INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO
"Creio
em Deus" – Hoje
SEGUNDA
PARTE
JESUS
CRISTO
CAPÍTULO
PRIMEIRO
"Creio
em Jesus Cristo seu Filho Unigénito, Nosso Senhor".
IV. Caminhos da Cristologia
6. O primado da aceitação e a
positividade cristã.
O homem é salvo pela cruz; o Crucificado, como o
totalmente aberto, é a verdadeira salvação do homem – já noutro contexto nos
esforçamos por tornar compreensível à inteligência de hoje essa verdade da fé.
Consideremo-lo agora, não no seu conteúdo, mas na sua estrutura: esta exprime
uma primazia da aceitação sobre a acção, sobre a própria atuacção, quando se
trata do elemento decisivo do homem. Talvez tenhamos aqui o ponto mais profundo
da divisão entre o princípio cristão da esperança e a sua contrafacção
marxista. Certamente, também o princípio marxista baseia-se numa ideia de
passividade, porquanto, de acordo com ele, o proletariado sofredor é o salvador
do mundo. Mas um tal sofrimento do proletariado, destinado, por fim, a
concretizar a transformação numa sociedade sem classes, de facto, há de
realizar-se mediante uma luta activa de classes. Só assim o proletariado pode
tornar-se "salvador", conduzindo ao desarmamento da classe dominante
e à igualdade de todos os homens. Se a cruz de Cristo é um sofrimento
"para", a paixão do proletariado, vista marxisticamente, efectua-se
como luta "contra"; se a cruz é essencialmente obra de um indivíduo
em prol da colectividade, a paixão proletária é essencialmente obra da massa,
organizada em partido para seu próprio benefício. Portanto, ambos os caminhos
correm em direcções opostas, apesar de um ponto de contacto nos seus pontos de
partida.
Por conseguinte, sob o ponto de vista cristão, o
homem não se alcança a si mesmo pelo que faz, mas pelo que recebe. Cumpre-lhe
aguardar o dom do amor, e amor não se recebe de outra forma senão como dádiva.
Ninguém está em condições de "produzi-lo" por si, sem o outro;
deve-se esperá-lo, aceitá-lo como presente. E ninguém pode tornar-se
completamente homem, senão sendo amado, deixando-se amar. O amor do
homem representa, ao mesmo tempo, a mais alta possibilidade e a necessidade
mais profunda, sendo esta necessidade simultaneamente o que há de mais livre e
de menos forçado, tendo como consequência depender o homem da sua aceitação
para ser "salvo". Recusando uma tal mercê, o homem destrói-se a si
mesmo. Uma actividade que se sustente de modo absoluto, que queira realizar o
ser-homem por si mesma; com os próprios recursos, representa contradição em sua
natureza. Louis Evely formulou magnificamente esse ponto de vista da seguinte
forma:
"A história da humanidade desencaminhava-se,
sofreu uma fractura por causa da falsa ideia de Deus em Adão. Este quis ser
como Deus. Espero que nunca tenhais visto neste ponto o pecado de Adão... Deus
não o aliciava a ser como ele? Adão enganou-se apenas no protótipo. Acreditava
ser Deus um ser independente, autónomo, a bastar-se a si mesmo; e, a fim de
tornar-se como ele, revoltou-se, mostrando-se desobediente.
Mas, ao mostrar-se como era, Deus revelou-se como
amor, ternura, transbordamento de si mesmo, como infinita complacência num
outro. Afeição, dependência. Deus mostrou-se obediente, obediente até à morte.
Crendo tornar-se Deus, Adão desviou-se totalmente
dele. Retraiu-se à solidão, enquanto Deus era comunhão".
Sem dúvida, tudo isto significa uma relativização
das ações, da actividade; a luta de S. Paulo contra a "justiça das
obras" deve ser compreendida sob este ângulo. Contudo, é mister
acrescentar que, nessa ordenação da actividade humana como grandeza penúltima
apenas, está incluída a sua libertação interna: a actividade do homem pode
desdobrar-se na serenidade, no desprendimento, na liberdade peculiar àquilo que
é penúltimo. O primado do receber de modo algum pretende confinar o homem à
passividade; não significa que ao homem bastaria cruzar os braços, como o
marxismo nos argui. Pelo contrário: esse primado possibilita realizar as
tarefas deste mundo, colocando-as a serviço do amor redentor, em espírito de
responsabilidade e, ao mesmo tempo, sem inibição e com alegre liberdade.
Deste ponto de partida ainda flui outra consequência.
O primado do receber inclui a positividade cristã, comprovando a sua
necessidade intrínseca. Constatamos que o homem não coloca por si o que é
decisivo; esse primado há de sobreviver-lhe não como feito por ele, não como
produto seu, mas como um livre correlativo a – doar-se-lhe. Sendo assim,
segue-se que, em última análise, a nossa relação com Deus não pode basear-se em
nosso próprio roteiro, num conhecimento especulativo, mas há de exigir a
positividade do que nos está à frente, que nos sobrevém como algo positivo,
como algo a ser recebido. A meu ver, partindo daqui, poderia realizar-se, por
assim dizer, a – quadratura do Círculo da Teologia, a saber, a interna
necessidade da aparente contingência histórica do crístico, o "deve"
da sua chocante positividade como um acontecimento que vem de fora. Pode ser
superada aqui a antítese tão acentuada por Lessing entre vérité de fait (verdade
fortuita dos factos) e vérité de raison (verdade necessária da razão). O
casual, o exterior é o necessário ao homem; só pelo sobrevir de fora se lhe
abre o íntimo, O incógnito de Deus enquanto homem na história "deve"
ser com a necessidade da liberdade.
7. Síntese: a "essência do
cristianismo".
Resumindo tudo, podemos dizer que os seis
princípios que tentamos apresentar esquematicamente podem-se chamar como que a
fórmula arquitectónica da existência cristã, como a fórmula para a
"essência do cristianismo". Por meio deles também poderia ser
retratado aquilo que denominamos a pretensão cristã absolutista, usando de um
termo bastante ambíguo. O que ele significa revela-se sobretudo no princípio
"indivíduo", no princípio "para", no princípio sobre o
"definitivo" e no da "positividade". Nestes princípios
básicos aparece a maneira peculiar da pretensão que a fé cristã apresenta e
deve fazer valer frente à história das religiões, se quer conservar-se fiel a
si mesma.
Resta, porém, ainda uma pergunta: Tendo diante de
si os seis princípios, como os analisamos, pareceria sem complicação a nossa
sorte, tal como a dos físicos a buscarem a origem da matéria do ser, julgando
tê-la identificado nos chamados elementos. Mas, quanto mais pesquisavam, mais
elementos se tornavam conhecidos; hoje o seu número ultrapassa a casa dos cem.
Esses elementos não podiam ser o último, que, a seguir, se julgou ter
descoberto nos átomos. Mas estes, por sua vez, também mostraram ser compostos
de partículas elementares, cujo número actualmente é tão elevado que não é mais
possível deter-se neles, mas se impõe nova arrancada para, talvez, encontrar
finalmente a matéria original. Nos seis princípios encontramos como que as
partículas elementares do crístico, mas, não haveria, por trás deles, um núcleo
único, simples, como que o germe do cristianismo? Há, e creio que, – após o que
se disse – sem perigo de estar formulando uma simples frase sentimental,
podemos afirmar que os seis princípios, em última análise, se concentram no
único e uno princípio do amor. Digamo-lo grosseiramente e até com equívocos:
não é verdadeiro cristão o membro confessional do partido, mas aquele que se
tornou realmente humano pela sua vivência cristã. Não aquele que observa de
maneira servil um sistema de normas e de leis, apenas com vistas para si mesmo,
mas aquele que se tornou livre para a simples humana bondade. Certamente, para
ser autêntico, o princípio "amor" há-de incluir a fé. Somente assim se
conserva o que é. Porque sem a fé, que aprendemos a encarar como expressão de
uma derradeira necessidade humana de receber e da insuficiência de todas as
próprias realizações, o amor não passará de acção arbitrária. O amor assim,
elimina-se, transformando-se em auto-justiça: fé e amor condicionam-se
mutuamente. Desta forma deve acrescentar-se que no princípio "amor"
está presente o princípio "esperança" que busca o todo, ultrapassando
o instante e o seu parcelamento. Portanto, a nossa análise conduz-nos de per si
às palavras com que S. Paulo indica as colunas mestras do Cristianismo:
"Agora estas três coisas são constantes: a fé, a esperança, a caridade;
mas a maior delas é a caridade" (1Cor 13,33).
joseph ratzinger, Tübingen, verão de 1967.
(Revisão da versão portuguesa por ama)