|
Leitura Espiritual
Temas actuais do cristianismo |
Ao
longo desta entrevista, tem havido ocasião de comentar aspectos importantes da
vida humana o especificamente da vida da mulher, e de reconhecer como o
espírito do Opus Dei os valoriza. Para terminar, poder-nos-ia dizer como
considera que se deve promove, o papel da mulher na vida da Igreja?
Não
posso ocultar que, ao responder a uma pergunta deste tipo, sinto a tentação -
contrária ao meu proceder habitual - de fazê-lo de um modo polémico, porque há
algumas pessoas que empregam essa linguagem de um modo clerical, usando a
palavra Igreja como sinónimo de algo que pertence ao clero, à Hierarquia
eclesiástica. E assim, por participação na vida da Igreja entendem, só ou
principalmente, a ajuda prestada à vida paroquial, a colaboração em associações
“com mandato” da Hierarquia, a assistência activa nas funções litúrgicas e
coisas semelhantes.
Quem
pensa assim esquece na prática - ainda que talvez o proclame na teoria - que a
Igreja é a totalidade do Povo de Deus, o conjunto de todos os cristãos, que,
portanto, onde estiver um cristão que se esforce por viver em nome de Jesus
Cristo, aí está presente a Igreja.
Com
isto não pretendo minimizar a importância da colaboração que a mulher pode
prestar à vida da estrutura eclesiástica. Pelo contrário, considero-a
imprescindível. Tenho dedicado a minha vida a defender a plenitude da vocação
cristã do laicado, dos homens e das mulheres que vivem no meio do mundo e, por
conseguinte, a procurar o pleno reconhecimento teológico e jurídico da sua
missão na Igreja e no mundo.
Só
quero fazer notar que há quem promova uma redução injustificada dessa
colaboração, e afirmar que o cristão comum, homem ou mulher, só pode cumprir a
sua missão específica, também a que lhe corresponde dentro da estrutura
eclesial, desde que não se clericalize, se continuar a ser secular, corrente,
pessoa que vive no mundo e que participa dos cuidados do mundo.
Compete
aos milhões de mulheres e de homens cristãos que enchem a Terra, levar Cristo a
todas as actividades humanas, anunciando com as suas vidas que Deus ama a todos
e quer salvar a todos. Por isso, a melhor maneira de participarem na vida da
Igreja, a mais importante e a que, pelo menos, tem de estar pressuposta em
todas as outras, é a de serem integralmente cristãos no lugar onde estão na
vida, onde a sua vocação humana os levou.
Como
me emociona pensar em tantos cristãos, homens e mulheres, que, talvez sem se
proporem fazê-lo de maneira específica, vivem com simplicidade a sua vida de
cada dia, procurando encarnar nela a Vontade de Deus! Fazer-lhes tomar
consciência da sublimidade da sua vida, revelar-lhes que isso, que parece sem
importância, tem um valor de eternidade, ensinar-lhes a escutar mais
atentamente a voz de Deus, que lhes fala através de acontecimentos e situações,
é do que a Igreja tem hoje premente necessidade, porque é nesse sentido que
Deus a está urgindo.
Cristianizar
o mundo inteiro a partir de dentro, mostrando que Jesus Cristo redimiu toda a
humanidade - essa é a missão do cristão. E a mulher participará nela da maneira
que lhe é própria, tanto no lar como nas tarefas que desempenhe, realizando as
suas virtualidades peculiares.
O
principal é, pois, que, como Santa Maria - mulher, Virgem e Mãe - vivam
voltadas para Deus, pronunciando esse fiat
mihi secundum verbum tuum [ii],
faça-se em mim segundo a tua palavra, do qual depende a fidelidade à vocação
pessoal, única e intransferível em cada caso, que nos fará cooperadores da obra
de salvação que Deus realiza em nós e no mundo inteiro.
Acabais
de ouvir a leitura solene dos dois textos da Sagrada Escritura correspondentes
à Missa do XXI Domingo depois de Pentecostes. Tendo ouvido a palavra de Deus,
já estais situados no âmbito em que se hão-de mover as palavras que agora vos
dirijo: palavras de sacerdote, pronunciadas perante uma grande família de
filhos de Deus na sua Santa Igreja. Palavras, pois, que desejam ser
sobrenaturais, pregoeiras da grandeza de Deus e das suas misericórdias para com
os homens; palavras que vos disponham para a impressionante Eucaristia que hoje
celebramos aqui no campus da Universidade de Navarra.
Considerai
por uns instantes o facto que acabo de mencionar. Celebramos a Sagrada
Eucaristia, o sacrifício sacramental do corpo e do sangue de Nosso Senhor, esse
mistério de fé que reúne em si todos os mistérios do Cristianismo. Celebramos,
portanto, a acção mais sagrada e transcendente que o homem, por graça de Deus,
pode realizar nesta vida. Comungar o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor é, de
certo modo, desligar-nos dos laços de terra e de tempo, para estar já com Deus
no Céu, onde o próprio Cristo enxugará as lágrimas dos nossos olhos e onde não
haverá morte, nem pranto, nem gritos de fadiga, porque o mundo velho já terá
passado [iv].
Esta
verdade tão consoladora e profunda, esta significação escatológica da
Eucaristia, como costumam denominá-la os teólogos, poderia, no entanto, ser mal
entendida; e de facto tem-no sido, sempre que se tem pretendido apresentar a
existência cristã como algo de exclusivamente espiritual - espiritualista,
quero dizer - próprio da gente pura, extraordinária, que não se mistura com as
coisas desprezíveis deste mundo, ou que, quando muito, as tolera como realidade
necessariamente justaposta ao espírito, enquanto aqui vivemos.
Quando
se vêem as coisas deste modo, o lugar por excelência da vida cristã passa a ser
o templo; e ser cristão, nesse caso, consiste em ir ao templo, participar em
cerimónias sagradas, incrustar-se numa sociologia eclesiástica, numa espécie de
mundo segregado, que se apresenta a si mesmo como a antecâmara do Céu, enquanto
o mundo comum segue o seu próprio caminho. A doutrina do Cristianismo e a vida
da graça passariam, por conseguinte, como que roçando o atribulado avançar da
história humana, mas sem se encontrarem com ele.
Nesta
manhã de Outubro, enquanto nos dispomos a penetrar no memorial da Páscoa do
Senhor, respondemos simplesmente que não a essa visão deformada do
Cristianismo. Reflecti um momento no enquadramento da nossa Eucaristia, da
nossa Acção de Graças: encontramo-nos num templo singular; poderíamos dizer que
a nave é o campus universitário; o retábulo, a Biblioteca da Universidade; além
a maquinaria que levanta novos edifícios; e por cima, o céu de Navarra...
Esta
enumeração não vos confirma, de uma forma palpável e inesquecível, que o
verdadeiro lugar da vossa existência cristã é a vida corrente? Meus filhos,
onde estiverem os homens, vossos irmãos; onde estiverem as vossas aspirações, o
vosso TRABALHO, os vossos amores, é aí que está o sítio do vosso encontro
quotidiano com Cristo. É no meio das coisas mais materiais da Terra que devemos
santificar-nos, servindo Deus e todos os homens.
114
Tenho
ensinado constantemente com palavras da Sagrada Escritura: o mundo não é mau
porque saiu das mãos de Deus, porque é uma criatura Sua, porque Iavé olhou para
ele e viu que era bom [v].
Nós, os homens, é que o tornamos mau e feio, com os nossos pecados e as nossas
infidelidades. Não duvideis, meus filhos: qualquer forma de evasão das honestas
realidades diárias é, para vós, homens e mulheres do mundo, coisa oposta à
vontade de Deus.
Pelo
contrário, deveis compreender agora - com uma nova clareza - que Deus vos chama
a servi-Lo em e a partir das ocupações civis, materiais, seculares da vida
humana: Deus espera-nos todos os dias no laboratório, no bloco operatório, no
quartel, na cátedra universitária, na fábrica, na oficina, no campo, no lar e
em todo o imenso panorama do TRABALHO. Ficai a saber: escondido nas situações
mais comuns há um quê de santo, de divino, que toca a cada um de vós descobrir.
Eu
costumava dizer àqueles universitários e àqueles operários que vinham ter
comigo por volta de 1930 que tinham que saber materializar a vida espiritual.
Queria afastá-los assim da tentação, tão frequente então como agora, de viver
uma vida dupla: a vida interior, a vida de relação com Deus, por um lado; e por
outro, diferente e separada, a vida familiar, profissional e social, cheia de
pequenas realidades terrenas.
Não,
meus filhos! Não pode haver uma vida dupla; se queremos ser cristãos, não
podemos ser esquizofrénicos. Há uma única vida, feita de carne e espírito, e
essa é que tem de ser - na alma e no corpo - santa e cheia de Deus, deste Deus
invisível que encontramos nas coisas mais visíveis e materiais.
Não
há outro caminho, meus filhos: ou sabemos encontrar Nosso Senhor na nossa vida
corrente ou nunca O encontraremos Por isso posso dizer-vos que a nossa época
precisa de restituir à matéria e às situações que parecem mais vulgares o seu
sentido nobre e original, colocá-las ao serviço do Reino de Deus,
espiritualizá-las, fazendo delas o meio e a ocasião do nosso encontro
permanente com Jesus Cristo.
115
O
sentido cristão autêntico - que professa a ressurreição de toda a carne -
sempre combateu, como é lógico, a desencarnação, sem receio de ser julgado
materialista. É lícito, portanto, falar de um materialismo cristão, que se opõe
audazmente aos materialismos fechados ao espírito.
Que
são os sacramentos - vestígios da Encarnação do Verbo, como afirmaram os
antigos - senão a mais clara manifestação deste caminho que Deus escolheu para
nos santificar e levar para o Céu? Não vedes que cada sacramento é o amor de
Deus, com toda a sua força criadora e redentora, que se nos dá servindo-se de
meios materiais? O que é esta Eucaristia - já iminente - senão o Corpo e o
Sangue adoráveis do nosso Redentor, que Se nos oferece através da humilda
matéria deste mundo - vinho e pão - através dos elementos da natureza
cultivados pelo homem, como o último Concílio Ecuménico quis recordar? [vi]
Compreende-se,
meus filhos, que o Apóstolo pudesse escrever: todas as coisas são vossas; vós sois
de Cristo e Cristo de Deus [vii].
Trata-se de um movimento ascendente que o Espírito Santo, difundido nos nossos
corações, quer provocar no mundo: da terra até à glória de Nosso Senhor. E para
que ficasse claro que nesse movimento se incluía até o que parece mais
prosaico, S. Paulo escreveu também: quer comais, quer bebais, fazei tudo para
glória de Deus [viii].
(cont)
[i]
Entrevista
realizada por Pilar Salcedo, publicada em Telva (Madrid), em 1 de Fevereiro de
1968 e reproduzida em Mundo Cristiano (Madrid) em 1 de Março do mesmo ano.
[iii]
Homilia
pronunciada no campus da Universidade de Navarra, em 8 de Outubro de 1967.
[vi] Cfr. Gaudium et Spes,
nº 38