São Josemaria Escrivá
CRISTO QUE PASSA
112
Nada há que seja alheio ao
interesse de Cristo.
Falando com profundidade
teológica, isto é, se não nos limitamos a uma classificação funcional, não se
pode dizer rigorosamente que haja realidades - boas, nobres e até indiferentes
- que sejam exclusivamente profanas, uma vez que o Verbo de Deus fixou morada
entre os filhos dos homens, teve fome e sede, trabalhou com as suas mãos,
conheceu a amizade e a obediência, experimentou a dor e a morte.
Porque foi do agrado de
Deus que residisse Nele toda a plenitude e por Ele fossem reconciliadas consigo
todas a coisas, pacificando, pelo sangue da sua Cruz, tanto as da Terra como as
dos Céus.
Devemos amar o mundo, o
trabalho, as realidades humanas. Porque o mundo é bom.
Foi o pecado de Adão que
desfez a harmonia divina da criação. Mas Deus Pai enviou o seu Filho unigénito
para restabelecer a paz, para que nós, tornados filhos de adopção, pudéssemos
libertar a criação da desordem e reconciliar todas as coisas com Deus.
Cada situação humana é
irrepetível, fruto de uma educação única, que se deve viver com intensidade,
realizando nela o espírito de Cristo. Assim, vivendo cristãmente entre os
nossos iguais, com naturalidade mas de modo coerente com a nossa fé, seremos
Cristo presente entre os homens.
113
Ao considerar a dignidade
da missão a que Deus nos chama talvez possa surgir a presunção, a soberba, na
alma humana.
É uma falsa consciência da
vocação cristã aquela que nos cegar, aquela que nos fizer esquecer que somos
feitos de barro, que somos pó e miséria.
Na verdade, não há mal
apenas no mundo, ao nosso redor; o mal está dentro de nós, abriga-se no nosso
próprio coração, tornando-nos capazes de vilanias e de egoísmos.
Só a graça de Deus é rocha
firme; nós somos areia, e areia movediça.
Se se percorre com um
olhar a história dos homens ou a situação actual do mundo, é doloroso verificar
que, passados vinte séculos, há tão poucos que se chamam cristãos e que os que
se adornam com esse nome são tantas vezes infiéis à sua vocação.
Há anos, uma pessoa, que
não tinha mau coração, mas não tinha fé, apontando-me o mapa-múndi, comentou:
Aí está o fracasso de Cristo: tantos séculos procurando meter na alma dos
homens a sua doutrina, e veja os resultados - não há cristãos.
Não falta hoje quem pense
assim.
Cristo, porém, não
fracassou; a sua palavra e a sua vida fecundam continuamente o mundo.
A obra de Cristo, a tarefa
que seu Pai Lhe encomendou, está a realizar-se; a sua força atravessa a
História, trazendo a vida verdadeira e quando tudo Lhe estiver sujeito, então
também o próprio Filho se submeterá Àquele que tudo Lhe submeteu, a fim de que
Deus seja tudo em todos.
Nesta tarefa que vai
realizando no mundo, Deus quis que sejamos seus cooperadores; quer correr o
risco da nossa liberdade. Emociona-me profundamente contemplar a figura de
Jesus recém-nascido em Belém: um menino indefeso, inerme, incapaz de oferecer
resistência...
Deus entrega-Se nas mãos
dos homens; aproxima-Se e desce até nós! Jesus Cristo, sendo de condição
divina, não reivindica o direito de ser equiparado a Deus, mas despojou-Se a Si
mesmo, tomando a condição de servo.
Deus condescende com a
nossa liberdade, com a nossa imperfeição, com as nossas misérias.
Consente que os tesouros
divinos sejam levados em vasos de barro; que O demos a conhecer misturando as
nossas deficiências com a sua força divina.
114
A experiência do pecado
não nos deve, portanto, fazer duvidar da nossa missão. Certamente que os nossos
pecados podem dificultar que Cristo seja reconhecido, e por isso devemos lutar
contra as nossas misérias pessoais, buscar a purificação, sabendo, porém, que
Deus não nos prometeu a vitória absoluta sobre o mal nesta vida, mas o que nos
pede é luta.
Sufficit tíbi gratia mea, basta-te a minha graça, respondeu Deus a Paulo, que pedia a sua
libertação do aguilhão que o humilhava.
O poder de Deus
manifesta-se na nossa fraqueza, e incita-nos a lutar, a combater os nossos
defeitos, mesmo sabendo que nunca obteremos completamente a vitória durante
este caminhar terreno.
A vida cristã é um
constante começar e recomeçar, uma renovação em cada dia.
Cristo ressuscita em nós,
se nos tornarmos comparticipantes da sua Cruz e da sua Morte.
Temos de amar a Cruz, a
entrega a mortificação.
O optimismo cristão não é
um optimismo cómodo, nem uma confiança humana em que tudo correrá bem; é um
optimismo que se enraíza na consciência da liberdade e na fé na graça; é um
optimismo que nos obriga a exigirmo-nos a nós próprios, a esforçarmo-nos por
corresponder ao chamamento de Deus.
Cristo manifesta-se,
portanto, não já apesar da nossa miséria, mas, de certo modo, através da nossa
miséria, da nossa vida de homens feitos de carne e de barro, no esforço por
sermos melhores, por realizarmos um amor que aspira a ser puro, por dominarmos
o egoísmo, por nos entregarmos plenamente aos demais, fazendo da nossa
existência um serviço constante.
115
Não quero terminar sem uma
última reflexão: o cristão, ao tornar Cristo presente entre os homens, sendo
ele mesmo ipse Christus, não procura
apenas viver numa atitude de amor, mas também dar a conhecer o Amor de Deus
através desse amor humano.
Jesus concebeu toda a sua
vida como uma revelação desse amor: Filipe, - respondeu a um dos seus Apóstolos
- quem me vê a Mim, vê o Pai.
Seguindo esse ensinamento,
o Apóstolo João convida os cristãos a que, já que conheceram o amor de Deus, o
manifestem com as suas obras:
Caríssimos, amemo-nos uns aos outros; porque o amor vem de Deus, e
todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece-0. Aquele que não ama não conhece
Deus, porque Deus é Amor.
Nisto se manifestou o amor de Deus para connosco: em ter enviado o
seu Filho unigénito ao mundo para que por Ele vivamos.
Nisto consiste o seu amor: não fomos nós que amámos Deus, mas foi
Ele que nos amou e enviou o seu Filho para propiciação pelos nossos pecados.
Caríssimos, se Deus nos amou assim, também nos devemos amar uns
aos outros.
(cont)