COMPÊNDIO
DA DOUTRINA SOCIAL
DA IGREJA
CAPÍTULO
II
MISSÃO
DA IGREJA E DOUTRINA SOCIAL
I. EVANGELIZAÇÃO E
DOUTRINA SOCIAL
b) Fecundar e fermentar
com o Evangelho a sociedade
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A Igreja, com a sua doutrina social, não só não se afasta da própria missão,
mas lhe é rigorosamente fiel.
A
redenção realizada por Cristo e confiada à sua missão salvífica é certamente de
ordem sobrenatural.
Esta
dimensão não é expressão limitativa, mas integral da salvação
O
sobrenatural não deve ser concebido como uma entidade ou um espaço que começa
onde termina o natural, mas como uma elevação deste, de modo que nada da ordem
da criação e do humano é alheio ou excluído da ordem sobrenatural e teologal da
fé e da graça, antes aí é reconhecido, assumido e elevado:
«Em
Jesus Cristo, o mundo visível, criado por Deus para o homem (cf. Gén 1,
26-30) — aquele mundo que, entrando nele o pecado, “foi submetido à
caducidade” (Rm 8, 20; cf. ibid., 8, 19-22) — readquire novamente o
vínculo originário com a mesma fonte divina da Sapiência e do Amor. Com efeito,
“Deus amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho Unigénito” (Jo 3, 16).
Assim como no homem-Adão este vínculo foi quebrado, assim no Homem-Cristo foi
de novo reatado (cf. Rm 5, 12-21)»[2].
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A Redenção começa com a Encarnação, mediante a qual o Filho de Deus assume tudo
do homem, excepto o pecado, segundo as solidariedades instituídas pela
Sabedoria criadora divina, e tudo abraça em seu dom de Amor redentor. Por este
Amor o homem é abraçado na inteireza do seu ser: ser corpóreo e espiritual, em
relação solidária com os outros. O homem todo — não uma alma separada ou um ser
encerrado na sua individualidade, mas a pessoa e a sociedade das pessoas — fica
implicado na economia salvífica do Evangelho. Portadora da mensagem de
Encarnação e de Redenção do Evangelho, a Igreja não pode percorrer outra via:
com a sua doutrina social e com a acção eficaz que ela activa, não somente não
falseia o seu rosto e a sua missão, mas é fiel a Cristo e se revela aos homens
como «sacramento universal da salvação»[3].
Isto é particularmente verdadeiro numa época como a nossa, caracterizada por
uma crescente interdependência e por uma mundialização das questões sociais.
c)
Doutrina social, evangelização e promoção humana
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A doutrina social é parte integrante do ministério de evangelização da Igreja.
Daquilo que diz respeito à comunidade dos homens — situações e problemas
referentes à justiça, à libertação, ao desenvolvimento, às relações entre os
povos, à paz — nada é alheio à evangelização e esta não seria completa se não
levasse em conta o recíproco apelo que se continuamente se fazem o Evangelho e
a vida concreta, pessoal e social do homem[4].
Entre
evangelização e promoção humana há laços profundos: «laços de ordem
antropológica, dado que o homem que há de ser evangelizado não é um ser abstracto,
mas é sim um ser condicionado pelo conjunto de problemas sociais e económicos;
laços de ordem teológica, porque não se pode nunca dissociar o plano da criação
do plano da Redenção, um e outro a abrangerem as situações bem concretas da
injustiça que deve ser combatida e da justiça a ser restaurada; laços daquela
ordem eminentemente evangélica, qual é a ordem da caridade: como se poderia
proclamar o mandamento novo sem promover na justiça e na paz o verdadeiro e
autêntico progresso do homem?»[5].
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A doutrina social, «por si mesma, tem o valor de um instrumento de
evangelização»[6] e
se desenvolve no encontro sempre renovado entre a mensagem evangélica e a
história humana. Assim entendida, tal doutrina é via peculiar para o exercício
do ministério da Palavra e da função profética da Igreja[7]:
«para a Igreja, ensinar e difundir a doutrina social pertence à sua missão
evangelizadora e faz parte essencial da mensagem cristã, porque essa doutrina
propõe as suas consequências directas na vida da sociedade e enquadra o trabalho
diário e as lutas pela justiça no testemunho de Cristo Salvador»[8].
Não estamos na presença de um interesse ou de uma acção marginal, que se apõe à
missão da Igreja, mas no próprio coração do seu ministério: com a doutrina
social a Igreja «anuncia Deus e o mistério de salvação em Cristo a cada homem
e, pela mesma razão, revela o homem a si mesmo»[9].
Este é um ministério que procede não só do anúncio, mas também do testemunho.
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A Igreja não se ocupa da vida em sociedade em todos os seus aspectos, mas com a
sua competência própria, que é a do anúncio de Cristo Redentor[10]:
«A missão própria que Cristo confiou à sua Igreja não é de ordem política, económica
e social. Pois a finalidade que Cristo lhe prefixou é de ordem religiosa. Mas,
na verdade, desta mesma missão religiosa decorrem benefícios, luzes e forças
que podem auxiliar a organização e o fortalecimento da comunidade humana
segundo a Lei de Deus»[11].
Isto quer dizer que a Igreja, com a sua doutrina social, não entra em questões
técnicas e não institui nem propõe sistemas ou modelos de organização social[12]:
isto não faz parte da missão que Cristo lhe confiou. A Igreja tem a competência
que lhe vem do Evangelho: da mensagem de libertação do homem anunciada e
testemunhada pelo Filho de Deus humanado.
d)
Direito e dever da Igreja
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Com a sua doutrina social a Igreja «se propõe assistir o homem no caminho da
salvação»[13]:
trata-se do seu fim precípuo e único. Não há outros objectivos tendentes a
sub-rogar ou invadir atribuições de outrem, negligenciando as próprias; ou a
perseguir objectivos alheios à sua missão. Tal missão configura o direito e
juntamente o dever da Igreja de elaborar uma doutrina social própria e com ela
exercer influxo sobre a sociedade e as suas estruturas, mediante as
responsabilidades e as tarefas que esta doutrina suscita.
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A Igreja tem o direito de ser para o homem mestra de verdades da fé: da verdade
não só do dogma, mas também da moral que dimana da mesma natureza humana e do
Evangelho[14].
A palavra do Evangelho, efectivamente, não deve somente ser ouvida, mas também
posta em prática (cf. Mt 7, 24; Lc 6, 46-47; Jo 14, 21.23-24; Tg 1, 22):
a coerência nos comportamentos manifesta a adesão do crente e não se restringe
ao âmbito estritamente eclesial e espiritual, mas abarca o homem em todo o seu viver
e segundo todas as suas responsabilidades. Conquanto seculares, estas têm como
sujeito o homem, vale dizer, aquele a quem Deus chama, mediante a Igreja, a
participar do Seu dom salvífico.
Ao
dom da salvação o homem deve corresponder, não com uma adesão parcial, abstrata
ou verbal, mas com a sua vida inteira, segundo todas as relações que a conotam,
de modo que nada se relegue ao âmbito profano e mundano, irrelevante ou alheio
à salvação. Por isso a doutrina social não representa para a Igreja um privilégio,
uma digressão, uma conveniência ou uma ingerência: é um direito seu evangelizar
o social, ou seja, fazer ressoar a palavra libertadora do Evangelho no complexo
mundo da produção, do trabalho, do empresariado, das finanças, do comércio, da
política, do direito, da cultura, das comunicações sociais, em que vive o
homem.
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Este direito é, ao mesmo tempo, um dever, pois a Igreja não pode renunciar a
ele sem se desmentir a si mesma e a sua fidelidade a Cristo: «Ai de mim, se eu
não anunciar o Evangelho!» (1 Cor 9, 16). A admonição que São Paulo
dirige a si próprio ressoa na consciência da Igreja como um apelo a percorrer
todas as vias da evangelização; não somente as que levam às consciências
individuais, mas também as que conduzem às instituições públicas: de um lado
não se deve actuar uma «redução errónea do facto religioso à esfera
exclusivamente privada»[15], por
outro lado não se pode orientar a mensagem cristã a uma salvação puramente
ultraterrena, incapaz de iluminar a presença sobre a terra[16].
Pela
relevância pública do Evangelho e da fé e pelos efeitos perversos da injustiça,
vale dizer, do pecado, a Igreja não pode ficar indiferente às vicissitudes
sociais[17]:
«Compete à Igreja anunciar sempre e por toda a parte os princípios morais,
mesmo referentes à ordem social, e pronunciar-se a respeito de qualquer questão
humana, enquanto o exigirem os direitos fundamentais da pessoa humana ou a
salvação das almas»[18].
[1] João Paulo II,
Carta encicl. Centesimus annus, 43: AAS 83 (1991) 848; cf. Catecismo da Igreja
Católica, 2433.
[2] Cf. João Paulo II,
Carta encicl. Laborem exercens, 17: AAS 73 (1981) 620-622.
[3] Cf. Catecismo
da Igreja Católica, 2436.
[4] Cf. Concílio
Vaticano II, Const. past. Gaudium et spes,
66: AAS 58 (1966) 1087-1088.
[5] Cf. João Paulo II, Carta encicl. Laborem exercens, 12: AAS
73 (1981) 605-608.
[6] João Paulo II, Carta encicl. Centesimus annus, 48: AAS
83 (1991) 853.
[7] Paulo VI, Discurso à Organização Internacional do
Trabalho (10 de Junho de 1969), 21:
[8] AAS 61 (1969) 500;
cf. João Paulo II, Discurso à Organização
Internacional do Trabalho (15 de Junho de 1982), 13: AAS AAS 74 (1982)
1004-1005.
[9] João Paulo II, Carta encicl. Centesimus annus, 16: AAS
83 (1991) 813.
[10] João Paulo II, Carta
encicl. Laborem exercens, 10: AAS 73 (1981) 600.
[11] Cf. João Paulo II, Carta encicl. Laborem exercens, 10: AAS 73
(1981) 600-602; Id., Exort. apost. Familiaris consortio, 23: AAS 74 (1982)
107-109.
[12] Cf. Santa Sede, Carta dos direitos da família, art. 10:
Tipografia Poliglota Vaticana, Cidade do Vaticano 1983, p. 14.
[13] João Paulo II, Carta encicl. Laborem exercens, 19: AAS
73 (1981) 628.
[14] João Paulo II, Carta às mulheres (29 de Junho de 1995),
3: AAS 87 (1995) 804.
[15] [15]
Cf. João Paulo II, Exort. apost.
Familiaris consortio, 24: AAS 74 (1982) 109-110.
[16] Cf. João Paulo II, Mensagem para a celebração do Dia Mundial da
Paz 1996, 5: AAS 88 (1996) 106-107.
[17]
Leão XIII, Carta encícl. Rerum novarum:
Acta Leonis XIII, 11 (1892) 129.
[18] Cf. João Paulo II, Mensagem para a celebração do Dia Mundial da
Paz 1998, 6: AAS 90 (1998) 153.