CARTA ENCÍCLICA
HAURIETIS AQUAS
DO SUMO PONTÍFICE PAPA PIO XII
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS PATRIARCAS, PRIMAZES,
ARCEBISPOS E BISPOS E OUTROS ORDINÁRIOS DO LUGAR
EM PAZ E COMUNHÃO COM A SÉ APOSTÓLICA
SOBRE O CULTO DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
V
EXORTAÇÃO
À PRÁTICA
MAIS
PURA E MAIS EXTENSA DO CULTO
AO
SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
1) Convite a compreender e
praticar melhor as várias formas da devoção ao coração de Jesus
61.
Antes de terminarmos as considerações tão belas e tão consoladoras que vos
estamos fazendo sobre a natureza autêntica deste culto e a sua cristã
excelência, nós, cônscios do ofício apostólico confiado em primeiro lugar a São
Pedro depois que ele por três vezes professou o seu amor a Jesus Cristo nosso
Senhor, julgamos conveniente, veneráveis irmãos, exortar-vos uma vez mais, e
por vosso intermédio exortar todos os caríssimos filhos que em Cristo temos, a
que vos esforceis com crescente entusiasmo por promover esta suavíssima
devoção, pois confiamos que dela hão-de brotar grandes proveitos também nos
nossos tempos.
62.
Em verdade, se se ponderam devidamente os argumentos em que se funda o culto ao
coração ferido de Jesus, todos verão claramente não se tratar aqui de uma forma
qualquer de piedade, que se possa pospor a outras ou ter em menos, mas sim de
uma prática religiosa sumamente apta para conseguir a perfeição cristã.
Se
segundo o conceito teológico tradicional, expresso pelo Doutor angélico –
"a devoção não é outra coisa senão a vontade pronta de se dedicar a tudo o
que se relaciona com o serviço de Deus",[1]
pode haver serviço divino mais devido e mais necessário, e ao mesmo tempo mais
nobre e mais suave, daquele que se presta ao seu amor?
Que
coisa pode haver mais grata e mais aceita a Deus do que o serviço que se faz à
caridade divina, e que se faz por amor, sendo, como é, todo serviço voluntário,
de certo modo, um dom, e constituindo o amor "o dom primeiro e origem de
todos os dons gratuitos"?[2]
Digna
é, pois, de sumo apreço uma forma de culto mediante a qual o homem ama e honra
mais a Deus e se consagra com maior facilidade e liberdade à caridade divina;
forma de culto que o nosso próprio Redentor se dignou propor e recomendar ao
povo cristão, e que os sumos pontífices confirmaram com memoráveis documentos e
enalteceram com grandes louvores. Por isso, quem tivesse em pouco esse insigne
benefício que Jesus Cristo deu à sua Igreja, procederia temerária e
perniciosamente, e ofenderia o próprio Deus.
63.
Isso posto, não se pode duvidar de que os cristãos que honram o sacratíssimo
coração do Redentor cumprem o dever, por demais gravíssimo, que eles têm de
servir a Deus, e que justamente se consagram a si mesmos e todas as suas
coisas, seus sentimentos interiores e sua actividade exterior, ao seu Criador e
Redentor, e que desse modo observam aquele divino mandamento: "Amarás o
Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua
mente e com todas as tuas forças"[3].
Além
disso, têm a certeza de que honrar a Deus não os move principalmente o proveito
pessoal, corporal ou espiritual, temporal ou eterno, e sim a bondade do próprio
Deus, a quem eles procuram obsequiar com correspondência de amor, com actos de
adoração e com a devida acção de graças. Se assim não fora, o culto ao
sacratíssimo coração de Jesus não corresponderia ao carácter genuíno da religião
cristã, visto que com tal culto o homem não honraria principalmente o amor
divino; e não sem motivo, como às vezes sucede, poder-se-ia increpar de
excessivo amor e solicitude de si mesmos os que entendem mal esta nobilíssima
devoção ou não a praticam convenientemente.
64.
Tenham, pois, todos a firme persuasão de que no culto ao Augustíssimo Coração
de Jesus o mais importante não são as práticas externas de piedade, e que o
motivo principal de abraçá-lo não deve ser a esperança dos benefícios que
Cristo nosso Senhor prometeu em revelações, e estas privadas, precisamente para
que os homens cumpram com mais fervor os principais deveres da religião
católica, a saber: o dever do amor e o da expiação, e assim também obtenham da
melhor maneira o seu próprio proveito espiritual.
65.
Exortamos, pois, todos os nossos filhos em Cristo a praticarem com entusiasmo
esta devoção, tanto os que já costumam beber as águas salutares que manam do
coração do Redentor, como sobretudo os que, à guisa de espectadores, olham de
longe, com curiosidade e dúvida.
Considerem
esses com atenção tratar-se, como já dissemos, de um culto desde há tempos
arraigado na Igreja, e que se apoia solidamente nos próprios Evangelhos; de um
culto em favor do qual está claramente a tradição e a sagrada liturgia, e que
os próprios pontífices romanos exaltaram com muitos e grandes louvores; pois
não se contentaram com instituir uma festa em honra do Coração do Redentor e
estendê-la a toda a Igreja, mas ainda tomaram a iniciativa de dedicar e
consagrar com rito solene todo o género humano ao mesmo sacratíssimo coração.[4]
Considerem,
finalmente, os frutos copiosos e consoladores que a Igreja tem colhido desta
devoção: inúmeras conversões à religião católica, a fé de muitos reavivada, a
união mais estreita dos cristãos com o nosso amantíssimo Redentor; frutos esses
todos que, sobretudo nestes últimos decénios, têm sido observados com maior
frequência e esplendor.
66.
Ao contemplarmos este magnífico espetáculo da extensão e do fervor com que a
devoção ao sacratíssimo Coração de Jesus se tem propagado em toda classe de
fiéis, sentimo-nos cheios de alegria e de consolação; e, depois de darmos as
devidas graças ao nosso Redentor, que é tesouro infinito de bondade, não
podemos deixar de nos congratular paternalmente com todos os que têm
contribuído eficazmente para promover este culto, pertençam eles ao clero ou as
fileiras dos simples féis.
PIO PP. XII.
(Revisão da versão
portuguesa por AMA)
Notas:
[1] Summa theol., II-II, q. 82, a, l; ed. Leon. t.
IX,1897, p.187.
[2] Ibid., I, q. 38, a. 2; ed. Leon. t. N,1888, p.
393.
[4] Cf. Leão XIII, Enc.
Annum Sacrum: Acta Leonis, vol. 19(1900), p. 71s; Decr. S.C. Rituum, 28 de Jun.
de 1899, in Decr. Auth. III, n. 3712; Pio XI, Enc. Miserentissimus Redemptor;
AAS, 20(1928), p.177s; Decr. S.C. Rituum, (29 de Jan. de 1929): AAS 21(1929),
p. 77.