A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO XIII
CAPÍTULO XX
A carne dos santos, que agora repousa na esperança, será restabelecida numa condição
melhor do que foi a dos primeiros homens antes do pecado.
Por isso as almas dos santos defuntos não têm agora como pesada a morte que os
separou de seus corpos porque a sua carne repousa na esperança, quaisquer que tenham
sido os ultrajes recebidos quando já estavam sem sensibilidade. Não é devido ao
esquecimento, como pareceu a Platão, que elas desejam os seus corpos, mas é
antes porque se recordam da promessa feita por Aquele que a ninguém engana e que
até a integridade dos cabelos lhes garantiu que eles esperam ardente e
pacientemente a ressurreição dos corpos, nos quais sentiram tantas provas que não
voltarão mais a sentir. Se, de facto, elas não odiaram a sua carne ao refrearem-na
em nome dos direitos do espírito, quando na sua fraqueza ela se opunha ao
espírito, — quanto mais a amam elas ao pensarem que até ela será espiritual!
Assim como o espírito que serve a carne é, de certo modo, considerado «carnal»,
assim também será considerada «espiritual» a carne, não porque ela se venha a transformar
em espírito como alguns concluem do que está escrito:
Semeia-se um corpo animal,
ressuscitará um corpo espiritual. [i]
mas porque ela obedecerá ao espírito com total e maravilhosa facilidade ao
ponto de nisso encontrar a alegria definitiva dum a indissolúvel imortalidade:
já não experimentará a doença, nem a corruptibilidade, nem o entorpecimento.
O corpo não será já o que é agora quando goza de saúde, nem será mesmo o que
foi nos primeiros homens antes do pecado. Estes, embora não viessem a morrer se
não tivessem pecado, utilizavam-se, porém, de alimentos como homens que eram em
corpos não espirituais, mas ainda animais e terrestres. A vetustez não os
envelheceria até os levar fatalmente à morte (este estado de vida era-lhes maravilhosamente concedido pela graça de Deus, mediante a árvore da vida
que estava no meio do Paraíso junto com a árvore proibida). Tomava, porém,
outros alimentos com excepção daquela árvore que lhes tinha sido proibida, —
não porque isso fosse um mal, mas porque era preciso recomendar o bem da pura e
simples obediência que é a grande virtude da criatura racional submetida ao
Criador, seu Senhor. De facto, quando em nada de m au se tocava, com certeza
que se se tocasse no que era proibido, só a desobediência é que constituía
pecado.
Alimentavam-se, portanto, dos outros frutos que com iam para evitarem aos seus
«corpos animais» os sofrimentos da fome e da sede. Saboreavam os frutos das
árvores da vida para evitarem que a morte surgisse sorrateiramente, mesmo no termo
duma longa velhice. Era como se as outras servissem de alimento e esta de
sacramento; como se a árvore da vida representasse no Paraíso terrestre o que é
no espiritual, isto é, no paraíso inteligível da m ente, a Sabedoria de Deus da
qual está escrito:
Para quem a abraça é uma
árvore da vida.[ii]
CAPÍTULO XXI
O Paraíso onde estiveram os primeiros homens simboliza, sem dúvida,
realidades espirituais, contanto que se salvaguarde a verdade histórica acerca
do lugar corporal.
Alguns reduzem a um sentido espiritual tudo o que, com verdade, a Escritura
Sagrada conta do próprio Paraíso onde viveram os primeiros homens, pais do
género humano. Para eles essas árvores e plantas frutíferas convertem-se em
virtudes e hábitos de vida, como se nada de visível ou de corpóreo aí houvesse e tudo tenha sido dito ou escrito para
figurar realidades da mente. Com o se o Paraíso não pudesse ter sido corporal só
porque pode ser também entendido num sentido espiritual; como se não tivessem
existido duas mulheres — Agar e Sara — com dois filhos de Abraão, um nascido da
escrava e outro da mulher livre, só porque, segundo o Apóstolo, elas figuram os dois testamentos; ou então que da pedra percutida por Moisés nenhuma água
teria jorrado, só porque se pode ver nisso a figura de Cristo, conforme o mesmo
Apóstolo diz:
Mas a pedra era Cristo.[iii]
De facto, nada impede que se veja — no Paraíso: a vida dos bem-aventurados;
— nos seus quatro rios: as virtudes da prudência, da fortaleza, da temperança e da justiça;
— nas suas árvores: todas as ciências úteis;
— nos frutos dessas árvores: os
costumes dos homens piedosos;
— na árvore da vida: a própria sabedoria, mãe de todos os bens;
— na árvore da ciência do bem e do mal: a experiência do mandamento violado.
Realmente, a pena que Deus infligiu aos pecadores é, efectivamente, boa por ser
justa, mas não é para seu bem que o homem a experimenta.
Tudo isto se pode entender ainda melhor na Igreja, como outros tantos sinais
proféticos de acontecimentos futuros:
assim o Paraíso — seria a própria
Igreja, com o se lê no Cântico dos Cânticos;
os quatro rios do Paraíso — seriam os quatro Evangelhos;
as árvores frutíferas — os santos;
os frutos — as suas boas obras;
a árvore da vida — o Santo dos Santos, isto é, Cristo;
a árvore da ciência do bem e do mal — o livre arbítrio.
é que, realmente, o homem, depois de ter desprezado a vontade divina, não pode
fazer de si próprio mais do que um uso pernicioso, e aprende assim quão
diferentes são o apego ao bem com um e a complacência no bem próprio. Efectivamente,
amando-se a si próprio, a si próprio se entrega e, por isso, cheio de terror e
de tristeza, canta com o salmista, se está consciente dos seus males:
Voltando a si, a minha alma
perturba-se,[iv]
e já arrependido exclama:
Em ti depositei a minha fortaleza. [v]
Nada há que impeça estas e outras semelhantes interpretações espirituais do
Paraíso, se as houver, contanto que se creia fielmente na verdade histórica dos
factos apresentados pela narrativa.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)