Páscoa
Evangelho:
Mt 11, 25-30
25
Então Jesus, falando novamente, disse: «Eu Te louvo ó Pai, Senhor do céu e da
terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e aos prudentes, e as revelaste
aos pequeninos. 26 Assim é, ó Pai, porque assim foi do Teu agrado. 27
«Todas as coisas Me foram entregues por Meu Pai; e ninguém conhece o Filho
senão o Pai; nem ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o
quiser revelar. 28 «Vinde a Mim todos os que estais fatigados e
oprimidos, e Eu vos aliviarei. 29 Tomai sobre vós o Meu jugo, e
aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração, e achareis descanso para
as vossas almas. 30 Porque o Meu jugo é suave, e o Meu fardo leve».
Comentário:
Acaso já pensámos que de facto somos esses
"pequeninos" que o Senhor refere no Evangelho aos quais revela e
mostra as verdades da fé, dando a conhecer o Pai?
Chegando a esta conclusão é natural e lógico que nos
enchamos de alegria e demos frequentes graças por sermos como somos – como
devemos ser – filhos pequenos que precisam de tudo.
(ama,
comentário sobre Mt 11, 25-30, Lisboa, 2015.11.02)
Leitura espiritual
SANTO
AGOSTINHO – CONFISSÕES
CAPÍTULO
XXVIII
Divergências
Para outros essas palavras
não são um ninho, mas um vergel (jardim) ensombrado onde descobrem frutos
ocultos que procuram e colhem, voando e cantando alegremente.
Quando leem ou ouvem as
palavras de Moisés, veem que a tua estável e eterna permanência, ó Deus, domina
todos os tempos passados e futuros, e por isso não existe criatura corpórea que
não seja obra tua. Veem que a tua vontade, confundindo-se com o teu ser, criou
todas as coisas sem sofrer modificação, sem que nasça nela uma decisão nova,
que não existisse antes; que criaste o mundo, não tirando da tua substância uma
imagem tua, forma substancial de toda a realidade, mas tirando do nada uma
matéria informe, diferente de ti mesmo; e esta poderia ser formada à tua imagem
pela volta à tua Unidade, segundo a medida previamente estabelecida e concedida
a cada ser, de acordo com sua espécie. Veem assim que todas as obras da criação
são excelentes, ou porque permanecem próximas a ti, ou porque, afastadas de ti
no tempo e no espaço, fazem ou sofrem as admiráveis variedades do mundo.
Reconhecem essas coisas, e por isso se alegram na luz da tua verdade, à medida
que o podem com as suas forças terrenas.
Outros, reflectindo o
sentido destas palavras: “No princípio criou Deus...” – vê no princípio a Sabedoria,
porque também ela nos fala.
Outro, ao considerar as
mesmas palavras, entende por princípio o começo da criação, e a expressão:
“Deus criou no princípio” significa para ele: “Deus primeiramente fez”. E entre
os mesmos que por princípio entendem que Deus criou na sua Sabedoria o céu e a
terra, um acredita que céu e terra designam a matéria da qual o céu e a terra
foram criados; outro pensa que a expressão se aplica a naturezas já formadas e
distintas; outro sustenta que a palavra céu significa natureza formada e
espiritual, a terra, a natureza informe e material.
Aqueles porém que entendem
por céu e terra a matéria ainda informe, com a qual viriam a ser formados o céu
e a terra, não têm unanimidade: um concebe essa matéria como origem comum das
criaturas sensíveis e espirituais, outro apenas como fonte de massa sensível e corpórea,
contendo no seu vasto seio todas as realidades visíveis, oferecidas aos nossos
sentidos.
Tampouco são unânimes os
que creem que nesse texto céu e terra se referem às criaturas já formadas e
dispostas; um acredita que se trata do mundo invisível e visível; outro, apenas
do mundo visível, onde se contempla o céu luminoso e a terra tenebrosa, com
tudo o que eles contêm.
CAPÍTULO
XXIX
Dificuldades
Mas quem interpreta a
palavra: “No princípio criou...” como se ela quisesse dizer:
“Primeiramente Deus
criou...” – apenas pode entender, por céu e terra, se quiser se manter coerente
à verdade, a matéria do céu e da terra, isto é, da criação universal, tanto
espiritual como material.
Pois, se quiser referir-se
com isso a um universo já inteiramente formado, seríamos levados a indagar-lhe:
“Se Deus criou isso antes, o que criou depois?” – Depois de ter criado tudo, não
encontrará mais nada para criar e, gostando ou não, ouvirá a pergunta: “Como é
possível que Deus tenha criado isso primeiro, se nada criou depois?”
Se ele quer significar que
Deus criou primeiro a matéria informe, e depois lhe deu forma, já não é uma
tese absurda, desde que seja capaz de discernir a prioridade na eternidade, no
tempo, na escolha, na origem. Na eternidade: Deus antecede todas as coisas; no
tempo: a flor precede o fruto; na escolha: o fruto vale mais do que a flor; na
origem: o som precede o canto.
Dessas quatro prioridades,
a primeira e a última dificilmente se compreendem, enquanto é bem fácil
entender as outras duas. É de facto raro e difícil conceber a tua eternidade
criando, mas conservando-se imutável, as coisas mutáveis e, por isso,
antecedendo-as. E precisa de ter uma inteligência penetrante para compreender,
sem grande esforço, como o som antecede o canto, uma vez que o canto é o som
organizado; e uma coisa pode muito bem existir sem forma, mas o que não existe
não pode receber forma. Assim, a matéria é anterior ao que dela se forma e não porque
a sua causa seja eficiente, pois também é objecto da criação; nem tampouco
porque lhe seja anterior no tempo. De facto, não emitimos num primeiro
instante, sons desarticulados e informes, para depois os ligarmos e formar uma
melodia e um canto, como se faz com a madeira e a prata ao fabricarmos uma arca
ou um vaso.
Com efeito, essas matérias
precedem no tempo os objectos que delas são feitos. Mas com o canto não é
assim. Quando se canta ouve-se o som do canto: não há em primeiro lugar sons desorganizados,
que depois assumem a forma de canto. Logo que ele soa, o som desvanece-se, e
não deixa de si nada que se possa coordenar com arte. Por conseguinte, o canto
é formado de sons: o som é a sua matéria e, para se transformar em canto,
recebe uma forma. A prioridade não se fundamenta num poder criador, porque o
som não é o artífice do canto, mas é apenas posto pelo corpo à disposição da
alma do cantor, para que dele faça um canto. Nem se trata de prioridade temporal:
o som é produzido ao mesmo tempo que o canto. Tampouco se trata de prioridade
de escolha: o som não é superior ao canto, pois o canto nada mais é que som,
mas um som bonito. Trata-se apenas de uma prioridade de origem, pois o canto
não recebe forma para se tornar som, mas o som para se tornar canto.
Compreende-se por esse
exemplo, que a matéria das coisas foi criada antes, e chamada céu e terra,
porque dela foram formados o céu e a terra. Não foi criada antes em sentido cronológico,
porque o tempo só tem início com a forma das coisas; ora, a matéria era
informe, e tornou-se perceptível juntamente com o tempo. Todavia, não se pode
mencionar nada dessa matéria a não ser alguma prioridade temporal, embora ocupe
a última posição na escala de valores, pois o que tem forma é evidentemente
superior ao que é informe. Ou que foi precedida pela eternidade do Criador, que
a fez para que fossem feitas do nada todas as coisas.
CAPÍTULO
XXX
Espírito
de caridade
Nessa diversidade de
opiniões verdadeiras, que da própria verdade brote a concórdia! Que o nosso
Deus tenha compaixão de nós, para que usemos legitimamente da lei segundo o
preceito que tem por fim a pura caridade.
Por isso, se me
perguntarem qual dessas opiniões foi a do teu servo Moisés, eu não seria coerente
com as minhas confissões se não te confessasse que o ignoro.
Sei, contudo, que essas
opiniões são verdadeiras, a não meras interpretações materialistas, sobre as
quais já disse tudo o que pensava. São como meninos esperançosos aqueles que
não temem as palavras do teu Livro, tão profundas na sua humildade, tão
eloquentes na sua concisão. Mas nós todos que, eu o declaro, distinguimos e
dizemos a verdade sobre tais palavras, amemo-nos uns aos outros; e amemos-te
igualmente a ti, nosso Deus, fonte da Verdade, pois temos sede, não de
fantasias, mas da própria Verdade. Honremos o teu servo, que nos legou a tua Escritura,
cheio do teu espírito, e estejamos certos que, ao escrever as palavras que lhe
revelaste, ele teve em mira as revelações mais salientes da verdade e os seus
frutos proveitosos.
CAPÍTULO
XXXI
O
Génesis e seu autor
Assim, quando alguém me
diz: “O pensamento de Moisés é o meu” – e outro diz: “Não, ele pensou como eu”
– parece-me mais consoante com espírito religioso dizer: “Por que não admitir ambos
os pontos de vista, se ambos são verdadeiros?” – E se alguém descobrir um terceiro,
um quarto sentido, e outros mais, desde que sejam verdadeiros, por que não
acreditar que Moisés viu todos eles, ele por cujo intermédio o Deus único
adaptou as Escrituras à inteligência da multidão, que deveria descobrir-lhe
significados diversos e verdadeiros?
Por mim, digo-o sem
hesitar e do fundo do coração: se, investido da mais alta autoridade, tivesse
algo a escrever, preferiria fazê-lo de modo que as minhas palavras proclamassem
tudo o que cada um pudesse conceber de verdadeiro sobre isso, em vez de propor
um significado único e claro que excluísse todos os demais, cuja falsidade não
me pudesse ofender. E também não quero, meu Deus, ser tão temerário ao ponto de
acreditar que esse grande homem não mereceu de ti essa graça.
Moisés, redigindo esses
textos, pensou, concebeu todas as verdades que já fomos capazes de encontrar, e
também as que não o pudemos, mas que podem ser descobertas.
CAPÍTULO
XXXII
Oração
Enfim, Senhor, tu que és
Deus, e não carne e sangue, se um homem não pôde ver tudo por completo, poderia
o teu Espírito bom, que me deve conduzir à terra da rectidão, desconhecer algo
do que tencionavas revelar por essas palavras a seus leitores vindouros, apesar
do teu mensageiro não entender senão um dos numerosos sentidos verdadeiros? Se
assim é, o sentido que ele pensou ser o mais elevado de todos. Mas revela-nos a
nós, Senhor, esse sentido ou algum outro que for do teu agrado e real; e quer
nos mostres o mesmo sentido que ao homem de Deus, quer seja outro, inspirado
pelas mesmas palavras, alimenta o nosso espírito, guarda-nos da ilusão do erro.
Eis, Senhor meu Deus!
Quantas páginas escrevi sobre tão poucas palavras! Deste modo, as minhas forças
e o meu tempo serão suficientes para examinar todos os teus livros? Permite-me,
pois, abreviar as minhas confissões e adoptar uma única interpretação, que me
farás escolher como verdadeira, certa e boa, entre as muitas outras que me
poderão ocorrer. Que a minha confissão seja suficientemente fiel para que eu
tenha exactidão ao exprimir o pensamento do teu servo, pois para tal me
esforçarei; e, se não o conseguir, que eu pelo menos diga o que a tua Verdade
me quis dizer pelas suas palavras, como ela disse a Moisés o que lhe aprouve.
(Revisão
de versão portuguesa por ama)