EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL
AMORIS LÆTITIA
DO SANTO PADRE
FRANCISCO
AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS
OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA
CAPÍTULO VIII
ACOMPANHAR, DISCERNIR E INTEGRAR A FRAGILIDADE.
As
circunstâncias atenuantes no discernimento pastoral.
Para se entender
adequadamente por que é possível e necessário um discernimento especial nalgumas
situações chamadas «irregulares», há uma questão que sempre se deve ter em
conta, para nunca se pensar que se pretende diminuir as exigências do
Evangelho. A Igreja possui uma sólida reflexão sobre os condicionamentos e as
circunstâncias atenuantes. Por isso, já não é possível dizer que todos os que
estão numa situação chamada «irregular» vivem em estado de pecado mortal,
privados da graça santificante. Os limites não dependem simplesmente dum
eventual desconhecimento da norma. Uma pessoa, mesmo conhecendo bem a norma,
pode ter grande dificuldade em compreender «os valores inerentes à norma» ou
pode encontrar-se em condições concretas que não lhe permitem agir de maneira
diferente e tomar outras decisões sem uma nova culpa. Como bem se expressaram
os Padres sinodais, «pode haver factores que limitam a capacidade de decisão».
E São Tomás de Aquino
reconhecia que alguém pode ter a graça e a caridade, mas é incapaz de exercitar
bem alguma das virtudes, pelo que, embora possua todas as virtudes morais
infusas, não manifesta com clareza a existência de alguma delas, porque a
prática exterior dessa virtude está dificultada: «Diz-se que alguns Santos não
têm certas virtudes, enquanto experimentam dificuldade em pô-las em acto,
embora tenham os hábitos de todas as virtudes»[i].
A propósito destes
condicionamentos, o Catecismo da Igreja Católica exprime-se de maneira
categórica: «A imputabilidade e responsabilidade dum acto podem ser diminuídas,
e até anuladas, pela ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os
hábitos, as afeições desordenadas e outros factores psíquicos ou sociais». E,
noutro parágrafo, refere-se novamente às circunstâncias que atenuam a
responsabilidade moral, nomeadamente « a imaturidade afectiva, a força de
hábitos contraídos, o estado de angústia e outros factores psíquicos ou
sociais».
Por esta razão, um juízo
negativo sobre uma situação objectiva não implica um juízo sobre a
imputabilidade ou a culpabilidade da pessoa envolvida.
No contexto destas
convicções, considero muito apropriado aquilo que muitos Padres sinodais
quiseram sustentar: «Em determinadas circunstâncias, [ii] João Paulo II, ao criticar algumas leituras da
categoria «opção fundamental», reconhecia que «podem, sem dúvida, verificar-se
situações muito complexas e obscuras sob o ponto de vista psicológico, que
influem na imputabilidade subjectiva do pecador» as pessoas encontram grandes
dificuldades para agir de maneira diferente. (...) O discernimento pastoral, embora
tendo em conta a consciência rectamente formada das pessoas, deve ocupar-se
destas situações. As próprias consequências dos actos praticados não são
necessariamente as mesmas em todos os casos»[iii].
A partir do reconhecimento
do peso dos condicionamentos concretos, podemos acrescentar que a consciência
das pessoas deve ser melhor incorporada na práxis da Igreja em algumas situações
que não realizam objectivamente a nossa concepção do matrimónio. É claro que
devemos incentivar o amadurecimento duma consciência esclarecida, formada e
acompanhada pelo discernimento responsável e sério do pastor, e propor uma
confiança cada vez maior na graça. Mas esta consciência pode reconhecer não só
que uma situação não corresponde objectivamente à proposta geral do Evangelho,
mas reconhecer também, com sinceridade e honestidade, aquilo que, por agora, é
a resposta generosa que se pode oferecer a Deus e descobrir com certa segurança
moral que esta é a doação que o próprio Deus está a pedir no meio da
complexidade concreta dos limites, embora não seja ainda plenamente o ideal
objectivo. Em todo o caso, lembremo-nos que este discernimento é dinâmico e
deve permanecer sempre aberto para novas etapas de crescimento e novas decisões
que permitam realizar o ideal de forma mais completa.[iv]
As normas e o discernimento.
É mesquinho deter-se a
considerar apenas se o agir duma pessoa corresponde ou não a uma lei ou norma
geral, porque isto não basta para discernir e assegurar uma plena fidelidade a
Deus na existência concreta dum ser humano. Peço encarecidamente que nos
lembremos sempre de algo que ensina São Tomás de Aquino e aprendamos a
assimilá-lo no discernimento pastoral: «Embora nos princípios gerais tenhamos o
carácter necessário, todavia à medida que se abordam os casos particulares,
aumenta a indeterminação (…). No âmbito da acção, a verdade ou a rectidão
prática não são iguais em todas as aplicações particulares, mas apenas nos
princípios gerais; e, naqueles onde a rectidão é idêntica nas próprias acções,
esta não é igualmente conhecida por todos. (...) Quanto mais se desce ao
particular, tanto mais aumenta a indeterminação».
É verdade que as normas
gerais apresentam um bem que nunca se deve ignorar nem transcurar, mas, na sua
formulação, não podem abarcar absolutamente todas as situações particulares. Ao
mesmo tempo é preciso afirmar que, precisamente por esta razão, aquilo que faz
parte dum discernimento prático duma situação particular não pode ser elevado à
categoria de norma. Isto não só geraria uma casuística insuportável, mas também
colocaria em risco os valores que se devem preservar com particular cuidado[v].
Por isso, um pastor não
pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações
«irregulares», como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas. É
o caso dos corações fechados, que muitas vezes se escondem até por detrás dos
ensinamentos da Igreja «para se sentar na cátedra de Moisés e julgar, às vezes
com superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as famílias feridas».
Na mesma linha se
pronunciou a Comissão Teológica Internacional: «A lei natural não pode ser
apresentada como um conjunto já constituído de regras que se impõem a priori ao
sujeito moral, mas é uma fonte de inspiração objectiva para o seu processo,
eminentemente pessoal, de tomada de decisão».
Por causa dos condicionalismos
ou dos factores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio duma situação
objectiva de pe- 348 Referindo-se ao conhecimento geral da norma e ao conhecimento
particular do discernimento prático, São Tomás chega a dizer que, «se existir
apenas um dos dois conhecimentos, é preferível que este seja o conhecimento da
realidade particular porque está mais próximo do agir»[vi]
À procura duma ética universal: um novo olhar sobre a
lei natural
O discernimento deve
ajudar a encontrar os caminhos possíveis de resposta a Deus e de crescimento no
meio dos limites. Por pensar que tudo seja branco ou preto, às vezes fechamos o
caminho da graça e do crescimento e desencorajamos percursos de santificação
que dão glória a Deus. Lembremo-nos de que « um pequeno passo, no meio de
grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente
correcta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades».352
A pastoral concreta dos ministros e das comunidades não pode deixar de
incorporar esta realidade.
Em toda e qualquer circunstância,
perante quem tenha dificuldade em viver plenamente a lei de Deus, deve ressoar
o convite a percorrer a via caritatis. A caridade fraterna é a primeira lei dos
cristãos[vii]. Não esqueçamos. Em certos casos, poderia haver também
a ajuda dos sacramentos. Por isso, «aos sacerdotes, lembro que o confessionário
não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor»[viii]
E de igual modo assinalo
que a Eucaristia «não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e
um alimento para os fracos»[ix] a promessa feita na Sagrada Escritura: «Acima de tudo,
mantende entre vós uma intensa caridade, porque o amor cobre a multidão de
pecados»[x]; «redime o teu pecado pela justiça; e as tuas
iniquidades, pela piedade para com os infelizes»[xi]; «a água apaga o fogo ardente, e a esmola expia o pecado»[xii]. O
mesmo ensina também Santo Agostinho: «Tal como, em perigo de incêndio,
correríamos a buscar água para o apagar (...), o mesmo deveríamos fazer quando
nos turvamos porque, da nossa palha, irrompeu a chama do pecado; assim, quando
se nos proporciona a ocasião de uma obra cheia de misericórdia, alegremo-nos
por ela como se fosse uma fonte que nos é oferecida e da qual podemos tomar a
água para extinguir o incêndio».
(cont)
(revisão da versão
portuguesa por AMA)
[i] João Paulo II,
Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981), 33: AAS 74 (1982),
121. 340 Relatio Finalis 2015, 51. 341 Cf. Summa theologiae
I-II, q. 65, art. 3, ad. 2; De malo, q. 2, a. 2.
[ii] Summa theologiae
I-II, q. 65, art. 3, ad. 3. 343 N. 1735. 344 N. 2352; cf. Congr. para a Doutrina da
Fé, Decl. sobre a eutanásia Iura et bona (5 de Maio de 1980), II: AAS 72
(1980), 546.
[iii] [Exort. ap.
Reconciliatio et paenitentia (2 de Dezembro de 1984), 17: AAS 77 (1985), 223].
345 Cf. Pont. Conselho para os Textos Legislativos, Decl. sobre A
admissibilidade à Sagrada Comunhão dos divorciados que voltaram a casar (24 de
Junho de 2000), 2.
[iv]
Relatio
Finalis 2015, 85.
[v] Summa theologiae
I-II, q. 94, art. 4.
[vi] [Sententia libri
Ethicorum, VI, 6 (ed. Leonina, t. 47, 354)]. 349 Francisco, Discurso no encerramento
da XIV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (24 de Outubro de 2015):
L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 29/X/2015), 9.
[vii] (cf.
Jo 15, 12; Gal 5, 14)
[viii] [Francisco, Exort.
ap. Evangelii
gaudium (24 de Novembro de 2013), 44: AAS 105 (2013), 1038].
[ix] [Ibid., 47: o. c.,
1039]. 352 Ibid., 44: o. c., 1038-1039