Quaresma
Semana III
Evangelho:
Mt 5, 17-19
17 «Não julgueis que vim abolir a Lei ou os
Profetas; não vim para os abolir, mas sim para cumprir. 18 Porque em
verdade vos digo: antes passarão o céu e a terra, que passe uma só letra ou um
só traço da Lei, sem que tudo seja cumprido. 19 Aquele, pois, que
violar um destes mandamentos mesmo dos mais pequenos, e ensinar assim aos
homens, será considerado o mais pequeno no Reino dos Céus. Mas o que os guardar
e ensinar, esse será considerado grande no Reino dos Céus.
Comentário:
Refere-se, aqui, de forma muito clara, o que é a principal
necessidade do cristão: a unidade de vida!
«Seja o vosso falar: Sim, sim;
não, não. Tudo o que passa disto, procede do Maligno.»
Um
cristão tem de ser assim, claro, objectivo, concreto. Não pode tergiversar nem
no comportamento nem nas atitudes ou, ainda, conforme as circunstâncias.
Tem
de ser conhecido – e exemplo – por ser veraz, íntegro e constante na sua vida
que é, deve ser: seguir Cristo, fazer, em tudo, a vontade de Deus.
(ama, comentário sobre Mt 5, 17-19, 2014.02.16)
Leitura espiritual
SANTO
AGOSTINHO CONFISSÕES
LIVRO
PRIMEIRO
CAPÍTULO
VII
Os
pecados da primeira infância
Escuta-me, ó meu Deus! Ai
dos pecados dos homens! E quem isto te diz é um homem, e tu te compadeces dele
porque o criaste, e não foste autor do pecado que nele existe.
Quem me poderá lembrar o
pecado da infância, já que ninguém está diante de ti limpo de pecado, nem mesmo
a criança cuja vida conta um só dia sobre a terra? Quem mo recordará?
Acaso alguma criança
pequena de hoje, em quem vejo a imagem do que não recordo de mim? E em que eu
poderia pecar nesse tempo? Acaso por desejar o peito da nutriz, chorando? Se
agora eu suspirasse com a mesma avidez, não pelo seio materno, mas pelo
alimento próprio da minha idade, seria justamente escarnecido e censurado.
Logo, era então digno de repreensão o meu proceder; mas como não podia entender
a censura, nem o costume nem a razão permitiam que eu fosse repreendido. Prova
está que, ao crescermos, extirpamos e afastamos de nós essa sofreguidão; e
jamais vi homem sensato que, para limpar uma coisa viciosa, prive-a do que tem de
bom.
Acaso, mesmo para aquela
idade, era bom pedir chorando o que não se me podia dar sem dano, indignar-me
acremente com as pessoas livres que não se submetiam, assim como as pessoas
respeitáveis, e até com meus próprios pais, e com muitos outros que, mais
sensatos, não davam atenção aos sinais de meus caprichos, enquanto eu me
esforçava por agredi-los com os meus golpes, quanto podia, por não obedecerem
às minhas ordens, que me teriam sido danosas?
Daqui se segue que o que é
inocente nas crianças é a debilidade dos membros infantis, e não a alma.
Certa vez, vi e observei
um menino invejoso. Ainda não falava, e já olhava pálido e com rosto amargurado
para o irmãozinho colaço. Quem não terá testemunhado isso? Dizem que as mães e
as amas tentam esconjurar este defeito com não sei que práticas. Mas se poderá considerar
inocência o não suportar que se partilhe a fonte do leite, que mana copiosa e abundante,
com quem está tão necessitado do mesmo socorro, e que sustenta a vida apenas
com esse alimento? Mas costuma-se tolerar indulgentemente essas faltas, não
porque sejam insignificantes, mas porque espera-se que desapareçam com os anos.
Por isso, sendo tais coisas perdoáveis em um menino, quando se acham em um
adulto, mal as podemos suportar.
Assim, pois, meu Senhor e
meu Deus, tu que me deste a vida e corpo, o qual dotaste, como vemos, de
sentidos e proveste de membros, adornando-o de beleza e de instintos naturais, com
os quais pudesse defender sua integridade e conservação, tu me mandas que te
louve por esses dons e te confesse e cante teu nome altíssimo. Serias Deus omnipotente e bom ainda que só tivesses criado apenas estas coisas, que nenhum
outro pode fazer senão tu, ó Unidade, origem de todas as variedades, ó Beleza,
que dás forma a todas as coisas, e com tua lei as ordenas!
Tenho vergonha, Senhor, de
ter de somar à vida terrena que vivo aquela idade que não recordo ter vivido,
na qual acredito pelo testemunho de outros, por vê-lo assim em outras crianças,
embora essa conjectura mereça toda a fé. As trevas em que está envolto meu esquecimento
a seu respeito assemelham-se à vida que vivi no ventre de minha mãe.
Assim, se fui concebido em
iniquidade, e se em pecado me alimentou minha mãe, onde, suplico-te, meu Deus,
onde, Senhor, eu, teu servo, onde e quando fui inocente? Mas eis que silencio
sobre esse tempo. Para que ocupar-se dele, se dele já não conservo nenhuma lembrança?
CAPÍTULO
VIII
As
primeiras palavras
Acaso não foi caminhando
da infância até aqui que cheguei à puerícia? Ou melhor, esta veio a mim e
suplantou à infância sem que esta fosse embora, pois, para onde poderia ir?
Contudo deixou de existir,
porque eu já não era um bebezinho que não falava, mas um menino que aprendia a
falar. Disso me recordo; mas como aprendi a falar, só mais tarde é que vim a perceber.
Não mo ensinaram os mais velhos apresentando-me as palavras com certa ordem e método,
como logo depois fizeram com as letras; mas foi por mim mesmo, com o
entendimento que me deste, meu Deus, quando queria manifestar meus sentimentos
com gemidos, gritinhos, e vários movimentos do corpo, a fim de que atendessem
meus desejos; e também ao ver que não podia exteriorizar tudo o que queria, nem
ser compreendido por todos aqueles a quem me dirigia.
Assim, pois, quando
chamavam alguma coisa pelo nome, eu a retinha na memória e, ao se pronunciar de
novo a tal palavra, moviam o corpo na direção do objeto, eu entendia e notava
que aquele objecto era o denominado com a palavra que pronunciavam, porque
assim o chamavam quando o desejavam mostrar.
Que esta fosse sua
intenção, era-me revelado pelos movimentos do corpo, que são como uma linguagem
universal, feita com a expressão rosto, a atitude dos membros e o tom da voz,
que indicam os afectos da alma para pedir, reter, rejeitar ou evitar alguma
coisa. Deste modo, das palavras usadas nas e colocadas em várias frases e ouvidas
repetidas vezes, ia eu aos poucos notando o significado e, domada a dificuldade
de minha boca, comecei a dar a entender minhas vontades por meio delas.
Foi assim que comecei a
comunicar meus desejos às pessoas entre as quais vivia, e entrei a fazer parte
do tempestuoso mundo da sociedade, dependendo da autoridade de meus pais e obedecendo
às pessoas mais velhas.
CAPÍTULO
IX
Estudos
e jogos
Ó meu Deus, meu Deus! Que
de misérias e enganos não experimentei então, quando se me propunha, em
criança, como norma de bem viver, obedecer os mestres que me instigavam a brilhar
neste mundo, e me ilustrar nas artes da língua, fiel instrumento para obter honras
humanas e satisfazer a cobiça! Mudaram-me à escola, para que aprendesse as
letras, nas quais eu, miserável, desconhecia o que havia de útil. Contudo, se
era preguiçoso para aprendê-las, era fustigado, num sistema louvado pelos mais
velhos; muitos deles, que levavam esse género de vida antes de nós, nos
traçaram caminhos tão dolorosos pelos quais éramos obrigados a caminhar,
multiplicando assim o trabalho e a dor aos filhos de Adão.
Mas, por sorte, encontrei
homens que te invocavam, Senhor, e com eles aprendi a te sentir, quanto
possível, como a um Ser grande que podia escutar-nos e vir em nosso auxílio, embora
sem a percepção dos sentidos. Ainda menino, pois, comecei a invocar-te como
refúgio e amparo e, para te invocar, desatei os nós de minha língua; e, embora
pequeno, te rogava já com grande fervor para que não me açoitassem na escola. E
quando não me escutavas, o que servia para meu proveito os mestres, assim como
meus próprios pais, que certamente não desejavam o meu mal, riam-se daquele
castigo, que então era para mim grave suplício.
Porventura, Senhor, haverá
alguma alma tão grande, unida a ti com tão ardente afecto, pois isto também pode
ser produzido pela estultice – repito, uma alma que alcance tal grandeza de ânimo
que despreze os cavaletes e garfos de ferro, e os demais instrumentos de
martírio – para fugir dos quais se te dirigem súplicas de todas as partes do
mundo? Haverá uma alma que assim os despreze – rindo-se dos que têm deles tanto
horror – como se riam nossos pais dos tormentos que éramos castigados por
nossos mestres quando meninos? Porque, na verdade, não os temíamos menos, nem
te rogávamos com menor fervor para que nos livrasses deles.
Contudo, pecávamos por
negligencia escrevendo ou lendo, estudando menos do que nos era exigido; e não
era por falta de memória ou de inteligência, que para aquela idade, Senhor, me deste
de modo suficiente, senão porque eu gostava de brincar, embora os que nos castigavam
não fizessem outra coisa. Mas os jogos dos mais velhos chamavam-se negócios,
enquanto que os dos meninos eram por eles castigados, sem que ninguém se
compadecesse de uns e de outros, ou melhor, de ambos. Um juiz sensato poderia
aprovar os castigos que eu, menino, recebia porque jogava bola, e porque com
este jogo atrasava o aprendizado das letras, com as quais, adulto haveria de
jogar menos inocentemente?
Acaso fazia outra coisa
naquele que me castigava? Se nalguma questiúncula era vencido por algum colega
seu, não era mais atormentado pela cólera e pela inveja do que eu, quando numa partida
de bola era vencido por meu companheiro?
CAPÍTULO
X
Amor
ao jogo
Contudo, Senhor meu,
ordenador e criador da natureza, mas do pecado somente ordenador, eu pecava;
pecava desobedecendo as ordens de meus pais e mestres, uma vez que podia no
futuro fazer bom uso das letras que desejavam ensinar-me, qualquer que fosse a
sua intenção.
E não era desobediente
para me ocupar de coisas melhores, mas por amor ao jogo; buscava nos combates
orgulhosas vitórias; deleitava-me com histórias frívolas, com as quais incentivava
sempre mais minha curiosidade. Igualmente curiosos, meus olhos se abriam sempre
mais para os jogos e espectáculos dos adultos, jogos que dão tão grande
dignidade a quem os oferece, que quase todos desejam as mesmas dignidades para
seus filhos. Contudo, gostam de os castigar se com tais espectáculos fogem dos
estudos, por meio dos quais desejam que eles venham um dia a oferecer espectáculos semelhantes. Senhor, olha misericordiosamente para essas coisas, e
livra-nos delas a nós que já te invocamos; mas livra também os que ainda não te
invocam, a fim de que te invoquem, e sejam igualmente libertados.
CAPÍTULO
XI
O
baptismo diferido
Ainda menino, ouvi falar
da vida eterna, que nos está prometida pela humildade de Jesus, nosso Senhor,
que desceu até nossa soberba; e fui marcado com o sinal da cruz, sendo-me dado saborear
de seu sal logo que saí do ventre de minha mãe, que sempre esperou muito em ti.
Tu viste, Senhor, que numa
ocasião, ainda menino, atacou-me repentinamente um dor de estômago que me
abrasava, e que me aproximou da morte. Tu viste também, meu Deus, pois já me
tinhas sob a tua guarda, com que fervor de espírito e com que fé pedi à piedade
de minha mãe, e da mãe de todos nós, tua Igreja, o baptismo de teu Cristo, meu
Deus e Senhor. Perturbou-se minha mãe carnal, pois que me criava com mais amor
em seu casto coração em tua fé para a vida eterna e, solícita, já havia cuidado
de que me iniciasse e purificasse com os sacramentos da salvação,
confessando-te, ó meu Senhor Jesus, em remissão de meus pecados, quando, de repente,
comecei a melhorar. Em vista disso, diferiu-se a minha purificação,
considerando que seria impossível, se eu vivesse, que não me tornasse a
manchar; pois a culpa dos pecados cometidos depois do beatismo é muito maior e
mais perigosa.
Nesta época eu já tinha fé
verdadeira, juntamente com minha mãe e com todos da casa, à excepção de meu pai,
que, porém, não pôde vencer em mim a ascendência da piedade materna, para que
deixasse de acreditar em Cristo, tal como ele não acreditava; minha mãe,
solícita, cuidava de que tu, meu Deus, fosses mais pai para mim do que ele, e a
ajudavas a triunfar do marido, a quem servia melhor, porque nele te servia a ti
e a tuas ordens.
Mas, meu Deus, suplico-te
que me mostres, se te apraz, por que motivo se diferiu então meu baptismo; se
foi ou não para meu bem que me soltaram das rédeas do pecado. Por que razão ainda
hoje se diz de uns e de outros, como ouvimos em muitos lugares: “Deixe que faça
o que quiser, porque ainda não está baptizado” – embora não digamos da saúde do
corpo: “Deixe que receba ainda mais feridas, porque ainda não está curado?”
Quanto melhor teria sido
para mim receber logo a saúde, e que meus cuidados e os dos meus fossem
empregados em conservar intacta debaixo da tua protecção a saúde da minha alma, que
me havias concedido! Melhor fora, certamente; porém, como minha mãe, sem
dúvida, já previa quantas e quão grandes ondas de tentações me ameaçariam
depois da meninice, preferiu expor-me a elas como terra grosseira que depois
receberia forma, do que expor-me já como imagem tua.
(cont)
(Revisão
da versão portuguesa por ama)