EXORTAÇÃO APOSTÓLICA
GAUDETE ET EXSULTATE
DO SANTO PADRE
FRANCISCO
SOBRE A CHAMADA À
SANTIDADE
NO MUNDO ACTUAL
Capítulo III
À LUZ DO MESTRE
A grande regra de comportamento
104. Poder-se-ia pensar que damos glória a Deus só com o culto e a
oração, ou apenas observando algumas normas éticas (é verdade que o primado
pertence à relação com Deus), mas esquecemos que o critério de avaliação da
nossa vida é, antes de mais nada, o que fizemos pelos outros. A oração é
preciosa, se alimenta uma doação diária de amor. O nosso culto agrada a Deus,
quando levamos lá os propósitos de viver com generosidade e quando deixamos que
o dom lá recebido se manifeste na dedicação aos irmãos.
105. Pela mesma razão, o melhor modo para discernir se o nosso
caminho de oração é autêntico será ver em que medida a nossa vida se vai
transformando à luz da misericórdia. Com efeito, «a misericórdia não é apenas o
agir do Pai, mas torna-se o critério para individuar quem são os seus
verdadeiros filhos». [i] É «a arquitrave
que suporta avida da Igreja». [ii] Quero assinalar
mais uma vez que, embora a misericórdia não exclua a justiça e a verdade,
«antes de tudo, temos de dizer que a misericórdia é a plenitude da justiça e a
manifestação mais luminosa da verdade de Deus». [iii] A misericórdia «é
a chave do Céu». [iv]
106. Não posso deixar de lembrar a questão que se colocava São
Tomás de Aquino ao interrogar-se quais são as nossas acções maiores, quais são
as obras exteriores que manifestam melhor o nosso amor a Deus. Responde sem
hesitar que, mais do que os actos de culto, são as obras de misericórdia para
com o próximo: [v] «não praticamos o
culto a Deus com sacrifícios e com ofertas exteriores para proveito d’Ele, mas
para benefício nosso e do próximo: de facto Ele não precisa dos nossos
sacrifícios, mas quer que Lhos ofereçamos para nossa devoção e para utilidade
do próximo. Por isso a misericórdia, pela qual socorremos as carências alheias,
ao favorecer mais directamente a utilidade do próximo, é o sacrifício que mais
Lhe agrada». [vi]
107. Quem deseja verdadeiramente dar glória a Deus com a sua vida,
quem realmente se quer santificar para que a sua existência glorifique o Santo,
é chamado a obstinar-se, gastar-se e cansar-se procurando viver as obras de
misericórdia. Muito bem o entendera Santa Teresa de Calcutá: «sim, tenho muitas
fraquezas humanas, muitas misérias humanas. (...) Mas Ele abaixa-Se e serve-Se
de nós, de ti e de mim, para sermos o seu amor e a sua compaixão no mundo,
apesar dos nossos pecados, apesar das nossas misérias e defeitos. Ele depende
de nós para amar o mundo e demonstrar-lhe o muito que o ama. Se nos ocuparmos
demasiado de nós mesmos, não teremos tempo para os outros».
[vii]
108. O consumismo hedonista pode-nos enganar, porque, na obsessão
de divertir-nos, acabamos por estar excessivamente concentrados em nós mesmos,
nos nossos direitos e na exacerbação de ter tempo livre para gozar a vida. Será
difícil que nos comprometamos e dediquemos energias a dar uma mão a quem está
mal, se não cultivarmos uma certa austeridade, se não lutarmos contra esta
febre que a sociedade de consumo nos impõe para nos vender coisas, acabando por
nos transformar em pobres insatisfeitos que tudo querem ter e provar. O próprio
consumo de informação superficial e as formas de comunicação rápida e virtual
podem ser um fator de estonteamento que ocupa todo o nosso tempo e nos afasta
da carne sofredora dos irmãos. No meio deste turbilhão actual, volta a ressoar
o Evangelho para nos oferecer uma vida diferente, mais saudável e mais feliz.
109. A força do testemunho dos santos consiste em viver as
bem-aventuranças e a regra de comportamento do juízo final. São poucas
palavras, simples, mas práticas e válidas para todos, porque o cristianismo
está feito principalmente para ser praticado e, se é também objecto de
reflexão, isso só tem valor quando nos ajuda a viver o Evangelho na vida
diária. Recomendo vivamente que se leia, com frequência, estes grandes textos
bíblicos, que sejam recordados, que se reze com eles, que se procure
encarná-los. Far-nos-ão bem, tornar-nos-ão genuinamente felizes.
ALGUMAS CARATERÍSTICAS
DA SANTIDADE
NO MUNDO ATUAL
110. Neste grande quadro da santidade que as bem-aventuranças e
Mateus 25, 31-46 nos propõem, gostaria de recolher algumas características ou traços
espirituais que, a meu ver, são indispensáveis para compreender o estilo de
vida a que o Senhor nos chama. Não me deterei a explicar os meios de
santificação que já conhecemos: os diferentes métodos de oração, os sacramentos
inestimáveis da Eucaristia e da Reconciliação, a oferta de sacrifícios, as
várias formas de devoção, a direcção espiritual e muitos outros. Limitar-me-ei
a referir alguns aspectos da chamada à santidade, que tenham – assim o espero –
uma ressonância especial.
111. Estas características que quero evidenciar não são todas as
que podem constituir um modelo de santidade, mas são cinco grandes
manifestações do amor a Deus e ao próximo, que considero particularmente
importantes devido a alguns riscos e limites da cultura de hoje. Nesta se
manifestam: a ansiedade nervosa e violenta que nos dispersa e enfraquece; o
negativismo e a tristeza; a acédia cómoda, consumista e egoísta; o
individualismo e tantas formas de falsa espiritualidade sem encontro com Deus
que reinam no mercado religioso actual.
112. A primeira destas grandes características é permanecer
centrado, firme em Deus que ama e sustenta. A partir desta firmeza interior, é
possível aguentar, suportar as contrariedades, as vicissitudes da vida e também
as agressões dos outros, as suas infidelidades e defeitos: «se Deus está por
nós, quem pode estar contra nós?» (Rm 8, 31). Nisto está a fonte da
paz que se expressa nas atitudes dum santo. Com base em tal solidez interior, o
testemunho de santidade, no nosso mundo acelerado, volúvel e agressivo, é feito
de paciência e constância no bem. É a fidelidade (pistis) do amor, pois
quem se apoia em Deus também pode ser fiel (pistós) aos irmãos, não os
abandonando nos momentos difíceis, nem se deixando levar pela própria
ansiedade, mas mantendo-se ao lado dos outros mesmo quando isso não lhe
proporcione qualquer satisfação imediata.
113. São Paulo convidava os cristãos de Roma a não pagar a ninguém
o mal com o mal (cf. Rm 12, 17), a não fazer-se justiça por conta
própria (cf. 12, 19), nem a deixar-se vencer pelo mal, mas vencer o mal com o
bem (cf. 12, 21). Esta atitude não é sinal de fraqueza, mas da verdadeira
força, porque o próprio Deus «é paciente e grande em poder» (Na 1,
3). Assim nos adverte a Palavra de Deus: «toda a espécie de azedume, raiva,
ira, gritaria e injúria desapareça de vós, juntamente com toda a maldade» (Ef 4,
31).
114. É preciso lutar e estar atentos às nossas inclinações
agressivas e egocêntricas, para não deixar que ganhem raízes: «se vos irardes,
não pequeis; que o sol não se ponha sobre o vosso ressentimento» (Ef 4,
26). Quando há circunstâncias que nos acabrunham, sempre podemos recorrer à
âncora da súplica, que nos leva a ficar de novo nas mãos de Deus e junto da
fonte da paz: «por nada vos deixeis inquietar; pelo contrário: em tudo, pela
oração e pela prece, apresentai os vossos pedidos a Deus em acções de graças.
Então, a paz de Deus, que ultrapassa toda a inteligência, guardará os vossos
corações» (Flp 4, 6-7).
115. Pode acontecer também que os cristãos façam parte de redes de
violência verbal através da internet e vários fóruns ou espaços de intercâmbio
digital. Mesmo nos media católicos, é possível ultrapassar os
limites, tolerando-se a difamação e a calúnia e parecendo excluir qualquer
ética e respeito pela fama alheia. Gera-se, assim, um dualismo perigoso,
porque, nestas redes, dizem-se coisas que não seriam toleráveis na vida pública
e procura-se compensar as próprias insatisfações descarregando furiosamente os
desejos de vingança. É impressionante como, às vezes, pretendendo defender
outros mandamentos, se ignora completamente o oitavo: «não levantar falsos
testemunhos» e destrói-se sem piedade a imagem alheia. Nisto se manifesta como
a língua descontrolada «é um mundo de iniquidade; (…) e, inflamada pelo
Inferno, incendeia o curso da nossa existência» (Tg 3, 6).
116. A firmeza interior, que é obra da graça, impede de nos
deixarmos arrastar pela violência que invade a vida social, porque a graça
aplaca a vaidade e torna possível a mansidão do coração. O santo não gasta as
suas energias a lamentar-se dos erros alheios, é capaz de guardar silêncio
sobre os defeitos dos seus irmãos e evita a violência verbal que destrói e
maltrata, porque não se julga digno de ser duro com os outros, mas considera-os
superiores a si próprio (cf. Flp 2, 3).
117. Não nos faz bem olhar com altivez, assumir o papel de juízes
sem piedade, considerar os outros como indignos e pretender continuamente dar
lições. Esta é uma forma subtil de violência. [viii] São João da Cruz
propunha outra coisa: «mostra-te sempre mais propenso a ser ensinado por todos
do que a querer ensinar quem é inferior a todos». [ix] E acrescentava um
conselho para afastar o demónio: «alegrando-te com o bem dos outros como se
fosse teu e procurando sinceramente que estes sejam preferidos a ti em todas as
coisas, assim vencerás o mal com o bem, afastarás o demónio para longe e
alegrarás o coração. Procura exercitá-lo sobretudo com aqueles que te são menos
simpáticos. E sabe que, se não te exercitares neste campo, não chegarás à
verdadeira caridade nem tirarás proveito dela». [x]
118. A humildade só se pode enraizar no coração através das
humilhações. Sem elas, não há humildade nem santidade. Se não fores capaz de
suportar e oferecer a Deus algumas humilhações, não és humilde nem estás no
caminho da santidade. A santidade que Deus dá à sua Igreja, vem através da
humilhação do seu Filho: este é o caminho. A humilhação faz-te semelhante a
Jesus, é parte ineludível da imitação de Jesus: «Cristo padeceu por vós,
deixando-vos o exemplo, para que sigais os seus passos» (1 Ped 2,
21). Ele, por sua vez, manifesta a humildade do Pai, que Se humilha para
caminhar com o seu povo, que suporta as suas infidelidades e murmurações
(cf. Ex 34, 6-9; Sab 11, 23 – 12, 2; Lc 6,
36). Por este motivo os Apóstolos, depois da humilhação, estavam «cheios de
alegria, por terem sido considerados dignos de sofrer vexames por causa do Nome
de Jesus» (At 5, 41).
119. Não me refiro apenas às situações cruentas de martírio, mas
às humilhações diárias daqueles que calam para salvar a sua família, ou evitam
falar bem de si mesmos e preferem louvar os outros em vez de se gloriar,
escolhem as tarefas menos vistosas e às vezes até preferem suportar algo de
injusto para o oferecer ao Senhor: «se, fazendo o bem, sofreis com paciência,
isso é uma coisa meritória diante de Deus» (1 Ped 2, 20). Não é
caminhar com a cabeça inclinada, falar pouco ou escapar da sociedade. Às vezes
uma pessoa, precisamente porque está liberta do egocentrismo, pode ter a
coragem de discutir amavelmente, reclamar justiça ou defender os fracos diante
dos poderosos, mesmo que isso traga consequências negativas para a sua imagem.
120. Não digo que a humilhação seja algo de agradável, porque isso
seria masoquismo, mas que se trata dum caminho para imitar Jesus e crescer na
união com Ele. Isto não é compreensível no plano natural, e o mundo
ridiculariza semelhante proposta. É uma graça que precisamos de implorar:
«Senhor, quando chegarem as humilhações, ajuda-me a sentir que estou seguindo
atrás de Ti, no teu caminho».
121. Esta atitude pressupõe um coração pacificado por Cristo,
liberto daquela agressividade que brota dum «ego» demasiado grande. A própria
pacificação, que a graça realiza, permite-nos manter uma segurança interior e
aguentar, perseverar no bem «ainda que atravesse vales tenebrosos» (Sal 23/22,
4) ou «ainda que um exército me cerque» (Sal 27/26, 3). Firmes no
Senhor, a Rocha, podemos cantar: «deito-me em paz e logo adormeço, porque só
Tu, Senhor, me fazes viver em segurança» (Sal 4, 9). Em suma,
Cristo «é a nossa paz» (Ef 2,14) e veio «dirigir os nossos passos
no caminho da paz» (Lc 1, 79). Ele fez saber a Santa Faustina
Kowalska: «a humanidade não encontrará paz, enquanto não se dirigir com
confiança à Minha Misericórdia».[xi] Por isso, não
caiamos na tentação de procurar a segurança interior no sucesso, nos prazeres
vazios, na riqueza, no domínio sobre os outros ou na imagem social: «Dou-vos a
minha paz. [Mas] não é como a dá o mundo, que Eu vo-la dou» (Jo 14,
27).
(cont)
(revisão
da versão portuguesa por AMA)
[v] Cf. Summa Theologiae,
II-II, q. 30, a. 4.
[vii] Cristo en los Pobres (Madrid 1981), 37-38.
[viii] Há muitas formas
de bulismo que, embora pareçam elegantes ou respeitosas e até
mesmo muito espirituais, provocam muito sofrimento na auto-estima dos outros.
[ix] Cautelas,
13: Opere (Roma 41979), 1070.
[x] Ibid., 13: o.
c., 1070.
[xi] A Misericórdia Divina na minha alma. Diário da Beata
Irmã Faustina Kowalska (Cidade
do Vaticano 1996), 132.