Cristo que passa 18 a 22
18
Quando chega o Natal,
gosto de contemplar as imagens do Menino Jesus.
Essas figuras que nos
mostram o Senhor tão apoucado, recordam-me que Deus nos chama, que o
Omnipotente Se quis apresentar desvalido, quis necessitar dos homens.
Do berço de Belém, Cristo
diz-me a mim e diz-te a ti que precisa de nós; reclama de nós uma vida cristã
sem hesitações, uma vida de entrega, de trabalho, de alegria.
Não conseguiremos jamais o
verdadeiro bom humor se não imitarmos deveras Jesus, se não formos humildes
como Ele. Insistirei de novo: vedes onde se oculta a grandeza de Deus?
Num presépio, nuns
paninhos, numa gruta.
A eficácia redentora das
nossas vidas só se pode dar com humildade, deixando de pensar em nós mesmos e
sentindo a responsabilidade de ajudar os outros.
É corrente, às vezes até
entre almas boas, criar conflitos íntimos, que chegam a produzir sérias
preocupações, mas que carecem de qualquer base objectiva.
A sua origem está na falta
de conhecimento próprio, que conduz à soberba: o desejo de se tornarem o centro
da atenção e da estima de todos, a preocupação de não ficarem mal, de não se
resignarem a fazer o bem e desaparecerem, a ânsia da segurança pessoal...
E assim, muitas almas que
poderiam gozar de uma paz extraordinária, que poderiam saborear um imenso
júbilo, por orgulho e presunção tornam-se desgraçadas e infecundas!
Cristo foi humilde de
coração.
Ao longo da sua vida, não
quis para Si nenhuma coisa especial, nenhum privilégio.
Começa por estar nove
meses no seio de sua Mãe, como qualquer outro homem, com extrema naturalidade.
Sabia o Senhor de sobra
que a Humanidade padecia de uma urgente necessidade d'Ele.
Tinha, portanto, fome de
vir à terra para salvar todas as almas; mas não precipita o tempo; vem na Sua
hora, como chegam ao mundo os outros homens.
Desde a concepção ao
nascimento, ninguém, salvo S. José e Santa Isabel, adverte esta maravilha: Deus
veio habitar entre os homens!
O Natal também está
rodeado de uma simplicidade admirável: o Senhor vem sem aparato, desconhecido
de todos.
Na Terra, só Maria e José
participam na divina aventura.
Depois, os pastores,
avisados pelos Anjos.
E mais tarde os sábios do
Oriente.
Assim acontece o facto
transcendente que une o Céu à Terra, Deus ao homem!
Como é possível tanta
dureza de coração que cheguemos a acostumar-nos a estes episódios?
Deus humilha-Se para que
possamos aproximar-nos d'Ele, para que possamos corresponder ao seu Amor com o
nosso amor, para que a nossa liberdade se renda, não só ante o espectáculo do
seu poder, como também ante a maravilha da sua humildade.
Grandeza de um Menino que
é Deus!
O Seu Pai é o Deus que fez
os Céus e a Terra, e Ele ali está, num presépio, quia non erat eis locus in
diversorio, porque não havia outro sítio na Terra para o dono de toda a
Criação!
19
Cumpriu a vontade de Seu
Pai Deus
Não me afasto da mais
rigorosa verdade se vos digo que Jesus continua agora a buscar pousada no nosso
coração.
Temos de Lhe pedir perdão
pela nossa cegueira pessoal, pela nossa ingratidão.
Temos de Lhe pedir a graça
de nunca mais Lhe fechar a porta das nossas almas.
O Senhor não nos oculta
que a obediência rendida à vontade de Deus exige renúncia e entrega porque o
amor não pede direitos: quer servir.
Ele percorreu primeiro o
caminho.
Jesus, como obedecestes
Tu?
Usque ad mortem, mortem
autem crucis, até à morte e morte de Cruz.
É preciso sair de nós
mesmos, complicar a vida, perdê-la por amor de Deus e das almas...
Tu querias viver e que
nada te acontecesse; mas Deus quis outra coisa...
Existem duas vontades: a
tua vontade deve ser corrigida para se identificar com a vontade de Deus, e não
torcida a de Deus para se acomodar à tua.
Com alegria, tenho visto
muitas almas que jogaram a vida - como Tu, Senhor, "usque ad mortem"!
- para cumprir o que a vontade de Deus lhes pedia, dedicando os seus esforços e
o seu trabalho profissional ao serviço da Igreja, pelo bem de todos os homens.
Aprendamos a obedecer,
aprendamos a servir.
Não há maior fidalguia do
que entregar-se voluntariamente ao serviço dos outros.
Quando sentimos o orgulho
que referve dentro de nós, a soberba que nos leva a pensar que somos
super-homens, é o momento de dizer que não, de dizer que o nosso único triunfo
há-de ser o da humildade.
Assim nos identificaremos
com Cristo na Cruz, não aborrecidos ou inquietos, nem com mau humor, mas
alegres, porque essa alegria, o esquecimento de nós mesmos, é a melhor prova de
amor.
20
Permiti-me que volte de
novo à naturalidade, à simplicidade da vida de Jesus, que já vos tenho feito
considerar tantas vezes.
Esses anos ocultos do
Senhor não são coisa sem significado, nem uma simples preparação dos anos que
viriam depois, os da sua vida púbica.
Desde 1928 compreendi
claramente que Deus deseja que os cristãos tomem exemplo de toda a vida do
Senhor.
Entendi especialmente a
sua vida escondida, a sua vida de trabalho corrente no meio dos homens: o
Senhor quer que muitas almas encontrem o seu caminho nos anos de vida calada e
sem brilho. Obedecer à vontade de Deus, portanto, é sempre sair do nosso
egoísmo; mas não tem por que se traduzir no afastamento das circunstâncias
ordinárias da vida dos homens, iguais a nós pelo seu estado, pela sua profissão,
pela sua situação na sociedade.
Sonho - e o sonho já se
tornou realidade - com multidões de filhos de Deus santificando-se na sua vida
de cidadãos correntes, compartilhando ideais, anseios e esforços com as outras
pessoas. Preciso de lhes gritar esta verdade divina: se permaneceis no meio do
mundo, não é porque Deus se tenha esquecido de vós; não é porque o Senhor vos
não tenha chamado; convidou-vos a permanecer nas actividades e nas ansiedades
da Terra, porque vos fez saber que a vossa vocação humana, a vossa profissão,
as vossas qualidades não só não são alheias aos seus desígnios divinos, mas que
Ele as santificou como oferenda gratíssima ao Pai!
21
Recordar a um cristão que
a sua vida não tem outro sentido senão o de obedecer à vontade de Deus não é
separá-lo dos outros homens. Pelo contrário: em muitos casos, o mandamento
recebido do Senhor de que nos amemos uns aos outros como Ele nos amou cumpre-se
vivendo junto dos outros e tal como os outros, entregando-nos ao serviço do
Senhor no mundo, para dar a conhecer melhor a todas as almas o amor de Deus;
para lhes dizer que se abriram os caminhos divinos da terra.
O Senhor não se limitou a
dizer que nos amava, mas demonstrou-o com obras.
Não nos esqueçamos de que
Jesus Cristo encarnou para nos ensinar, para aprendermos a viver a vida dos
filhos de Deus.
Recordai o preâmbulo do
evangelista S. Lucas nos Actos dos Apóstolos: Primum quidem sermonem feci de
omnibus, o Theophile, quae coepit Jesus facere et docere, falei de tudo o que
mais notável fez e pregou Jesus.
Veio ensinar, mas fazendo;
veio ensinar, mas sendo modelo, sendo o Mestre e o exemplo, com a sua conduta.
Agora, diante de Jesus
Menino, podemos continuar o nosso exame pessoal: estamos decididos a procurar
que a nossa vida sirva de modelo e de ensinamento aos nossos irmãos, aos nossos
iguais, os homens?
Estamos decididos a ser
outros Cristos?
Não basta dizê-lo com a
boca. Tu - pergunto-o a cada um de vós e pergunto-o a mim mesmo - tu, que por
seres cristão estás chamado a ser outro Cristo, mereces que se repita de ti que
vieste facere et docere, fazer tudo como um filho de Deus, atento à vontade de
seu Pai, para que deste modo possas levar todas as almas a participar das
coisas boas, nobres, divinas e humanas, da Redenção?
Estás a viver a vida de
Cristo na tua vida de cada dia no meio do mundo?
Fazer as obras de Deus não
é um bonito jogo de palavras, mas um convite a gastar-se por Amor.
Temos de morrer para nós
mesmos a fim de renascermos para uma vida nova.
Porque assim obedeceu
Jesus, até à morte de Cruz, mortem autem crucis. Propter quod et Deus exaltavit
illum.
Por isso Deus O exaltou.
Se obedecermos à vontade
de Deus, a Cruz será também Ressurreição, exaltação. Cumprir-se-á em nós, passo
a passo, a vida de Cristo; poder-se-á afirmar que vivemos procurando ser bons
filhos de Deus, que passamos fazendo o bem, apesar da nossa fraqueza e dos
nossos erros pessoais, por mais numerosos que sejam.
E quando vier a morte, que
virá inexoravelmente, esperá-la-emos com júbilo, como tenho visto que o
souberam fazer tantas pessoas santas no meio da sua existência diária.
Com alegria, porque, se
imitámos Cristo em fazer o bem, - em obedecer e levar a Cruz, apesar das nossas
misérias - ressuscitaremos como Cristo; surrexit Dominus vere!, que ressuscitou
realmente.
Jesus, que se fez menino -
meditai nisto - venceu a morte.
Com o aniquilamento, com a
simplicidade, com a obediência, com a divinização da vida corrente e vulgar das
criaturas, o Filho de Deus foi vencedor!
Este foi o triunfo de
Jesus Cristo.
Assim nos elevou ao seu
nível, ao nível dos filhos de Deus, descendo ao nosso terreno, ao terreno dos
filhos dos homens.
22
Estamos no Natal.
Acodem-nos à memória os
diversos factos e circunstâncias que rodearam o nascimento do Filho de Deus e o
olhar detém-se na gruta de Belém, no lar de Nazaré. Maria, José, Jesus Menino
ocupam de modo muito especial o centro do nosso coração.
Que diz, que nos ensina a
vida, simples e admirável ao mesmo tempo, dessa Sagrada Família?
Entre as muitas considerações
que poderíamos fazer, agora quero escolher sobretudo uma.
Como refere a Escritura, o
nascimento de Jesus significa o início da plenitude dos tempos, o momento
escolhido por Deus para manifestar plenamente o seu amor aos homens,
entregando-nos o seu próprio Filho.
Essa vontade divina
realiza-se no meio das circunstâncias mais normais e correntes: uma mulher que
dá à luz, uma família, uma casa.
A omnipotência divina, o
esplendor de Deus passam através das coisas humanas, unem-se às coisas humanas.
Desde esse momento, nós,
os cristãos, sabemos que, com a graça do Senhor, podemos e devemos santificar
todas as realidades sãs da nossa vida.
Não há situação terrena,
por mais pequena e vulgar que pareça, que não possa ser a ocasião de um
encontro com Cristo e uma etapa da nossa caminhada para o Reino dos Céus.
Por isso, não é de
estranhar que a Igreja se alegre, que rejubile, contemplando a modesta morada
de Jesus, Maria e José.
É grato - reza-se no Hino
de matinas desta festa - recordar a pequena casa de Nazaré e a existência
simples que ali se vive, celebrar com cânticos a singeleza que rodeia Jesus, a
sua vida escondida.
Foi ali que, ainda
criança, aprendeu o ofício de José; foi ali que cresceu em idade e partilhou o
trabalho de artesão.
Junto d'Ele, sentava-se a
sua doce Mãe; junto a José, vivia a sua Esposa bem-amada, feliz por poder
ajudá-lo e prestar-lhe os seus cuidados.
Ao pensar nos lares
cristãos, gosto de imaginá-los luminosos e alegres, como foi o da Sagrada
Família.
A mensagem de Natal ressoa
com toda a força: Glória a Deus no mais alto dos Céus e paz na terra aos homens
de boa vontade.
Que a Paz de Cristo
triunfe nos vossos corações, escreve o Apóstolo. Paz por nos sabermos amados
pelo nosso Pai, Deus, incorporados em Cristo, protegidos pela Virgem Santa
Maria, amparados por S. José. Esta é a grande luz que ilumina as nossas vidas e
que, perante as dificuldades e misérias pessoais, nos impele a seguir
animosamente para diante.
Cada lar cristão deveria
ser um remanso de serenidade, em que se notassem, por cima das pequenas
contrariedades diárias, um carinho e uma tranquilidade, profundos e sinceros,
fruto de uma fé real e vivida.
(cont)