixando todas as coisas!
Todavia, o
atractivo de Jesus provinha sobretudo do seu interior: da sua bondade, das suas
palavras, e dos seus milagres. Talvez Deu tenha permitido que não nos ficasse
um retrato de Jesus, e que a sua presença física entre nós finalizasse com a
Ascensão, para que não fossemos atraídos a Ele por motivos meramente humanos
mas para que nos fixássemos principalmente na sua alma, e o procurássemos como
nosso salvador e nosso Deus.
***
Ao terminar
estas páginas que pretendiam dar a conhecer um pouco mais a figura de Jesus,
fica-nos a pena de não ter reflectido em absoluto «a insondável riqueza de Cristo» (Ef 3,38), de não ter
mostrado apenas como era. Seria preciso percorrer uma a uma todas as virtudes e
citar a maior parte dos Evangelhos se quiséssemos contemplar todas as
qualidades do Salvador; e sempre ficaríamos muito longe da plenitude e
perfeição que n’Ele existem e do conjunto maravilhosamente harmonioso e
completo que todas elas constituem em Jesus.
Só no céu
nos será dado ver e conhecer a amável figura de Jesus face a face. Na terra
resta-nos a tarefa pessoal de ir descobrindo mais e mais como era e como é,
mediante a leitura meditada dos Evangelhos e do trato pessoal e imediato de
cada um com Jesus na oração e na santíssima Eucaristia.
(cont)
Vicente
Ferrer Barriendos
(Tradução do castelhano por ama)
CONC. III DE
CONSTANTINOPLA, DS, 557.