Páscoa
Evangelho:
Jo 3, 16-21
16
«Porque Deus amou de tal modo o mundo, que lhe deu Seu Filho Unigénito, para
que todo aquele que crê n'Ele não pereça, mas tenha a vida eterna. 17 Porque
Deus não enviou Seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo
seja salvo por Ele. 18 Quem n'Ele acredita, não é condenado, mas quem não
acredita, já está condenado, porque não acredita no nome do Filho Unigénito de
Deus. 19 A condenação é por isto: A luz veio ao mundo e os homens amaram mais
as trevas do que a luz, porque as suas obras eram más. 20 Porque todo aquele
que faz o mal aborrece a luz e não se chega para a luz, a fim de que não sejam
reprovadas as suas obras; 21 mas aquele que procede segundo a verdade, chega-se
para a luz, a fim de que seja manifesto que as suas obras são feitas segundo
Deus».
Comentário:
Deve ser tão triste viver sem luz!
E perigoso!
E, talvez, mortal!
Deve ser triste, porque sem luz,
não vemos por onde vamos e não podemos ser vistos.
Ficamos assim, erráticos e sozinhos.
Deve ser perigoso porque muito dificilmente podemos evitar obstáculos
perigosos ou precipícios mortais.
Deve ser mortal porque sem luz ficamos nas trevas e, nas
trevas não há vida!
(ama,
comentário sobre Jo 3, 16-21, 2012.03.18)
Leitura espiritual
SANTO
AGOSTINHO – CONFISSÕES
LIVRO
NONO
CAPÍTULO
X
O
êxtase de Óstia
Estando já próximo o dia
em que teria de partir desta vida – que tu, Senhor, conhecias, e nós
ignorávamos – sucedeu, creio, por disposição dos teus ocultos desígnios – que
nos encontrássemos sós, eu e ela, apoiados numa janela que dava para o jardim
interior da casa em que morávamos. Era em Óstia, sobre a foz do Tibre, onde,
longe da multidão, depois do cansaço de uma longa viagem, recobrávamos forças
para a travessia do mar.
Ali, sozinhos,
conversávamos com grande doçura, esquecendo o passado, ocupados apenas no
futuro, indagávamos juntos, na presença da Verdade, que és tu, qual seria a
vida eterna dos santos, que nem os olhos viram, nem os ouvidos ouviram, nem o
coração do homem pode conceber. Abríamos ansiosos os lábios do nosso coração ao
jorro celeste da tua fonte – da fonte da vida que está em ti – para que,
banhados por ela, pudéssemos de algum modo meditar sobre coisa tão
transcendente.
A nossa conversa chegou à
conclusão que nenhum prazer dos sentidos carnais, por maior que seja, e por
mais brilhante e maior que seja a luz material que o cerca, não parece digno de
ser comparado à felicidade daquela vida em ti. Elevando o nosso sentimento para
mais alto, mais ardentemente em direcção ao próprio Ser, percorremos uma a uma
todas as coisas corporais, até o próprio céu, de onde o sol, a luz e as
estrelas iluminam a terra.
E subimos ainda mais em
espírito, meditando, celebrando e admirando as tuas obras, e chegamos até o íntimo
das nossas almas. E fomos além delas, para alcançar a região da abundância
inesgotável, onde apascentas eternamente Israel com o alimento da verdade, lá
onde a vida é a própria Sabedoria, por quem foram criadas todas as coisas, as
que já existem e as vindouras, sem que ela própria se crie a si mesma, pois
existe agora como antes existiu e como sempre existirá. Antes, nela não há nem
passado, nem futuro: ela apenas é, porque é eterna; mas ter sido ou haver de
ser não é próprio do ser eterno.
E enquanto assim falávamos
dessa Sabedoria e por ela suspirávamos, chegamos a tocá-la momentaneamente com
supremo ímpeto do nosso coração; e, suspirando, deixando ali atadas as
primícias do nosso espírito, e voltamos ao ruído vazio dos nossos lábios, onde
nasce e morre a palavra humana, em nada semelhante ao teu Verbo, Senhor nosso,
que subsiste em si sem envelhecer, renovando todas as coisas!
E dizíamos: Suponhamos que
se calasse o tumulto da carne, as imagens da terra, da água, do ar e até dos
céus; e que a própria alma se calasse, e se elevasse sobre si mesma não
pensando mais em si; se calassem os sonhos e revelações imaginarias e, por fim,
se calasse por completo toda a língua, todo o sinal, e tudo o que é fugaz – uma
vez que todas as coisas dizem a quem sabe ouvi-las: Não fizemos a nós mesmas;
fez-nos o que permanece eternamente – se, dito isto, todas se calassem, atentas
ao seu Criador; e se só ele falasse, não pelas suas obras, mas por si mesmo, de
modo que ouvíssemos a sua palavra, não por uma língua material, nem pela voz de
um anjo, nem pelo ruído do trovão, nem por parábolas enigmáticas, mas o ouvíssemos
a ele mesmo, a quem amamos nas suas criaturas, mas sem o intermédio delas, como
agora acabamos de experimentar, atingindo num relance a eterna Sabedoria, que
permanece imutável sobre toda realidade, e supondo que essa visão se
prolongasse, que todas as outras visões cessassem, e unicamente esta
arrebatasse a alma do seu contemplador, e a absorvesse e abismasse em íntimas
delícias, de modo que a vida eterna seja semelhante a este momento de intuição
que nos fez suspirar, não seria isto a realização do entrar no gozo do teu
Senhor? Mas quando se dará isto? Por acaso quando todos ressuscitarmos? Mas
então não seremos todos transformados?
Tais coisas dizíamos,
embora não deste modo, nem com estas palavras. Mas tu sabes, Senhor, que
naquele dia, à medida que falávamos dessas coisas, quanto nos parecia vil este
mundo, com todos os seus deleites – disse-me minha mãe: “Filho, quanto a mim,
já nada me atrai nesta vida. Não sei o que faço ainda aqui, nem por que ainda
estou aqui, se já se desvaneceram para mim todas as esperanças do mundo. Uma só
coisa me fazia desejar viver um pouco mais, e era ver-te católico antes de
morrer. Deus concedeu-me esta graça superabundantemente, pois te vejo desprezar
a felicidade terrena para servi-lo. Que faço, pois, aqui?”
CAPÍTULO
XI
A
morte de Mónica
Não me lembro bem o que
respondi a tais palavras. Mas cerca de cinco dias mais tarde, ou pouco mais,
caiu de cama, com febre. Durante a doença, teve um dia um desmaio, ficando por
pouco tempo sem sentidos e sem reconhecer os presentes. Acudimos de imediato, e
logo voltou a si. Vendo-nos a seu lado, a mim e a meu irmão (chamava-se
Navígio, e era o mais velho dos irmãos), perguntou-nos, como quem procura algo:
“Onde estava eu?” – Depois, vendo-nos atónitos de tristeza, disse-nos:
“Sepultareis aqui a vossa mãe” – Eu calava-me, retendo as lágrimas, mas meu
irmão disse umas palavras em que desejava vê-la morrer na pátria e não em
terras distantes. Ao ouvi-lo, minha mãe repreendeu-o com o olhar, e aflita por
ter pensado em tais coisas; depois, olhando para mim, disse: “Vê o que ele diz”
– E depois para ambos: “Sepultem este corpo em qualquer lugar, e não se
preocupem mais com ele. Peço apenas que se lembrem de mim diante do altar do
Senhor, onde quer que estejam”. E tendo-nos exposto o seu pensamento com as
palavras que pôde, calou-se; a sua moléstia agravou-se e as suas dores
aumentaram.
Mas eu, ó Deus invisível,
meditando nos dons que infundes no coração dos teus fiéis, e nas admiráveis
colheitas que deles brotam, alegrava-me e dava-te graças. Lembrava-me do grande
cuidado que sempre demonstrara acerca da sua sepultura, adquirida e preparada
junto ao corpo do marido. Tendo vivido com ele na maior concórdia, assim também
queria – visão própria da alma humana incapaz das coisas divinas – ter a
felicidade de que os homens recordassem que, depois da sua viagem para
além-mar, lhe fora concedida a graça de a mesma terra cobrir o pó de ambos os
cônjuges.
Quando esta vaidade havia
deixado de existir no seu coração, pela plenitude da tua bondade, eu não o
sabia, mas alegrava-me com admiração ao ouvi-la falar assim. No entanto,
naquela conversa à janela quando me disse: “Que faço eu aqui?” – já estava patente
que não mais desejava morrer na pátria.
Soube também depois que em
Óstia, estando eu ausente, falou certo dia com alguns amigos meus, com maternal
confiança, sobre o desprezo desta vida e o benefício da morte. Eles,
maravilhados com a coragem dessa mulher – dádiva tua – perguntaram-lhe se não
temia deixar o corpo tão longe da pátria. “Nada está longe para Deus – disse
ela – nem preciso temer que ele ignore, no fim dos tempos, o lugar onde me
ressuscitará”.
Por fim, nove dias após
cair enferma, aos cinquenta e seis anos de idade e aos trinta e três da minha,
aquela alma santa e piedosa libertou-se do corpo.
(Revisão
de versão portuguesa por ama)