A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO XIII
CAPÍTULO VII
Da morte que alguns, ainda não regenerados pelo baptismo, aceitam por
confessarem a Cristo.
De facto, para aqueles que, mesmo sem terem recebido ainda o banho da
regeneração, morrem por confessarem a Cristo, a sua morte tem tanto poder para
lhes remir os pecados como se fossem lavados pela fonte sagrada do baptismo.
Realmente, aquele que disse:
Ninguém entrará no reino dos céus se não renascer da
água e do Espírito. [i]
abre uma excepção por este preceito não menos genérico:
Aquele que me confessar perante os homens, confessá-lo-ei eu
também perante meu Pai que está nos céus;[ii]
e em outra passagem:
O que por mim perder a sua alma, encontrá-la-á. [iii]
E por isso que está escrito:
A morte dos santos é preciosa aos olhos do Senhor.[iv]
Haverá, efectivamente, algo de mais precioso do que uma morte pela qual todos
os pecados são perdoados e os méritos são elevados ao máximo? Na verdade, os
que, por não poderem protelar a morte, recebem o baptismo e partem desta vida
com todos os seus pecados apagados, não têm mais méritos do que os que, podendo
fazê-lo, não protelaram a morte porque preferiram acabar com a vida confessando
a Cristo a chegarem ao baptismo depois de O terem renegado. Se tivessem renegado
a Cristo por medo da morte, teriam encontrado a remissão neste banho salutar no
qual foram lavados de tão monstruoso crime os que entregaram Cristo à morte.
Mas, sem a abundância da graça daquele Espírito que sopra onde quer, com o poderiam amar a Cristo até ao
ponto de não O poderem renegar em perigo tão iminente da sua vida e com um a
tão grande esperança de perdão? Por conseguinte, é preciosa a morte dos santos,
a quem a morte de Cristo precedeu e enriqueceu com tal abundância de graça que
eles não hesitaram em dar a sua vida para d’Ele gozarem. Essa morte demonstrou
que, o que tinha sido anteriormente estabelecido como pena do pecado, se
tornara fonte de um fruto mais abundante de justiça. A morte não deve,
portanto, ser encarada com o um bem porque é o favor divino, e não a sua
própria virtude, que lhe granjeou tão grande utilidade. Outrora apresentada
como coisa que devia ser temida para nos desviar do pecado, deve agora ser
aceite para não cometermos o pecado, para apagarmos o pecado que tenhamos cometido,
para oferecermos à justiça a devida palma de tamanha vitória.
CAPÍTULO VIII
Nos santos a aceitação da primeira morte pela verdade constitui a
abolição da segunda morte.
Se bem repararmos, até mesmo aquele
que fiel e louvavelmente morre pela verdade toma as suas cautelas perante a
morte. Com efeito, aceita um a parte dela para não ter que a sofrer por
inteiro, sobretudo a segunda que jamais acabará. Aceita-se, na realidade, a
separação da alma e do corpo com receio de que Deus se separe da alma e de que
o homem todo, após a primeira morte, caia na segunda, que é eterna. A morte
que, como disse, faz sofrer os moribundos e lhes tira a vida para ninguém é
boa, mas é louvável suportá-la para se conseguir ou adquirir um bem. Para
aqueles que já estão mortos não é absurdo dizer que ela é má para os maus e boa
para os bons. Realmente, separadas dos seus corpos, as almas dos justos ficam
no repouso, mas as dos ímpios expiam as suas penas até que revivam os corpos de
uns para a vida eterna e os dos outros para a eterna morte, também chamada
segunda morte.
CAPÍTULO IX
Deve-se dizer que o momento da morte, em que desaparece o sentimento da
vida, se verifica num moribundo ou num morto?
Que é que se deve dizer do momento em que as almas se separam dos corpos, tanto
nos bons como nos maus — ele verifica-se após a morte ou na morte? Se se
verifica após a morte, então da morte, que já se verificou e já passou, não se
pode dizer que é boa ou má, mas que será boa ou má a vida da alma depois da
morte. A morte era um mal quando estava presente, isto é, quando os moribundos
a suportavam, pois experimentavam então pesadas e dolorosas sensações; e deste
mal fazem bom uso os bons. Mas, terminada ela, com o pode a morte ser boa ou má
se já não existe? Se prestarmos melhor atenção veremos que não é morte aquela
pesada e dolorosa sensação que dissemos verificar-se nos moribundos.
Efectivamente, enquanto sentem ainda vivem; e se ainda vivem deve-se antes
afirmar que estão perante a morte em vez de se afirmar que estão na morte:
realmente, a sua presença apaga todas as sensações do corpo, as quais só são
dolorosas quando a morte se aproxima. Por isso é que é difícil explicar como é
que chamamos moribundos aos que ainda não estão mortos, mas apenas se debatem
na suprema angústia da morte iminente — embora correctamente se lhes possa
chamar moribundos porque, quando a morte próxima se torna presente, na
realidade, já lhes não chamamos moribundos, mas mortos. Ninguém, portanto, está
a morrer senão quem vive; realmente, se se encontram em extremo tal da vida com
o aquele em que estão os que dissemos que entregam a alma, mas dela ainda não
estão privados, é porque vivem. E assim, a mesma pessoa está ao mesmo tempo a
viver, a morrer, a aproximar-se da morte, a afastar-se da vida — mas sempre na
vida, pois a alma ainda está presente no corpo, e não na morte porque a alma
não abandonou o corpo. Com o, quando ela o tiver abandonado, já se não estará
então na morte, mas depois da morte, — quando será então que se estará na
morte? Quem o dirá? De facto, ninguém estará a morrer se não estiver ao mesmo
tempo moribundo e vivo, porque, enquanto a alma estiver presente, não se pode
negar que se vive. O u então, se tem que se chamar moribundo àquele que já
sente no seu corpo a acção da morte — não podendo ninguém ser ao mesmo tempo
vivo e moribundo — não sei quando se pode dizer que alguém está vivo.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)