Jesus Cristo o Santo de Deus
Capítulo III
ACREDITAS?
A divindade de Cristo no Evangelho de S.
João
1. Se não acreditardes que Eu Sou...
Um dia
estava eu a celebrar a Missa num convento de clarissas.
O terço evangélico proposto pela liturgia era a página de S. João em que Jesus
repetidamente anuncia o seu Eu Sou:
«Se não
acreditardes que Eu Sou morrereis nos vossos pecados... quando levantardes o
Filho do homem, então sabereis que Eu Sou... antes que Abraão existisse, Eu
Sou» [i].
O facto de Eu Sou, contrariamente a todas as regras
gramaticais, estar escrito no evangeliário com duas maiúsculas, ligado
certamente a qualquer outra causa mais misteriosa, fez acender uma centelha.
Aquela
palavra explodiu em mim. Sim, eu sabia que no Evangelho de S. João havia
numerosos ego eimi, «Eu Sou»,
pronunciados por Jesus e que isso era um facto importante para a Sua
cristologia. Mas era um conhecimento inerte e sem consequências.
Esse facto jamais me tinha alvoroçado. Porém, naquele dia, não aconteceu assim.
Estava-se na quadra pascal e parecia que o próprio Jesus ressuscitado tinha
proclamado o Seu nome divino perante o Céu e a terra. O Seu «Eu Sou» iluminava e enchia o universo.
Eu sentia-me
pequenino, como quem assiste, por acaso e à parte, a uma cena imprevistas e
extraordinária, ou a um grande espectáculo da natureza.
Não se
tratou senão de uma simples emoção de fé, mas foi uma emoção daquelas que,
tendo já passado, deixam no coração uma grande saudade.
Desejoso de
saber algo mais daquele «Eu Sou» de Cristo, recorri aos comentários modernos
sobre o Quarto Evangelho e verifiquei que eles são quase unânimes em ver
naquelas palavras de Jesus uma alusão ao Nome divino, como ele se apresenta,
por exemplo, em Isaías 43,10: para que saibais, que acrediteis em Mim e
entendamos que Eu Sou.
De resto, já
muito tempo antes, Santo Agostinho tinha relacionado esta palavra de Jesus com
a revelação do nome divino em Êxodo 3,14, e tinha concluído:
Parece-me
que o Senhor Jesus Cristo, dizendo, Se não acreditardes que Eu Sou, não quis
dizer nada mais que isto:
Graças sejam dadas a Deus porque Ele disse se não acreditais e não disse se não
compreenderdes. Se não compreendes, a fé salva-te [ii].
Tive a
ousadia de começar esta explanação sobre a divindade de Cristo com esta
recordação pessoal, porque, no âmbito do Quarto Evangelho, essa verdade
encontra a sua expressão mais palpitante precisamente naquele Eu Sou de Cristo.
Poder-se-ia
objectar que estas palavras de São João, desenvolvimentos tardios da fé, que
Jesus nada tem a ver com isso.
Mas a questão está mesmo aqui. Essas palavras são mesmo de Jesus; certamente de
Jesus ressuscitado que vive e falta agora no Espírito; mas são sempre palavras
de Jesus, do próprio Jesus de Nazaré.
Hoje
costuma-se distinguir as palavras de Jesus dos evangelhos em palavras
autênticas e em pessoas não autênticas, isto é, em pessoas pronunciadas
verdadeiramente por Ele durante a Sua vida, e em palavras a ele atribuídas
pelos Apóstolos depois da Sua morte. Mas esta distinção é muito ambígua e não
tem valimento no caso de Cristo, como no caso de um vulgar autor humano.
Não se trata
evidentemente, de pôr em dúvida o carácter plenamente humano e histórico dos
escritos do Novo Testamento, a diversidade dos géneros literários e das formas,
nem tampouco de regressar à antiga ideia de inspiração verbal e quase mecânica
da Escritura.
Trata-se
somente de saber se a inspiração bíblica tem ainda algum sentido para os
cristãos ou não; se quando dizemos que a bíblia é Palavra de Deus, este de Deus
tem para nós um significado qualitativamente diferente de qualquer outro caso,
ou se é somente um modo de dizer como qualquer outro.
Jesus dizia
que o Espírito Santo daria testemunho dele [iii] que
haveria de receber do que era Seu para O anunciar aos discípulos [iv]; e onde Lhe
daria este testemunho a não ser nas Escrituras por Ele inspiradas?
Mais ainda.
Jesus afirma
que Ele próprio haveria de continuar a falar através do Espírito:
«Virá o
tempo em que vos falarei já não por parábolas, mas abertamente vos falarei do
Pai [v].
Eu, e não
outro, vos falarei do Pai!
A que tempo futuro Se refere Jesus com estas palavras?
Não ao tempo
da Sua vida terrestre, onde não será já necessário que Ele fale ainda do Pai.
Refere-se ao tempo depois da Sua Páscoa e do Pentecostes, quando, através do
Seu Espírito, levou os discípulos à verdade plena da Sua relação com o Pai [vi], que é
aquilo que historicamente sabemos que aconteceu.
Certamente alguém poderá dizer que também aquelas palavras: «Eu vos falarei do
Pai", são exclusivamente do Evangelista; mas já não é extraordinário que
João tenha afirmado isso: que Ele acreditava que depois da Páscoa era ainda
Jesus que continuava a revelar-se e a revelar o Pai?
2. Tu dás testemunho de Ti próprio
É o próprio
Jesus, portanto, que no «Eu Sou» e de numerosos outros modos, Se autoproclama
Deus no Quarto Evangelho.
Ele tornará assim explícita uma reivindicação que, durante a Sua vida terrena,
fora já preparada, mesmo que só de forma implícita.
Os
Discípulos ainda não tinham capacidade para suportar o peso de tal revelação.
Mas este
motivo era secundário. O motivo pelo qual Jesus reserva a plena compreensão de
Si próprio para depois da Páscoa – e, portanto, para o testemunho dos Apóstolos
- é também outro, mais determinante. Precisamente porque a Sua morte e
ressurreição eram a chave para compreender quem Ele era.
Neste
sentido, o testemunho dos Apóstolos - isto é, na prática, os escritos do Novo
Testamento - são parte integrante da auto-revelação de Jesus. Jesus narrou
neles, com o Seu Espírito, aquilo que não podia narrar pessoalmente, sem antes
ter morrido e ressuscitado. Antes de saber «que Jesus era Deus», era importante
saber «que Deus era Jesus», e que isso só é revelado na Cruz e na ressurreição.
Portanto, não é só o Evangelista que proclama Jesus como «Deus», mas é Ele
próprio que Se auto-proclama como tal.
Já durante a
vida de Cristo existia a grande contestação: «Tu dás testemunho de Ti mesmo, o
Teu testemunho não é verdadeiro" [vii].
Jesus responde:
«Ainda que
Eu próprio dê testemunho de Mim, o Meu testemunho é verdadeiro, porque sei de
onde vim e para onde vou» [viii].
Esta
resposta só aparentemente é absurda e contrária a todas as nossas ideias de
testemunho.
«Se alguém
se conhece perfeitamente e com um conhecimento que, por sua natureza, não pode
ser compartilhado com outros, o único testemunho possível só pode ser o do
interessado» [ix] .
Ora este é
precisamente o caso de Jesus e somente dele.
Só Eles sabe donde vem e para onde vai; só Ele vem do Céu, ao passo que os
outros são cá de baixo. [x]
Jesus dá
testemunho de Si mesmo, pelo mesmo motivo pelo qual Deus - diz a Bíblia -
«jurou por Si mesmo já que não tinha ninguém superior a Si por quem jurasse». [xi]
Jesus
ilustra este facto recorrendo à imagem da luz:
«Eu sou a
luz do mundo» [xii].
Ele – dizia
o evangelista - «era a luz verdadeira». [xiii]
Pode o sol
receber luz de uma vela?
(cont)
rainiero cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia.
[ii]
Santo Agostinho, In Ioh 38,10 (PL 35,
1680)
[ix] C. H. Dodd, A
Interpretação do IV Evangelho, Brescia, 1974, p. 260.