São Josemaria Escrivá
Amigos de Deus
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Veracidade
e justiça
As virtudes humanas exigem de nós um
esforço contínuo, porque não é fácil manter durante muito tempo uma têmpera de
honradez perante as situações que parecem comprometer a nossa segurança.
Reparemos
na limpidez da veracidade: mas será certo que caiu em desuso?
Terá
triunfado definitivamente a conduta de compromisso, o dourar a pílula e o
pintar a fachada?
Teme-se
a verdade.
Por
isso se lança mão de um expediente mesquinho: afirmar que ninguém vive nem diz
a verdade e que todos recorrem à simulação e à mentira.
Felizmente não é assim.
Existem
muitas pessoas - cristãos e não cristãos - decididas a sacrificar a sua honra e
a sua fama pela verdade, que não andam a saltitar constantemente de um lado
para o outro para procurar o sol que mais aquece.
São
os mesmos que, por amor à sinceridade, sabem rectificar quando descobrem que se
enganaram.
Só não rectifica quem começa por mentir,
quem reduz a verdade a uma palavra sonora para encobrir as suas claudicações.
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Se formos verazes, seremos justos.
Nunca me cansaria de falar da justiça, mas
aqui só podemos apontar alguns aspectos, sem perder de vista qual é a
finalidade de todas estas reflexões: edificar uma vida interior real e
autêntica sobre os alicerces profundos das virtudes humanas.
Justiça
é dar a cada um o que é seu.
Mas
acrescentaria que isso não basta.
Por
muito que cada um mereça, é preciso dar-lhe mais, porque cada alma é uma
obra-prima de Deus.
A melhor caridade consiste em exceder-se
generosamente na justiça.
Esta
caridade costuma passar despercebida, mas a sua fecundidade estende-se ao Céu e
à terra.
É
um erro pensar que as expressões meio termo ou justo meio, na medida em que são
característica das virtudes morais, significam mediocridade: algo como a metade
do que é possível realizar.
Esse
meio entre o excesso e o defeito é um cume, um ponto álgido: o melhor que a
prudência indica.
Além
disso, em relação às virtudes teologais não se admitem equilíbrios: não se pode
crer, esperar ou amar de mais.
E
esse amor sem limites a Deus reverte a favor dos que nos rodeiam, em abundância
de generosidade, de compreensão, de caridade.
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Os
frutos da temperança
Temperança é domínio.
Nem tudo o que experimentamos no corpo e na
alma deve deixar-se à rédea solta.
Nem
tudo o que se pode fazer se deve fazer.
É
mais cómodo deixar-se arrastar pelos impulsos a que chamam naturais; mas no fim
desse caminho cada um encontra a tristeza, o isolamento na sua própria miséria.
Há pessoas que não querem recusar nada ao
estômago, aos olhos, às mãos; recusam-se a ouvir quem as aconselha a viver uma
vida limpa.
Utilizam
a faculdade de gerar - que é uma realidade nobre, participação no poder criador
de Deus - desordenadamente, como um instrumento ao serviço do egoísmo.
Mas nunca me agradou falar de impureza.
Quero
considerar os frutos da temperança, quero ver o homem verdadeiramente homem,
que não está preso às coisas que brilham sem valor, como as bujigangas que a
pega junta no ninho.
Esse
homem sabe prescindir do que prejudica a sua alma e apercebe-se de que o
sacrifício é só aparente: porque ao viver assim - com sacrifício - livra-se de
muitas escravidões e consegue, no íntimo do seu coração, saborear todo o amor
de Deus.
A vida ganha então as perspectivas que a
intemperança esbate; ficamos em condições de nos preocuparmos com os outros, de
compartilhar com todos o que nos pertence, de nos dedicarmos a tarefas grandes.
A
temperança torna a alma sóbria, modesta, compreensiva; facilita-lhe um recato
natural que é sempre atraente, porque se nota o domínio da inteligência na
conduta.
A
temperança não supõe limitação, mas grandeza.
Há
muito maior privação na intemperança, porque o coração abdica de si próprio
para servir o primeiro que lhe fizer soar aos ouvidos o ruído de uns chocalhos
de lata.
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A
sabedoria do coração
O
sábio de coração será chamado prudente, lê-se no livro dos
Provérbios.
Não
compreenderíamos a prudência se a concebêssemos como pusilanimidade e falta de
audácia.
A
prudência manifesta-se no hábito que predispõe a actuar bem: a esclarecer o fim
e a procurar os meios mais convenientes para o alcançar.
Mas a prudência não é um valor supremo.
Temos
de perguntar sempre a nós próprios: prudência, para quê? Porque existe uma
falsa prudência - a que deveríamos antes chamar astúcia - que está ao serviço
do egoísmo, que se serve dos recursos mais adequados para atingir fins
retorcidos.
Usar
então de muita perspicácia não leva senão a agravar a má disposição e a merecer
aquela censura que Santo Agostinho formulava, quando pregava ao povo: pretendes forçar o coração de Deus, que é
sempre recto, para que se acomode à perversidade do teu?
Essa
é a falsa prudência daquele que pensa que as suas próprias forças são mais do
que suficientes para se justificar.
Não
vos queirais ter a vós mesmos por sábios, diz S. Paulo, porque está escrito: Destruirei a sabedoria
dos sábios e reprovarei a prudência dos prudentes.
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S. Tomás aponta três actos deste bom hábito
da inteligência: pedir conselho, julgar rectamente e decidir.
O
primeiro passo da prudência é o reconhecimento das nossas limitações: a virtude
da humildade.
Admitir,
em determinadas questões, que não conseguimos chegar a tudo, que não podemos
abarcar, em tantos e tantos casos, circunstâncias que é preciso não perder de
vista à hora de julgar.
Por
isso nos socorremos de um conselheiro.
Não
de um qualquer, mas de quem estiver capacitado e animado pelos mesmos desejos
sinceros de amar a Deus e de o seguir fielmente.
Não
é suficiente pedir um parecer; temos de nos dirigir a quem no-lo possa dar
desinteressada e rectamente.
Depois, é necessário julgar, porque a prudência
exige habitualmente uma determinação pronta e oportuna.
Se
às vezes é prudente atrasar a decisão até conseguir todos os elementos do
juízo, noutras ocasiões seria uma grande imprudência não começar a pôr em
prática, quanto antes, aquilo que julgamos necessário fazer, especialmente
quando está em jogo o bem dos outros.
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Esta sabedoria do coração, esta prudência
nunca se converterá na prudência da carne a que se refere S. Paulo: a daqueles que têm inteligência, mas
procuram não a utilizar para descobrir e amar Nosso Senhor.
A verdadeira prudência é a que permanece
atenta às insinuações de Deus e, em vigilante escuta, recebe na alma promessas
e realidades de salvação: Eu te
glorifico, Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos
sábios e prudentes e as revelastes aos pequeninos.
Sabedoria do coração que orienta e rege
muitas outras virtudes.
Pela
prudência o homem é audaz, sem insensatez; não evita, por ocultas razões de
comodismo, o esforço necessário para viver plenamente segundo os desígnios de
Deus.
A
temperança do prudente não é insensibilidade nem misantropia; a sua justiça não
é dureza; a sua paciência não é servilismo.
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Não é prudente quem nunca se engana, mas
quem sabe rectificar os seus erros.
É
prudente, porque prefere não acertar vinte vezes a deixar-se ficar num cómodo
abstencionismo.
Não
age com precipitação desenfreada ou com absurda temeridade, mas assume o risco
das suas decisões e não renuncia a conseguir o bem com medo de não acertar.
Na
nossa vida encontramos companheiros ponderados, objectivos, que não se deixam
arrastar pela paixão inclinando a balança para o lado que mais lhes convém.
Quase
instintivamente, fiamo-nos dessas pessoas, porque procedem sempre bem, com
rectidão, sem presunção e sem espectáculo.
Esta virtude cordial é indispensável no
cristão; mas os objectivos últimos da prudência não são a concórdia social ou a
tranquilidade de evitar fricções.
O
motivo fundamental é o cumprimento da Vontade de Deus, que nos quer simples,
mas não pueris; amigos da verdade, mas nunca aturdidos ou superficiais.
O
coração prudente possuirá a ciência; e essa ciência é a do amor de Deus, o
saber definitivo, o que pode salvar-nos, dando a todas as criaturas frutos de
paz e de compreensão e, para cada alma, a vida eterna.
(cont)