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A Cidade Deus |
A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO XI
CAPÍTULO
IV
Criação do Mundo: ela não é intemporal nem foi estabelecida segundo um plano
novo de Deus, com o se Deus tivesse querido depois o que antes não quisera.
De todos os seres visíveis o maior é o Mundo; de todos os invisíveis o maior é
Deus. Mas que o Mundo exjste — vemo-lo nós; que Deus existe — cremo-lo. De que
Deus fez o Mundo não temos mais segura garantia para o crer do que o próprio Deus. Onde o ouvimos? Em parte alguma melhor, com certeza, do que nas Santas Escrituras onde um seu
profeta disse:
No princípio fez Deus o Céu e a Terra.[i]
Então este profeta estava lá quando Deus criou o Céu e a Terra? Não. Mas esteve
lá a Sabedoria de Deus pela qual se fizeram todas as coisas, que se transmite
também às almas santas, faz delas os amigos e profetas de Deus, e, no seu
íntimo, silenciosamente, lhes conta as suas obras.
Também lhes falam os anjos de Deus que vêem sempre a face do Pai e anunciam a
sua vontade a quem é preciso. Era um deles o profeta que disse e escreveu:
No princípio fez Deus o Céu e a
Terra.[ii]
é tal a autoridade que tem, como testemunho, para que acreditemos em Deus, que,
pelo mesmo Espírito de Deus (que por revelação lhe deu a conhecer estas coisas)
predisse com tanta antecedência a nossa fé.
E porque é que ao Deus eterno aprouve criar, então, o Céu e a Terra que antes
não tinha criado? Se os que isto perguntam pretendem que o Mundo é eterno, sem
princípio e, portanto, parece que não foi feito por Deus, estão muito afastados
da verdade e deliram atingidos da enfermidade mortal de impiedade. Porque, além
das vozes proféticas, o próprio Mundo pelas suas mudanças e revoluções tão bem
ordenadas, com o pelo esplendor de todas as coisas visíveis, proclama
silenciosamente, a bem dizer, não só que foi feito, mas também que não pôde ser
feito senão por Deus inefável e invisivelmente grande, inefável e
invisivelmente belo.
Outros há que confessam que o Mundo foi feito por Deus; todavia, não admitem
que ele tenha tido começo no tempo, mas sim começo na sua criação: de uma
maneira difícil de compreender, foi feito desde sempre. Julgam estes que, com
tal maneira de dizer, defendem Deus de certa temeridade fortuita, não se vá
crer que lhe veio de repente ao espírito a ideia, jamais antes concebida, de fazer
o Mundo, e que foi determinado por uma vontade nova — Ele até então
absolutamente imutável. Não vejo como, em outras questões, poderão sustentar
esta opinião, sobretudo acerca da alma. Se pretendem que ela é co-etema com
Deus, torna-se-lhes impossível explicar donde lhe adveio um a infelicidade
nova, nunca antes por ela experimentada na eternidade. Se disserem que ela
sofreu sempre alternativas de infelicidade e de felicidade, terão, então, de
afirmar esta alternativa também para sempre — mas, então, seguir-se-ia o
absurdo de, nos momentos em que se diz feliz, mesmo neles não poder sê-lo, se
prevê a sua infelicidade e torpeza futura. E se não prevê, mas crê que será
sempre feliz, e essa falsa crença a torna nesse caso feliz — nada se pode
afirmar de mais insensato.
E, se se pensar que sempre, no decurso dos séculos infinitos, ela suportou
alternativas de infelicidade e de felicidade, mas que agora, finalmente
libertada, não voltará a cair na infelicidade, fica-se, pelo menos, obrigado a admitir
que ela nunca foi verdadeiramente feliz, mas vai apenas começar a sê-lo de um a
felicidade nova que não engana. Confessar-se-á, então, que qualquer coisa de
novo lhe aconteceu, qualquer coisa de grande e de magnífico que ela jamais
antes conhecera durante a sua eternidade. Se negarem que Deus, por um desígnio
eterno, foi a causa desta novidade, terão também que negar que Ele é o autor da
felicidade — o que é um a abominável impiedade. Se disserem que o próprio Deus,
por um novo desígnio decidiu que a alma será doravante feliz para sempre — como
é que o mostrarão então alheio à mutabilidade que nem mesmo eles querem
admitir? Mas, se se confessar que a alma foi criada no tempo e que em nenhum momento
do futuro ela perecerá, à maneira de um número que tem começo, mas não tem fim,
de maneira que, depois de ter experimentado um a vez a infelicidade e desta se
ter libertado, ela não voltará a conhecê-la, ninguém duvidará de que isso
acontecerá sem prejuízo para a imutabilidade dos desígnios de Deus. Creia-se,
pois, também que o Mundo pôde ser feito no tempo sem que, ao fazê-lo, Deus tenha mudado o seu desígnio e a sua vontade eterna.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)