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A Cidade Deus |
A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO X
CAPÍTULO XVI
Para se merecer a vida eterna tem que se acreditar nos anjos
que para si exigem honras divinas ou nos que mandam servir em santa religião,
não a si, mas ao único Deus?
Mas em que anjos
elevemos acreditar a propósito da vida eterna? Nos que pretendem que sejam eles
próprios honrados com ritos religiosos, pedindo aos mortais que lhes prestem
culto e sacrifícios? Ou nos que declaram que esse culto é todo ele devido ao
único Deus criador do universo e deve, com o eles próprios dizem, ser prestado com
autêntica piedade Aquele, cuja contemplação faz a felicidade deles e, conforme prometem,
fará a nossa? Realmente, a visão de Deus é visão de um a tal beleza, digna de
um tão grande amor que, sem ela, o homem dotado e cumulado de todos os bens nem
por isso deixa de ser, como Plotino não hesita em afirmar, o maior desgraçado.
Quando, pois, diversos anjos, com sinais prodigiosos nos convidam a prestarmos
culto de latria, uns ao Deus único, outros a eles próprios, proibindo, todavia,
os primeiros que se adorem os segundos, não ousando estes proibir que se adore
aquele — a quais de uns e outros se deve prestar crédito? Respondam os
platónicos, respondam os filósofos de qualquer escola, respondam os teurgos ou antes
os periurgos — já que esta é a palavra que mais convém a
todas estas práticas. Enfim, respondam os homens, se neles existe, uma parte
que seja, daquele sentido da sua natureza que os torna racionais; respondam,
digo eu:
Deve-se sacrificar a
estes anjos ou deuses que o exigem para si próprios, ou só Àquele ao qual nos
ordenam que o façamos ou que no-lo proíbem quer em sua honra quer em honra dos
outros?
E se nem uns nem
outros fizessem milagres, limitando-se uns a prescrever sacrifícios em sua própria
honra, e outros a prescrevê-los para os reservarem ao único Deus — a piedade deveria
bastar para distinguir o que provém de um orgulho insolente do que deriva dum
espírito autenticam ente religioso. Direi mais: Se os que reclamam para si
sacrifícios fossem os únicos a abalar as almas humanas pelos seus prodígios, e
aqueles que as prescrevem para os reservarem ao Deus único não se dignassem
fazer esses milagres visíveis, — seguram ente que a autoridade destes últimos
deveria prevalecer, não aos olhos do corpo, mas ao juízo da razão. Mas Deus,
para dar maior credibilidade às suas palavras de verdade, fez, por intermédio
destes imortais mensageiros que proclamam, não o seu orgulho, mas a majestade
de Deus, milagres maiores, mais autênticos, mais brilhantes, para que não
tivessem qualquer facilidade de persuadir os piedosos débeis da sua falsa
religião os que, com a ostentação dos prodígios sensíveis, exigem para si próprios
sacrifícios. Quem é que gostará de ser louco ao ponto de não escolher a verdade
que deve seguir precisam ente onde encontra os maiores sinais a admirar?
A história refere,
realmente, alguns milagres dos deuses dos gentios. (Não me refiro aos fenómenos
estranhos que, um a vez por outra, acontecem devido a causas ocultas da
natureza, sempre estabelecidas e ordenadas pela providência divina; inusitados
partos de animais, espectáculos insólitos no Céu e na Terra, simplesmente
terríficos, mas às vezes também nocivos, que, a crer na astúcia enganadora dos
demónios, são pelos seus ritos conjurados e mitigados. Falo antes desses
prodígios que apresentam com bastante evidência com o um efeito da sua força e
poderio, tais como: as imagens dos deuses Penates, que Eneias levou consigo ao
fugir de Troia, andarem, ao que se diz, por si próprias de um lugar para o
outro; Tarquínio cortar um penhasco com uma navalha; a serpente de Epidauro acompanhar
Esculápio enquanto ele navegou até Roma; uma mulherzinha, para provar a sua
castidade, conseguir mover e arrastar, atada a um cinto, a nau em que era transportada
a imagem da Mãe — Frigia que se tinha mantido imóvel apesar dos esforços de
tantos homens e bois; uma virgem Vestal cuja integridade era contestada, pôr fim
à discussão enchendo um crivo de água do Tibre sem ela se derramar). Estes
prodígios e outros quejandos em nada se comparam com o poder e a grandeza dos
operados, como lemos, entre o povo de Deus. Muito menos comestes se comparam
ainda aquelas práticas, mágicas e teúrgicas, tidas por dignas de serem
proibidas e castigadas pela lei dos próprios povos que adoravam esses deuses! A
maior parte de tais prodígios eram puras aparências com que enganavam os
sentidos dos mortais utilizando um hábil jogo de imagens — com o era o caso de,
com o diz Lucano, se fazer descer a Lua:
Até que, de perto
derrame a sua baba sobre as ervas rasteiras [i].
Se alguns destes
factos parecem igualar materialmente algumas das obras dos santos, o fim que as
distingue manifesta a incomparável superioridade destas. No primeiro caso
trata-se de uma multidão de deuses que merecem as honras dos sacrifícios tanto
menos quanto mais as reclamam; no outro caso, é o Deus único que nos é
recomendado: mas que — com o no-lo atestam as suas Escrituras e com o no-lo
mostra, mais tarde, a abolição desses sacrifícios — não tem necessidade de semelhantes
homenagens. Se, portanto, alguns anjos reivindicam para si o sacrifício, é
necessário preferir-lhes aqueles que o não reclamam para si, mas sim para o
Deus que servem, Criador de todas as coisas. É por aí, realmente, que eles
mostram com que sincero amor nos amam, pois querem pelo sacrifício fazer de
nós, não súbditos seus, mas antes súbditos d’Aquele cuja contemplação faz a sua
felicidade, e querem ainda ajudar-nos a chegar até Àquele que jamais abandonaram.
E se os anjos reclamam sacrifícios — não apenas para um, mas para vários, não
para eles próprios mas para os deuses de quem são anjos — mesmo, então, é
necessário preferir-lhes os que são anjos do único Deus dos deuses: estes anjos
com tal força ordenam que só a Deus único se ofereçam sacrifícios, que chegam a
proibir se ofereçam a qualquer outro — ao passo que nenhum dos outros anjos proíbe
que se ofereçam sacrifícios Àquele ao qual estes ordenam que se ofereçam. Mas
se, como o indica a sua soberba falácia, aqueles que reclamam sacrifícios, não
para o único Deus Soberano, mas para si próprios, não são nem bons anjos nem
anjos dos deuses bons, mas maus demónios — que protecção mais poderosa poderem
os escolher contra eles do que a do Deus único de quem são servidores os anjos
bons que nos prescrevem que ofereçam os sacrifícios não a eles, mas Àquele de
quem nós próprios devemos ser o sacrifício?
CAPÍTULO XVII
Da Arca do Testamento e dos milagres que Deus operou para recomendar a
autoridade da sua lei e das suas promessas.
Por isso é que a lei de Deus promulgada pelo ministério dos anjos, prescrevendo
que se prestasse culto religioso ao único Deus dos deuses e proibindo que se
prestasse a qualquer outro, foi colocada num a arca chamada Arca do Testemunho.
Com este nom e se significa suficientemente que Deus, objecto de todo o culto,
não costuma estar encerrado nem contido num lugar: em bora as suas respostas e
certos sinais perceptíveis aos sentidos saíssem do lugar em que se encontrava a
Arca, mais não eram do que testem unhos da sua vontade. Como já disse, a
própria lei escrita em tábuas de pedra estava colocada na Arca; durante a
viagem pelo deserto os sacerdotes transportavam-na com o respeito que lhe era
devido, juntamente com uma tenda também chamada Tenda do Testemunho. Havia
um sinal que aparecia durante o dia como uma nuvem e durante a noite brilhava
como o fogo; quando esta nuvem se movia, levantava-se o acampamento quando ela
parava, acampava-se. Grandes milagres — além dos factos já referidos e das
vozes que saíam do lugar onde estava a Arca — prestavam testemunho a essa lei. A
entrada da Terra Prometida, quando a Arca passou o Jordão, o rio reteve as suas
águas a montante e deixou-as correr a jusante, permitindo que tanto o povo como
ela atravessassem a pé enxuto. Depois a Arca foi passeada, sete vezes à volta
da primeira cidade inimiga, que adorava, conforme era costume dos gentios, um grande
número de deuses — e, repentinamente, as muralhas esboroaram-se sem qualquer
exército as ter atacado, sem qualquer embate do aríete. Quando, ainda mais
tarde, os hebreus já habitavam na Terra Prometida, foi a Arca tomada pelos
inimigos em consequência dos seus pecados. Os que a tomaram colocaram-na com
todas as honras no templo do deus que adoravam acima de todos, e aí a deixaram fechada. No dia
seguinte, ao abrirem o templo, encontraram derrubado e vergonhosamente
despedaçado, o ídolo a que dirigiam as suas preces. Depois, emocionados pelos
prodígios e ainda mais vergonhosamente castigados, restituíram a Arca do divino
Testemunho ao povo ao qual a tinham tomado. E vejam com o é que foi essa restituição! Colocaram a
Arca sobre um a carroça jungida a duas novilhas às quais retiraram os vitelos
que amamentavam, e deixaram-nas ir para onde quisessem, procurando desta forma
pôr à prova o poder divino. E elas, sem condutor, sem guia, seguiram
direitinhas em direcção aos hebreus, surdas aos mugidos das crias esfomeadas, e
levaram este grande mistério (sacramentum) aos que o veneravam.
Estes prodígios e outros que tais são pequenos aos olhos de Deus, mas grandes
pelos ensinamentos que devem prestar e pelo salutar temor que devem inspirar
aos mortais. Se alguns filósofos, sobretudo os platónicos, são glorificados por
serem mais sábios do que os outros ao ensinarem, com o um pouco atrás recordei,
que a Divina Providência se ocupa dos mais pequeninos seres da Terra, como o
com provam as belezas harmoniosas que revestem os corpos dos vivos, mesmo das plantas
e até das ervas do campo — quão mais evidente é o testemunho prestado à divindade
por todos estes prodígios realizados à hora em que é proclamada, no lugar em
que é recomendada, uma religião que proíbe se ofereçam sacrifícios a qualquer
criatura do Céu, da Terra, dos Infernos, e estabelece que eles sejam reservados
ao único Deus que é o único que ama e que, amado, nos faz felizes! É Ele que,
de antemão, delimita os tempos em que esses sacrifícios serão prescritos e anuncia
que eles tomarão uma nova e melhor forma nas mãos de um sacerdote mais
perfeito, atestando assim que não os desejava, mas que eles eram a figura de
melhores realidades: por eles queria, não ser exaltado por tais honras, mas
mover-nos a adorá-lo para felicidade nossa e não sua, e unir-nos a Ele
inflamados pelo fogo do seu amor.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i]
Lucano, Farsália, VI, 506