A
PAZ NA FAMÍLIA
A HORA E A VEZ DOS MARIDOS
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Mais suave, mas não menos
perturbador, é o caso do marido que não pode prescindir de bater bola, mas pode
prescindir de dedicar-se à mulher e aos filhos. Acabado o jogo, diz ter
necessidade de hidratar-se com uma cervejinha (ponham-se de cinco a sete
garrafas), o que o leva também à sesta reparadora e a uns resultados muito
parecidos com o do caso anterior.
O egoísmo, às vezes, chega a
ser tamanho, que a mulher percebe que o marido não a considera senão como um
objecto utilitário e um meio de prazer. Ela garante mesa, roupa limpa, crianças
cuidadas, cama e satisfação do apetite sexual.
O sultão deixa-se cuidar,
exigente e mal-humorado. Só fica carinhoso e amável quando quer sexo, e então a
mulher – com toda a razão – se arrasa toda por dentro, porque se sabe e se
sente simplesmente usada, não amada.
Não será sanha excessiva
mencionar ainda mais um tipo de egoísmo masculino bem comum?
Para suavizar, falaremos
dele literariamente. Tolstoi descreve-o muito bem na famosa novela A morte de
Ivan Ilitch.
O magistrado que protagoniza
a história percebe, após o nascimento do primeiro filho, que a esposa se está
tornando azeda, exigente e rabugenta. Não lhe ocorre perguntar-se como
compreendê-la e ajudá-la, mas como livrar-se o mais possível das irritações
dela (naquela época, o divórcio ainda não era moeda corrente).
“À medida que aumentavam a
irascibilidade e as exigências da mulher – escreve Tolstoi –, Ivan Ilitch ia
transportando o centro de gravidade da sua vida para o trabalho [...].
Exigia da vida familiar tão
só as comodidades que esta podia dar-lhe [...]. Se tropeçava com alguma
resistência ou mau-humor, imediatamente seguia para o seu mundo particular, o
do serviço, em que se achava à vontade [...].
Todo o interesse da sua vida
se concentrava no mundo do serviço. E esse interesse o absorvia por inteiro” [i].
Não parece necessário
acrescentar mais nada: essa fuga do lar, refugiando-se no trabalho, é tão atual
neste século como no passado.
E, com isto, encerramos a
primeira parte desta obra. Como é lógico, uma descida aos porões nunca é muito
agradável, sobretudo se os porões são sombrios, como os que acabamos de
visitar. Mas, como essa visita foi apenas um passo prévio para subir aos cimos,
vamos guardar, de tudo o que vimos até aqui, um pensamento muito claro.
Tanto o orgulho como o
egoísmo comodista coincidem num ponto essencial: no culto ao “eu”, na colocação
do “eu” como centro da vida familiar. E, quando isso acontece, a paz familiar
torna-se impossível. Esta constatação servir-nos-á de pista de decolagem para a
segunda parte, em que procuraremos ganhar altura e adquirir uma perspectiva
cristã sobre a vida familiar.
A FAMÍLIA EM PERSPECTIVA
EGOÍSMO E REALIZAÇÃO
Como acabamos de ver, o
egoísmo é o rumo errado da família. Sob a tirania do “eu”, a paz familiar
torna-se impossível.
À primeira vista, essa
afirmação parece óbvia, sobretudo depois de termos contemplado os efeitos
devastadores do egoísmo no lar. No entanto, para muitas pessoas, não parece tão
óbvia assim.
Por que o egoísmo haveria de
ser o rumo errado do casamento e da família? É um facto incontestável que um
número elevadíssimo de pessoas julga hoje, na prática, que o egoísmo não só não
é errado, como é e deve ser o rumo natural da vida familiar e da vida em geral.
Só que, em vez de falarem em egoísmo, falam em realização. Detestam a palavra
egoísmo e adoram a palavra realização.
Há, porém, um pequeno
detalhe: dentro da sua filosofia de vida, egoísmo e realização significam
exactamente a mesma coisa.
Para a maioria das pessoas,
com efeito, o casamento, a família – algum tipo de família –, faz parte
importante do seu programa de realização pessoal. É natural que os jovens
pensem no futuro e planejem o que julgam que os poderá “realizar”,
trazendo-lhes bem-estar, crescimento, auto-estima e felicidade. Propõem-se,
para isso, umas metas profissionais, e também a meta de um amor humano, da
constituição de uma família que encarne os seus sonhos e aspirações.
Até aqui, não há nada a
objectar. Acontece, contudo, que esses rapazes e moças – sem nem darem por isso
– situam a família dentro de um programa de realização pessoal que está viciado
na sua própria raiz pela mentalidade materialista, característica do mundo
actual.
Cada vez mais, o mundo
desliza para uma civilização utilitarista e hedonista, que entende a realização
do indivíduo como o máximo acúmulo de benefícios úteis e de prazeres, com a
mínima despesa possível de renúncias e sacrifícios; um mundo em que o
relacionamento com as outras pessoas visa, principalmente, o “proveito” e o
“prazer” pessoal; em suma, um mundo em que o relacionamento interpessoal tem a
forma, o peso e a medida do interesse individual.
O “utilitarismo hedonista”,
conhecido vulgarmente com o nome de “direito-de-ser-feliz”, acaba, então, por
justificar tudo: larga-se abruptamente o marido ou a mulher, quando manter-se
fiel “custa”; parte-se facilmente para uma nova união, à caça da felicidade (de
“sentir-se bem”, de encontrar-se “a si mesmo”), ainda que, com isso, se deixem
os filhos privados de um verdadeiro lar e machucados com traumas irreversíveis;
ou, então, foge-se do sacrifício de ter que criá-los, como faz o chupim, pelo
simples sistema de não tê-los ou de matá-los no ventre materno quando, ainda
dentro dele, começam a incomodar.
No meio desse radical
egoísmo, subsiste, contudo, em muitos casos o desejo de ter uma família..., mas
só na medida em que for útil para a realização pessoal; subsiste o desejo de
ter filhos, mas somente se isso dá gosto aos pais; e o de não tê-los – este é
bem mais frequente –, se há o receio de que perturbem as ascensões
profissionais (especialmente a “realização independente” da mulher), ou o
lazer, ou as viagens internacionais, ou a posse e consumo de mais bens
materiais.
Com que pena ouvia eu,
recentemente, o que me contava um rapaz recém-casado, entusiasmado com a ideia
de ter logo um filho. Uma jovem vizinha de apartamento, recém-casada também, ao
saber do seu entusiasmo, fez um trejeito de nojo e comentou:
“Filhos? Nunca! Só
«enchem»!”
TRÊS DESVIOS E UM BRADO DE
ALERTA
Se pensarmos bem,
perceberemos que esses egoístas procuram a paz e a felicidade por três vias
tortas – desvios e não caminhos –, que não podem proporcionar a paz
simplesmente porque são uma radical inversão dos valores, porque são uma
“desordem”, no sentido mais profundo dessa palavra.
Lembremo-nos de que a paz,
como dizia Santo Agostinho, é a tranquilidade na ordem.
A paz, com efeito, vem da
harmonia, da ordem equilibrada e certa, quer no interior do ser humano, quer
nas suas relações com Deus e com o próximo: da ordem dos valores, dos amores,
dos deveres, da ordem entre o que é apenas um meio e o que é um fim, entre o
que tem valor absoluto e o que tem valor relativo, entre o que é eterno e o que
é transitório.
Pois bem, a verdadeira ordem
“humana” postula três coisas: colocar o amor acima do prazer, o dever moral acima
do gosto pessoal, e Deus e o próximo acima dos interesses mesquinhos do “eu”. A
sociedade utilitarista e hedonista, no entanto, preconiza o contrário:
apregoa que deve colocar-se
o prazer acima do amor, o gosto acima do dever moral, e o “eu” acima de Deus e
dos outros. Nesse quadro de valores invertidos, a paz da alma, que precisa do
ar saudável da ordem para subsistir, não acha como respirar e se extingue.
São muito ilustrativas as
biografias de grandes desfrutadores (gente famosa na tela dos cinemas e das
televisões, e nos cadernos especiais dos jornais e revistas), que – após terem
feito a experiência de seis, sete ou mais casamentos, todos esfrangalhados –
acabam procurando em vão nas drogas ou no álcool a paz que destruíram com o seu
egoísmo.
É natural que, em face dessa
civilização do interesse e da fruição, o Papa João Paulo II erga a sua voz –
como um brado de alerta e de esperança – em defesa da “civilização do amor”. O
diagnóstico que faz na sua Carta às famílias é de uma lucidez transparente: “O
utilitarismo é uma civilização da produção e do desfrute, uma civilização das
«coisas» e não das «pessoas»; uma civilização em que as pessoas se usam como se
usam as coisas.
No contexto da civilização
do desfrute, a mulher pode tornar-se para o homem um objecto, os filhos um
obstáculo para os pais, a família uma instituição embaraçosa para a liberdade
dos membros que a compõem [...].
Na base do utilitarismo
ético, está, como se sabe, a procura desenfreada do «máximo» de felicidade: mas
de uma felicidade utilitarista, vista apenas como prazer, como imediata
satisfação e vantagem exclusiva do próprio indivíduo, fora das exigências
objetivas do verdadeiro bem ou mesmo contra elas” [ii].
(cont)
[i] Leão
Tolstoi, Obra completa, vol. III, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1993, págs. 917-918;
[ii]
Carta
às famílias, n. 13;
[iii] Francisco
Faus é licenciado em Direito pela Universidade de Barcelona e Doutor em Direito
Canónico pela Universidade de São Tomás de Aquino de Roma. Ordenado sacerdote
em 1955, reside em São Paulo, onde exerce uma intensa atividade de atenção
espiritual entre estudantes universitários e profissionais. Autor de diversas
obras literárias, algumas delas premiadas, já publicou na coleção Temas
Cristãos, os títulos:
O
valor das dificuldades; O homem bom; Lágrimas de Cristo, lágrimas dos homens; A
língua; A paciência; A voz da consciência.