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A Cidade Deus |
A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO X
CAPÍTULO II
Ao conhecimento de Deus nenhum homem
chega senão pelo Mediador entre Deus e os homens __ o homem Jesus Cristo.
É grandioso, mas muito raro, que alguém se eleve, por um esforço da mente,
acima de todas as criaturas corporais e incopóreas, depois deter observado e
reconhecido a mutalibilidade, para atingir a imutável substância de Deus e
aprender d’Ele mesmo que toda a criatura d’Ele distinta só a Ele tem por autor. De facto, Deus não fala ao homem por uma criatura corpórea — como se ferem os ouvidos do corpo fazendo
vibrar o ar entre aquele que fala e aquele que ouve;
também se não serve dessas imagens espirituais que tomam a forma e a semelhança
dos corpos — como se produz nos sonhos e tudo o que se lhes assemelha (nestes
casos Ele fala por assim dizer aos ouvidos do corpo como se falasse por
intermédio de um corpo, através do espaço corpóreo; realmente, muito se assemelham
aos corpos estas vistas imaginárias);
mas fala pela própria verdade se alguém está apto a ouvir pelo espírito e não
pelo corpo. Fala deste modo à parte mais excelente do homem, superior a todos
os elementos que constituem o homem e à qual só Deus é superior.
Compreende muito bem o homem ou, se não chega a compreendê-lo, pelo menos crê que foi feito à semelhança de Deus. Certamente
que está mais perto de Deus, do seu superior pela parte superior de si mesmo, feita para dominar as
partes inferiores que tem de comum com os animais. Mas como a própria parte
mental, sede natural da razão e da inteligência, está muito debilitada pelos
vícios inveterados que a obscurecem, necessitava, antes de tudo, de ser
purificada pela fé para aderir à luz imutável e dela gozar, ou mesmo para lhe
suportar o esplendor, até que, renovada e curada dia a dia, se tom e capaz duma
tão grande felicidade.
E para caminhar mais confiadamente nessa fé para a verdade — a própria verdade,
Deus Filho de Deus, assumindo o homem sem anular a Deus, fundou e estabeleceu
essa mesma fé para que o homem tivesse um caminho para o Deus do homem por
intermédio do homem-Deus. Este é que é, realmente, o Mediador entre Deus e os homens — o homem Jesus
Cristo: é Mediador por ser homem e como tal é caminho. Porque, se entre o que
caminha e o lugar para onde se caminha há no meio um caminho, há esperança de
lá chegar; se, porém, falta ou se desconhece por onde se deve seguir, que interessa que se saiba para onde se deve seguir? Só há, portanto, um caminho que exclui todo o
erro: que o próprio Deus e o homem sejam o mesmo — Deus para onde se vai, homem
por onde se vai.
CAPÍTULO III
Autoridade da Escritura canónica, obra do Espírito Santo.
Deus falou, primeiro, por intermédio dos profetas, depois, directamente, Ele
próprio, e finalmente, na medida em que o julgou suficiente, pelos Apóstolos.
Instituiu também a Escritura chamada canónica e investida da mais alta
autoridade. Nela acreditamos a respeito de tudo o que convém não ignorar e que somos incapazes de conhecer por nós próprios. É
certo que podemos saber — e disso somos nós próprios testemunhas — o que está
ao alcance dos nossos sentidos, interiores ou mesmo exteriores, (daí que
chamemos presente (praesentia) ao que se apresenta aos nosos sentidos (prae
sensibus), como dizemos que está diante (prae) dos nossos olhos um
objecto que aos olhos se apresenta). Todavia, para as coisas que não estão ao
alcance dos sentidos, porque as não podemos conhecer pelo nosso próprio
testemunho, procuram os outras testemunhas e depositamos nelas fé quando
julgamos que essas coisas não estão ou não estiveram afastadas dos seus
sentidos. Da mesma forma, portanto, que a respeito das coisas visíveis que não vemos, depositamos fé naqueles que as viram, como acreditamos nas outras coisas que dependem de cada um dos respectivos sentidos do corpo, — assim deve ser a respeito das
coisas que são percebidas pela alma e pelo espírito (porque se pode muito bem
falar de um sentido do espírito, donde vem o termo sententia (sentença —
pensamento). Quer dizer: para as coisas invisíveis que escapam ao nosso sentido
interior, devemos fiar-nos naqueles que as captaram tais quais elas se encontram na luz incorpórea ou
naqueles que as contemplam na sua permanência (manentia — existência
actual).
CAPÍTULO IV
Criação do Mundo: ela não é intemporal nem foi estabelecida segundo um plano
novo de Deus, com o se Deus tivesse querido depois o que antes não quisera.
De todos os seres visíveis o maior é o Mundo; de todos os invisíveis o maior é
Deus. Mas que o Mundo existe — vemo-lo nós; que Deus existe — cremo-lo. De que
Deus fez o M undo não temos mais segura garantia para o crer do que o próprio
Deus. Onde o ouvimos? Em parte alguma melhor, com certeza, do que nas Santas
Escrituras onde um seu profeta disse:
No princípio fez Deus o Céu e a Terra [i].
Então este profeta estava lá quando Deus criou o Céu e a Terra? Não. Mas esteve
lá a Sabedoria de Deus pela qual se fizeram todas as coisas, que se transmite
também às almas santas, faz delas os amigos e profetas de Deus, e, no seu
íntimo, silenciosamente, lhes conta as suas obras.
Também lhes falam os anjos de Deus que vêem sempre a face do Pai e anunciam a
sua vontade a quem é preciso. Era um deles o profeta que disse e escreveu:
No princípio fez Deus o Céu e a Terra.
é tal a autoridade que tem, como testemunho, para que creditemos em Deus, que,
pelo mesmo Espírito de Deus (que por revelação lhe deu a conhecer estas coisas)
predisse com tanta antecedência a nossa fé.
E porque é que ao Deus eterno aprouve criar, então, o Céu e a Terra que antes
não tinha criado? Se os que isto perguntam pretendem que o Mundo é eterno, sem
princípio e, portanto, parece que não foi feito por Deus, estão muito
afastados da verdade e deliram atingidos da enfermidade mortal de impiedade.
Porque, além das vozes proféticas, o próprio Mundo pelas suas mudanças e
revoluções tão bem ordenadas, com o pelo esplendor de todas as coisas visíveis,
proclama silenciosamente, a bem dizer, não só que foi feito, mas também que não
pôde ser feito senão por Deus inefável e invisivelmente grande, inefável e
invisivelmente belo
Outros há que confessam que o Mundo foi feito por Deus; todavia, não admitem
que ele tenha tido começo no tempo, mas sim começo na sua criação: de um a
maneira difícil de compreender, foi feito desde sempre. Julgam estes que, com
tal maneira de dizer, defendem Deus de certa temeridade fortuita, não se vá
crer que lhe veio de repente ao espírito a ideia, jamais antes concebida, de
fazer o Mundo, e que foi determinado por um a vontade nova — Ele até então
absolutamente imutável. Não vejo com o, em outras questões, poderão sustentar
esta opinião, sobretudo acerca da alma. Se pretendem que ela é coeterna com
Deus, torna-se-lhes impossível explicar donde lhe adveio um a infelicidade
nova, nunca antes por ela experimentada na eternidade. Se disserem que ela
sofreu sempre alternativas de infelicidade e de felicidade, terão, então, de
afirmar esta alternativa também para sempre — mas, então, seguir-se-ia o
absurdo de, nos momentos em que se diz feliz, mesmo neles não poder sê-lo, se prevê a sua infelicidade e
torpeza futura. E se não prevê, mas crê que será sempre feliz, e essa falsa
crença a tom a nesse caso feliz — nada se pode afirmar de mais insensato.
E, se se pensar que sempre, no decurso dos séculos infinitos, ela suportou
alternativas de infelicidade e de felicidade, mas que agora, finalmente
libertada, não voltará a cair na infelicidade, fica-se, pelo menos, obrigado a
admitir que ela nunca foi verdadeiramente feliz mas vai apenas começar a sê-lo
de um a felicidade nova que não engana. Confessar-se-á, então, que qualquer
coisa de novo lhe aconteceu, qualquer coisa de grande e de magnífico que ela
jamais antes conhecera durante a sua eternidade. Se negarem que D eus, por um
desígnio eterno, foi a causa desta novidade, terão também que negar que Ele é o
autor da felicidade — o que é um a abominável impiedade. Se disserem que o
próprio Deus, por um novo desígnio decidiu que a alma será doravante feliz para
sempre — com o é que o mostrarão então alheio à mutabilidade que nem mesmo eles
querem admitir? Mas, se se confessar que a alma foi criada no tempo e que em
nenhum momento do futuro ela perecerá, à maneira de um número que tem começo, mas não tem fim, de
maneira que, depois de ter experimentado um a vez a infelicidade e desta se
ter libertado, ela não voltará a conhecê-la, ninguém duvidará de que isso
acontecerá sem prejuízo para a imutabilidade dos desígnios de Deus. Creia-se,
pois, também que o Mundo pôde ser feito no tempo sem que, ao fazê-lo, Deus tenha mudado o seu desígnio e
a sua vontade eterna.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)