Tempo comum X Semana
Evangelho: Mt 5, 20-26
20 Porque
Eu vos digo que, se a vossa justiça não superar a dos escribas e fariseus, não
entrareis no Reino dos Céus. 21 «Ouvistes que foi dito aos antigos:
“Não matarás”, e quem matar será submetido ao juízo do tribunal. 22
Porém, Eu digo-vos que todo aquele que se irar contra o seu irmão, será
submetido ao juízo do tribunal. E quem chamar cretino a seu irmão será condenado
pelo sinédrio. E quem lhe chamar louco será condenado ao fogo da Geena. 23
Portanto, se estás para fazer a tua oferta diante do altar, e te lembrares ali
que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, 24 deixa lá a tua oferta
diante do altar, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão, e depois vem
fazer a tua oferta. 25 Concilia-te sem demora com o teu adversário,
enquanto estás com ele no caminho, para que não suceda que esse adversário te
entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao guarda, e sejas metido na prisão. 26
Em verdade te digo: Não sairás de lá antes de ter pago o último centavo.
Comentário:
Algumas
expressões deste trecho de São Mateus são evidentemente para interpretar ao
sabor da época em que Jesus as proferiu. As palavras “louco”, “cretino”,
“imbecil” tinham um significado gravíssimo que, hoje, efetivamente já não têm,
O
que interessa reter, portanto, é a definição das prioridades: oferecer algo a
Deus e, depois, reconciliar-se com quem estamos de mal, ou o contrário?
Jesus
Cristo não deixa nenhuma margem de equívoco: Deus não aceitará nada quando há
algo pendente com outros.
É,
no fim e a cabo, o que se sintetiza no Pai-Nosso: “perdoa as nossas ofensas como nós perdoamos a quem nos ofendeu”;
sendo que, como é óbvio, o inverso também é verdadeiro ou seja: “perdoa as
nossas ofensas porque já fomos perdoados a quem ofendemos”.
(ama, comentário sobre Mt 5, 20-26, 2014.03.14)
Temas
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ESTOJOS DESAJUSTADOS
Mas, uma vez que não
vivemos no País das Maravilhas, como Alice, e sim na Terra dos Homens de que
falava Saint-Exupéry, forçoso é que reconheçamos que a toda a hora o estojo do mundo
falha, machuca, não abre, não fecha e se desajusta ou se desengonça. E então a
impaciência começa a brotar, a crescer, e a dar os seus, digamos, “frutos” (os
já referidos lamentos, tristezas, reclamações e quejandos).
As formas de desajuste e
inadaptação ao estojo da realidade, isto é, as impaciências do dia-a-dia, são
tão ricas em número como as espécies de insetos num livro de entomologia.
Bastaria observar com um pouquinho de atenção retalhos de um único dia na vida
de qualquer família normal para podermos elaborar um volumoso dicionário de
impaciências. Lembremos algumas das mais corriqueiras, a título de exemplo e só
para mencionar o que Nelson Rodrigues chamaria o “óbvio ululante”.
Papai acorda mais cedo e
vai preparar o café (ofício cada dia mais masculino). Primeira “fechada”,
naquela hora de olhar estremunhado e nervos mal temperados: da torneira não sai
um pingo d'água, porque é dia de corte devido à estiagem; e o pior é que o
jornal tinha avisado, e já é a quarta vez que se esquece disso num mês. Segunda
“fechada”: a menina, após a explosão de um estrondoso rádio-despertador e mais
três séries de violentas batidas da mãe na porta do quarto, continua a dormir,
e o pobre progenitor de emprego ameaçado, que já está atrasado para o serviço, vai
ter que deixá-la antes, a ela e ao Rodrigo, na escola. Ó estojo mal ajustado! O
dia já começa, como diria Guimarães Rosa, com “o mundo à revelia”!
Mas o que começa,
continua. Quando o aflito pai ia ligar para o escritório, avisando que uma
emergência o impediria de participar da primeira reunião, o imprescindível
telefone, tão necessário, está ocupado. Por quem? Pela filha mais velha, é
lógico, que já leva vinte minutos na sua primeira conversa do dia com o
namorado. “Sempre é assim!”, desabafa o pobre pai acuado.
Mas a bronca não elimina
quinze minutos mais, mínimo regulamentar para completar o horário do matutino
namoro. O estojo continua sem funcionar.
E quando por fim o homem,
esfalfado antes de ter começado a trabalhar, consegue sair à rua com o velho
carro usado, adquirido a preço camarada de um colega, os olhos batem instantaneamente
no guarda-lamas afundado..., e a última que pegou no carro foi a mulher. –
“Mais uma vez, outra vez!”, exclama o nosso protagonista, praticando sem o
saber um ato teologicamente perfeito de impaciência.
Será, porventura, preciso
acrescentar que, ao conseguir entrar na avenida, com um barulhinho no motor que
deixa o coração em sobressalto, o trânsito está parado? O engarrafamento é
monumental, fora do comum – que é comum mesmo –, devido a uma carreta que se
incrustou de frente no canteiro central e está atravessada na pista. – “Mais
essa! E depois dizem que não existe a lei de Murphy!”
Se quiséssemos continuar
pintando esse quadro escuro de contrariedades cotidianas, não poderia faltar
uma referência aos comentários mordazes dos colegas de escritório, porque o
time dele “mais uma vez” perdeu, nem faltaria a queixa contra o infernal
barulho da rua que tanto dificulta trabalhar; e assim, após inúmeros
aborrecimentos, veríamos o nosso homem chegar a casa num tal estado de ânimo
que qualquer pergunta da mulher lhe pareceria uma ofensa.
Poderíamos, sim, pintar
este quadro, mas – ainda que tivesse um fundo realista – seria completamente
falso. A verdade é que, salvo em raros dias que são exceção, a vida não se
compõe de uma sequência ininterrupta de contrariedades. Graças a Deus, há
também muitas satisfações e muitas alegrias e, normalmente, para quem não
estiver cego, o mais justo é terminar o dia fazendo uma enorme lista de bênçãos
recebidas de Deus, de males e perigos evitados, de proteções “descaradas” dos
Anjos da Guarda, além de muitos detalhes simpáticos do próximo, de modo que o coração
sinta a necessidade de elevar uma emocionada ação de graças. Se fôssemos
sinceros, veríamos que o elenco das bênçãos – tão belas como habituais – é
normalmente bem superior ao das contradições.
À PROCURA DO CRIMINOSO
Isto, porém, não elimina o
facto de que as contrariedades existem, e é delas que, como de um gerador
elétrico, surge a corrente contínua ou alternada da impaciência.
Se nos perguntassem de
chofre: – “Por que você fica impaciente?”, logo apontaríamos o culpado: – “Tal
contrariedade mais ou menos frequente, mais ou menos constante”. O culpado, o “criminoso”,
o agente provocador, é sempre a contrariedade que acomete, azucrina e faz
sofrer.
Caso pensemos assim – com
esta simplificação tão cândida –, será bom que observemos um fenômeno: nem todo
o mundo fica impaciente diante das mesmas coisas. Há, portanto, “algo” dentro
de nós que nos faz receber “determinadas” contrariedades – muitas ou poucas –
de um modo negativo e que desemboca na impaciência, ao passo que outras não. O
que é esse “algo”? Se conseguirmos enxergá-lo, teremos aberto um bom caminho
para diagnosticar a etiologia da impaciência e para ver os remédios que
conduzem à mais saudável paciência.
Pensemos, além disso, que
– tal como acontece com a preguiça –, afora os casos raros de infecção
generalizada (como a “preguiça integral” e a “impaciência permanente”), o defeito
da impaciência costuma ser “especializado”. Cada um de nós tem as “suas”
impaciências particulares, mexe-se dentro do campo da sua especialização. Pode
ser que pertençamos, por exemplo, à turma daqueles “especialistas” que não têm
paciência para escutar o próximo, sobretudo o mais próximo (marido, mulher,
filhos). Sempre me recordarei de um bispo velhinho, a quem – por razões de trabalho
– visitava com certa frequência. Como muitos anciãos, gostava de recordar
coisas passadas, e eu – por respeito e inibição, pois era muito jovem – ficava
a ouvi-lo, de modo que praticamente nunca abria a boca: limitava-me a deixá-lo
falar. Passado algum tempo, soube com espanto que ele comentara a um colega que
eu “tinha uma conversa muito agradável”! Senti vergonha, porque não tinha
consciência de estar sendo paciente, e aprendi uma lição.
Para mencionar outro
exemplo: não pertenceremos por acaso à turma especializada dos que
jamais admitem
interrupções? Estão “na deles” e dali não saem. Por mais que um filho, ou a
esposa ou qualquer outra pessoa precise da sua atenção, da sua palavra ou da
sua ajuda, o “homem intrinsecamente-ocupado-em-suas-coisas-muito-importantes”
vai limitar-se a “responder”, impaciente, com um olhar de poucos amigos, unido
a um ronco gutural ininteligível, mas perfeitamente interpretável.
E, ainda, não
pertenceremos talvez àquele outro rol de pós-graduados, conhecido como “a turma
dos impacientes mascarados”, que já apareciam acima divorciando-se? – “Sou
muito paciente, dizem esses mascarados. Não brigo nunca!” Mas sempre, sistematicamente,
fogem, lisos como uma cobra d'água, de enfrentar questões difíceis e
aborrecidas (uma conversa a fundo com o filho, muito necessária), de aceitar
compromissos (fazer oração diariamente, ler um livro de formação cristã) ou de
assumir responsabilidades (colaborar habitualmente num trabalho assistencial).
A razão disso não está nem na falta de tempo nem na falta de habilidade, mas no
facto puro e simples de que “não querem saber”, “não querem ter trabalho”, ou
seja, não querem sofrer.
E eis neste caso a
impaciência em estado quimicamente puro, em forma de uma completa falta de generosidade
para aceitar com fé, esperança e amor “o que contraria”, aquilo de que “não gostamos”,
isto é, o sacrifício e o sofrimento que Deus nos pede para acolher.
OBTER E EDIFICAR
A MÃO E A CONTRAMÃO
– Isso me pegou na
contramão! – diz o impaciente contrariado.
Tem razão. Aquilo foi-lhe
de encontro e o abalroou, chocando-se com os seus desejos, com a sua
tranquilidade ou com o seu bem-estar.
Mas, ao escutarmos essa
sua queixa, seria lógico que lhe perguntássemos:
– E... qual é a sua mão?
Em matéria de paciência,
talvez seja esta a pergunta fundamental, a que melhor nos pode conduzir àquele
“algo” que mencionamos acima e que é a verdadeira causa das nossas impaciências.
Todos temos mão e
contramão na vida. A mão é o objectivo para o qual se orientam principalmente
os nossos desejos, as nossas lutas, as nossas ambições, as nossas esperanças de
realização e de felicidade. Essa orientação fundamental é a autêntica directriz
do nosso coração, das nossas reflexões, dos nossos devaneios e dos nossos
empenhos.
Constatamos esta realidade
em nós e nos outros. E, ao mesmo tempo, verificamos que essa orientação
fundamental varia de um homem para outro. Mais ainda, que a mão dessa direcção
de vida tem sentidos contrários, conforme as pessoas. Um professor
universitário, entusiasmado com as suas pesquisas, não pode viver sem os seus
livros e o seu estudo, chegando a sacrificar indevidamente a esse ideal
científico até a saúde e a família. Pelo contrário, um estudante vadio não consegue
viver nem conviver com os livros e o estudo. O contraste é ainda mais marcante
se entramos a fundo nas questões em que se enraízam o sentido e o valor da
vida. Para um santo, um mundo sem Deus seria uma noite horrenda, a
quintessência do inferno. Para um agnóstico, Deus é perfeitamente dispensável,
e todas as coisas estão niveladas pela mesma indiferença.
Se procurarmos meditar na
vida, e conseguirmos lucidez suficiente para pensá-la em profundidade,
perceberemos que todas as atitudes básicas, todas as orientações “de fundo”,
todas as “mãos”, se reduzem, em último termo, a duas, que podem ser enunciadas
em duas palavras: obter e edificar.
“DÁ-ME A PARTE QUE ME
CORRESPONDE”
É comum perguntar a uma
criança: – “O que você quer ser quando crescer?” A resposta pode ir desde
“engenheiro igual ao papai” até “bombeiro” ou “jogador da Seleção brasileira”.
Menos comum é perguntar: –
“O que você quer fazer quando for grande?” Possivelmente, a resposta será:
“Estudar, namorar, casar”... Mas outras crianças ficarão desnorteadas perante
uma pergunta dessas. Elas sabem bem qual é a imagem ideal de si mesmas em seus
“sonhos”, mas custa-lhes considerar a vida como tarefa.
Ora, o que é totalmente
incomum é perguntar: – “O que você quer dar, o que você gostaria de dar quando
for grande?” E, no entanto, esta é a única pergunta que deveria fazer realmente
sentido para um ser humano.
A atitude de muitos
perante a vida é radicalmente egoísta. O mundo é “para mim”, a vida é “para
mim”. Mesmo os amores são vistos como um meio de obter o benefício da
realização pessoal. É por isso que muitos pensam em marido ou mulher só
enquanto “gostarmos”, ou seja, enquanto o egoísmo receber vantagens dessa
união. É só começarem, porém, os sacrifícios, que haverá despedida e partirão
para outra. E os filhos? Às vezes, nem sequer se pensa neles, e se espera tanto
para tê-los que – com perdão do leitor – a decisão de deixar descendência acaba
por ser tomada depois da menopausa.
O egoísta, aquele que só
quer usufruir da vida, que quer “realizar-se” colocando o seu “eu” como meta e
centro do mundo, esse só sabe repetir as palavras que Cristo põe na boca do
filho pródigo: “Pai, dá-me a parte que me toca” (cf. Lc 15, 12).
(cont.)