A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO XIV
CAPÍTULO XII
Gravidade do pecado cometido pelos primeiros homens.
Alguém poderá ficar impressionado por a natureza humana não sofrer pelos outros
pecados uma alteração como a que sofreu com a prevaricação dos primeiros homens
ao ponto de ficar sujeita à corrupção que verificamos e sentimos. Por essa
prevaricação ficou ela sujeita à morte e submetida a tantas e tão grandes
perturbações contraditórias. Com certeza que não era assim no Paraíso antes do
pecado, embora existisse em um corpo animal. Se alguém, repito, ficar com isso
impressionado, nem por isso se deve considerar com o leve e pequena a falta, lá
porque apenas foi cometida em questão de com ida e que nem sequer era má e
nociva a não ser por ser proibida. De facto, Deus não iria criar nem plantar em
lugar de tão grande felicidade o que quer que fosse de mau. O que no preceito
se recomendou foi a obediência — virtude que é como que a mãe e guardiã de
todas as virtudes na criatura racional. A criatura racional foi criada de tal
feição que lhe é útil estar sujeita à obediência e é-lhe prejudicial fazer a
sua própria vontade e não a d’Aquele por quem foi criada. Assim, este preceito
de não comer de certo género e comida onde tão grande abundância de outras havia
— tão fácil de cumprir, tão breve para ser retido na memória, sobretudo quando
a concupiscência ainda não resistia à vontade, o que aconteceu logo depois do
castigo — violado com tanta maior injustiça quanto mais facilmente podia ser
observado.
CAPÍTULO XIII
Na prevaricação de Adão a vontade má foi anterior à má acção.
Foi no seu íntimo que começaram a ser maus para logo caírem em ostensiva
desobediência. De facto, não se chega ao acto mau sem que a vontade má o tenha
precedido. Ora qual pode ser o começo da vontade má senão a soberba?
Efectivamente,
o orgulho é o começo de todo o pecado.[i]
Mas que é a soberba senão o desejo de uma falsa grandeza? A grandeza perversa
está, na verdade, em abandonar o princípio ao qual a alma se deve unir para se tornar
de certo modo seu próprio princípio. Isso realiza-se quando ela se compraz
demasiadamente em si própria. E, de facto, com praz-se em si própria quando se
afasta daquele imutável bem que devia agradar-lhe mais do que ela própria a si
mesma. Mas este defeito é espontâneo — porque se a vontade se mantivesse no amor
do bem superior e imutável que, para fazer ver, ilumina, e, para fazer amar,
inflama, a mulher dele não se teria desviado para se
comprazer em si própria nem por sua causa se teria obscurecido e arrefecido. A
mulher não teria acreditado nas palavras da serpente nem o homem teria
preferido a vontade da esposa ao preceito de Deus; ele não teria pensado que
cometeria uma simples transgressão venial do preceito ao violá-lo para se
conservar fiel à companheira da sua a mesmo na cumplicidade do pecado.
Portanto, o mal, a transgressão em comer do alimento proibido, não se realizou
senão por comerem-no quando já eram maus. Realmente, aquele mau fruto não
poderia provir senão de urna árvore má. Mas o que tornou a árvore má foi o acto
contrário à natureza, pois sem o vício da vontade oposto à natureza, ela em tal
se não teria tornado. Todavia, só pode tornar-se depravada pelo vício uma
natureza tirada do nada. E o ser natureza advém-lhe de ter sido feita por Deus:
mas decair do que é advém-lhe de ter sido tirada do nada. O homem não decaiu ao
ponto de se tornar mesmo nada, mas, inclinando-se para si próprio, tornou-se
menos do que era quando estava unido ao que é plenamente. Abandonar a Deus para ficar
em si próprio, isto é, para em si próprio se com prazer, ainda não é o nada,
mas é já aproximar-se do nada.
Daí que os soberbos, segundo as
Sagradas Escrituras, sejam chamados por outro nome — «os que em si se
comprazem» [ii]. De certo que é bom ter «o coração ao alto», mas não para si
próprio — o que é soberba —mas «para o Senhor» — o que é próprio de uma
obediência que só dos humildes pode ser [iii]. Assim é próprio da humildade levantar «o coração ao alto» de forma maravilhosa e é próprio da soberba
baixá-lo. Parece haver nisto uma certa contradição: a altivez rebaixa e a
humildade eleva. Mas uma piedosa humildade torna-nos submissos a quem está acima
de nós — e nada está mais acima de nós do que Deus; a humildade que nos torna
submissos a Deus exalta-nos, portanto. A altivez, porém, é um vício
precisamente nos recusar a submissão, afastando-se d’Aquele acima do qual nada
existe, e por isso mais se rebaixa, cumprindo-se o que está escrito:
Abateste-los quando se levantavam.[iv]
E não diz «quando se tinham levantado», como se primeiro se levantassem e em
seguida fossem rebaixados, mas diz «quando se levantavam» são então rebaixados,
porque levantar-se desse modo é já rebaixar-se.
É por isso que agora, na Cidade de Deus e à Cidade de Deus, a peregrinar neste
século, muito se recomenda a humildade, altamente exaltada no seu rei que é
Cristo. Nas Sagradas Escrituras ensina-se que o. vício da soberba, contrário a
essa virtude, domina sobretudo no seu adversário que é o Diabo. Sem dúvida que
é grande a diferença que opõe as duas cidades: um a, a sociedade dos homens piedosos, a outra, a dos
ímpios, cada um a com os seus anjos próprios em que prevaleceu o amor de Deus
ou o amor de si mesmo.
O Diabo não teria, portanto, surpreendido o homem em evidente e manifesto
pecado de fazer o que Deus tinha proibido, se ele não tivesse começado já a
comprazer-se em si mesmo. Já se deleitava com o dito:
Tê-lo-iam sido melhor se se conservassem unidos pela obediência ao verdadeiro e
supremo princípio, em vez de se fazerem, por soberba, seu próprio princípio.
Porque deuses criados não são na verdade deuses por si mesmos, mas pela
participação do verdadeiro Deus. Mas encontra menos de ser, ao procurar mais de
ser, aquele que, ao - escolher bastar-se a si, se afasta d’Aquele que, na
verdade, e basta. Portanto, esse mal — em que o homem, comprazendo-se em si
mesmo com o se tosse luz, se afasta dessa luz que o teria tornado luz se ele
nela pusesse as suas complacências — esse mal, digo eu, precedeu secretamente o
da desobediência, de forma que se seguiu o mal cometido às claras. É, de tacto,
verdade o que está escrito:
O coração exalta-se antes da queda e humilha-se antes da glória.[vi]
Essa ruína que se produz às ocultas precede a ruína que se produz às claras, embora
a primeira se não tom e por ruína. Quem é que, de tacto, tomaria a exaltação
por ruína? Quando se abandona o Altíssimo não haverá já queda? Quem é que não
verá a ruína na transgressão evidente e indubitável do mandamento? Por isso é
que Deus proibiu o que, uma vez cometido, não poderia encontrar pretexto algum
que o justificasse. E eu ate ouso dizer que é útil aos soberbos que
caiam em pecado evidente e manifesto, para que sintam desgosto consigo mesmos,
eles que, ao cair, já tinham sentido prazer. Realmente, foi mais salutar para
Pedro o seu desgosto quando chorou do que o seu prazer quando se gabou. E o que
diz o salmo sagrado:
Enche-lhes, Senhor, a cara de ignomínia que eles procurarão o teu
nome, [vii]
isto é, para que se comprazam em
procurar o teu nome os que se tinham comprazido em procurarem o seu.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[iii] Há aqui uma clara alusão ao diálogo
que, na liturgia eucarística, entre celebrante e assembleia dos fiéis se
travava momentos antes do «prefácio». Ao convite do Sacerdote para que
se elevem os corações ao alto — sursum corda (ou sursum
cor — coração ao alto — como dizia, no singular, na liturgia
africana) respondia a assembleia habemus ad Dominum (temo-los
elevados para o Senhor). Ainda soam ao nosso ouvido estas expressões latinas
que só toram substituídas pela linguagem comum depois do Vaticano II.