Tempo comum XXXII Semana
São Leão Magno – Doutor da Igreja
Evangelho:
Lc 17, 7-10
7 «Quem de vós, tendo um servo a lavrar ou a guardar
gado, lhe dirá quando ele voltar do campo: Vem depressa, põe-te à mesa? 8
Não lhe dirá antes: Prepara-me a ceia, cinge-te e serve-me, enquanto eu como e
bebo; depois comerás tu e beberás? 9 Porventura, fica o senhor
obrigado àquele servo, por ter feito o que lhe tinha mandado? 10
Assim também vós, depois de terdes feito tudo o que vos foi mandado, dizei:
Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer».
Comentário:
Servir é a
condição para ganhar o pão de cada dia; servir bem ė fundamental para ganhar a
confiança de quem nos garante esse salário.
O Senhor pagará com extrema generosidade os bons serviços que lhe prestemos,
mesmo que, aparentemente, insignificantes ou de escasso relevo.
(ama, comentário sobre Lc 17
7-10 2011.11.11)
Leitura espiritual
A PACIÊNCIA
…/2
O ESTOJO DO MUNDO
OS BELOS ESTOJOS
O leitor há-de concordar
comigo em que uma das coisas mais belas do mundo é um bom estojo. Ainda há
poucos dias, ficava eu extasiado diante do estojo deslumbrante de uma caneta alemã.
É verdade que era dez vezes maior do que a caneta, mas seus brilhos nacarados,
sua patina ambarina, e sobretudo o veludo roxo azulado – macio e aristocrático
– do interior, onde a caneta dourada se encaixava à perfeição, eram de deixar
de queixo caído.
Todos nós já admiramos,
provavelmente, a beleza e o ajuste preciso do estojo de um relógio novo, de uma
flauta reluzente, de uma joia... Haveria matéria para escrever um livro inteiro
sobre as maravilhas dos estojos. E, como é lógico, nesse livro não poderia
faltar, por contraste, um capítulo dedicado aos maus estojos.
Como é desagradável um
estojo ruim, em que o objecto guardado dança, chocalha com um barulho irritante
e acaba por estragar-se a si mesmo e estragar os nossos nervos.
Mas todas estas digressões
sobre estojos, que têm a ver com a paciência?
– Desculpe – haveria de
responder a quem fizesse essa pergunta –, talvez eu tenha posto o carro à
frente dos bois. Só um pouco de paciência e daqui a nada vamos ver que estojo e
paciência são duas coisas muito relacionadas.
Para isso, basta que
pensemos se não é verdade que um dos nossos desejos mais íntimos é que o mundo
(a vida, as coisas, os acontecimentos e as pessoas) funcione como um estojo aveludado
e perfeitamente modelado, em que se encaixem sempre suavemente, sem colisões
nem atritos, os nossos sonhos, os nossos desejos, os nossos caprichos, as
nossas manias e até mesmo os nossos defeitos.
Ah, se tudo na vida fosse
assim!
Para o meu mau humor, o
estojo de cetim da compreensão dos outros;
para a minha doença, o
estojo de seda de um serviço público de saúde com a aparelhagem funcionando e
sem filas;
para o meu trabalho, o
estojo adamascado de chefes que me louvem e subordinados que em tudo me
obedeçam;
e, lá em casa, o veludo
amabilíssimo dos filhos dóceis e agradecidos, sempre prontos a sussurrar com um
sorriso carinhoso: – ‘a Mãezinha e Paizinho têm razão’, e o de um marido ou uma
mulher que, sem pensarem em problemas e cansaços pessoais, só saibam dizer, com
o olhar mais terno: – ‘Meu amor, que gostaria de fazer hoje?’
Que fantástico um
mundo-estojo assim!
É melhor nem pensar nele
porque, depois, ao abrirmos os olhos à realidade, ficaríamos magoados.
De qualquer modo, é
indiscutível que, se o mundo fosse o nosso suave, ajustadinho e macio estojo
sob medida (incluindo-se nessa “medida” também os auxílios imediatos de um Deus
tão “bom” que nos fizesse sempre as vontades), a impaciência desapareceria do
mapa e deveria ser apagada dos dicionários.
ESTOJOS DESAJUSTADOS
Mas, uma vez que não
vivemos no País das Maravilhas, como Alice, e sim na Terra dos Homens de que
falava Saint-Exupéry, forçoso é que reconheçamos que a toda a hora o estojo do mundo
falha, machuca, não abre, não fecha e se desajusta ou se desengonça.
E então a impaciência começa
a brotar, a crescer, e a dar os seus, digamos, “frutos” (os já referidos
lamentos, tristezas, reclamações e quejandos).
As formas de desajuste e
inadaptação ao estojo da realidade, isto é, as impaciências do dia-a-dia, são
tão ricas em número como as espécies de insetos num livro de entomologia.
Bastaria observar com um
pouquinho de atenção retalhos de um único dia na vida de qualquer família normal
para podermos elaborar um volumoso dicionário de impaciências.
Lembremos algumas das mais
corriqueiras, a título de exemplo e só para mencionar o que Nelson Rodrigues
chamaria o “óbvio ululante”.
O Pai acorda mais cedo e
vai preparar o café (ofício cada dia mais masculino).
Primeira contrariedade
naquela hora de olhar estremunhado e nervos mal temperados: da torneira não sai
um pingo de água, porque é dia de corte devido à estiagem;
e o pior é que o jornal
tinha avisado, e já é a quarta vez que se esquece disso num mês.
Segunda contrariedade a
menina, após a explosão de um estrondoso rádio-despertador e mais três séries
de violentas batidas da mãe na porta do quarto, continua a dormir, e o pobre
progenitor de emprego ameaçado, que já está atrasado para o serviço, vai ter
que deixá-la antes, a ela e ao Rodrigo, na escola.
Ó estojo mal ajustado!
O dia já começa, como
diria Guimarães Rosa, com “o mundo à revelia”!
Mas o que começa,
continua.
Quando o aflito Pai ia
ligar para o escritório, avisando que uma emergência o impediria de participar
da primeira reunião, o imprescindível telefone, tão necessário, está ocupado.
Por quem?
Pela filha mais velha, é
lógico, que já leva vinte minutos na sua primeira conversa do dia com o
namorado.
‘É sempre assim!’,
desabafa o pobre pai.
Mas a bronca não elimina
quinze minutos mais, mínimo regulamentar para completar o horário do matutino
namoro.
O estojo continua sem
funcionar.
E quando por fim o homem,
esfalfado antes de ter começado a trabalhar, consegue sair à rua com o velho
carro usado, adquirido a preço de amigo a um colega, os olhos batem instantaneamente
no guarda-lamas amachucado..., e a última que pegou no carro foi a mulher. – ‘Mais
uma vez, outra vez!’, exclama o nosso protagonista, praticando sem o saber um acto
teologicamente perfeito de impaciência.
Será, porventura, preciso
acrescentar que, ao conseguir entrar na avenida, com um barulhinho no motor que
deixa o coração em sobressalto, o trânsito está parado?
O engarrafamento é
monumental, fora do comum – que é comum mesmo –, devido a uma carreta que se
incrustou de frente no canteiro central e está atravessada na pista.
– ‘Mais essa! E depois
dizem que não existe a lei de Murphy!’
Se quiséssemos continuar
pintando esse quadro escuro de contrariedades quotidianas, não poderia faltar
uma referência aos comentários mordazes dos colegas de escritório, porque a
equipa dele “mais uma vez” perdeu, nem faltaria a queixa contra o infernal
barulho da rua que tanto dificulta trabalhar; e assim, após inúmeros
aborrecimentos, veríamos o nosso homem chegar a casa num tal estado de ânimo
que qualquer pergunta da mulher lhe pareceria uma ofensa.
Poderíamos, sim, pintar
este quadro, mas – ainda que tivesse um fundo realista – seria completamente
falso.
A verdade é que, salvo em
raros dias que são excepção, a vida não se compõe de uma sequência ininterrupta
de contrariedades.
Graças a Deus, há também
muitas satisfações e muitas alegrias e, normalmente, para quem não estiver
cego, o mais justo é terminar o dia fazendo uma enorme lista de bênçãos
recebidas de Deus, de males e perigos evitados, de protecções “descaradas” dos
Anjos da Guarda, além de muitos detalhes simpáticos do próximo, de modo que o coração
sinta a necessidade de elevar uma emocionada acção de graças.
Se fôssemos sinceros, veríamos
que o elenco das bênçãos – tão belas como habituais – é normalmente bem
superior ao das contradições.
(cont.)
FRANCISCO FAUS, [i]
A PACIÊNCIA, 2ª edição, QUADRANTE,
São Paulo 1998
(Revisão da versão
portuguesa por ama)
[i]
Francisco Faus é licenciado em Direito pela
Universidade de Barcelona e Doutor em Direito Canônico pela Universidade de São
Tomás de Aquino de Roma. Ordenado sacerdote em 1955, reside em São Paulo, onde
exerce uma intensa atividade de atenção espiritual entre estudantes
universitários e profissionais. Autor de diversas obras literárias, algumas
delas premiadas, já publicou na coleção Temas Cristãos, entre outros, os
títulos O valor das dificuldades, O homem bom, Lágrimas de Cristo, lágrimas dos
homens, Maria, a mãe de Jesus, A voz da consciência e A paz na família.