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Navegando pela minha cidade
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“Morta por dentro, mas de pé, de pé, como as árvores”. Ouvi esta frase dita pela Palmira Bastos há muitos anos no Teatro São João. Nunca mais me esqueci da energia que saía daquele corpo frágil e já muito envelhecido enquanto batia com a bengala no chão, com uma força e vitalidade imensas.
Esta afirmação categórica vincada – sincopadamente - com aquelas pancadas no chão do palco ficou-me gravada como uma absoluta lei da botânica e da ascética.
Essa eternidade vertical de obelisco que é morrer-se de pé e essa eternidade que é morrer-se para si próprio.
Mas as árvores no Porto não morrem de pé. Quando os cientistas e os técnicos da Câmara Municipal do Porto decretam que uma árvore está doente, abatem-na.
“Porém, com o desenvolver dos trabalhos de poda das restantes, os serviços de Ambiente constataram um sexto Liquidamber que mostrava extensas e abundantes cavidades interiores, com fortes sinais de podridões activas, claramente debilitadoras da resistência do lenho e consequente sustentação do peso global do exemplar”.
Esta era uma parte da notícia com o título: Câmara abateu seis árvores na Coronel Pacheco e vai plantar sete.
Claro que fui lá ver se era verdade. Era.
Naquela Praça há anos e anos transformada num miserável parque de estacionamento, mesmo em frente à PSP, vários troncos cortados e empilhados mostravam, na sua imensa beleza caída, o interior cheio de vazios.
E depois? Não podiam tratá-las? Não podiam preencher aquelas cavernas? Árvores cinquentenárias que todos as Primaveras renasciam de novo e que em todos os Outonos se transformavam em autênticas fogueiras vegetais num esplendor de folhas feitas chamas amarelas, laranjas, e encarnadas?
Árvores que durante tantos anos preencheram tantos vazios de tanta gente não mereciam ser abatidas por gente tão cheia de arrogância.
Só o nome desta execução faz lembrar um açougue. Abatem-se os frangos, os porcos e os cavalos, as árvores não.
Esta falta de respeito urbano-decadente é um sinal dos tempos. Em 1854 o Chefe índio Seattle escreveu ao Grande Chefe Branco de Washington o seguinte: “…A seiva que circula nas veias das árvores leva consigo a memória dos Peles Vermelhas“. Estas seis também levavam a minha, a nossa.
Triste e já sem força sequer para a revolta fui descendo, entrei pela Travessa de Cedofeita, vi um graffiti que gritava RAPE ME e outro que invectivava VOTA IDIOTA e entrei na Rua de Cedofeita ainda mais angustiado.
Eram cerca das três da tarde e as pessoas passavam em silêncio. Foi então que vi caminhando na minha direcção um homem de meia-idade. Este homem, cuja cara transmitia um absoluto vazio de esperança ou qualquer sombra de ânimo, trazia pendurado por uma espécie de suspensórios um placard à frente do peito e outro igual nas costas. Era um Homem/Placard.
O placard anunciava: PENHORES EMPRÉSTIMOS SOBRE VALORES – OURO PRATA JOIAS RELÓGIOS – Rua de Cedofeita, 516 – 1º (junto à PSP)
Nesta crise de valores há muitos a quererem emprestar sobre valores. Os abutres vêem a carniça a grande distância e a planície está juncada de troncos humanos com extensas e abundantes cavidades interiores e de especuladores financeiros com fortes sinais de podridão e todas as famílias estão com a resistência claramente debilitada.
Aquele homem também já tinha sido abatido e para maior escárnio, os Midas das crises pregaram-lhe no tronco um anúncio para roubar o ouro, a prata e as jóias a quem já tinha sido roubada a esperança, o futuro e a dignidade.
Afonso Cabral