A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO XIV
CAPÍTULO XXVI
Devemos crer que a felicidade dos que viviam no Paraíso podia realizar o
dever de procriar sem a vergonha do desejo.
O homem vivia, portanto, no Paraíso como queria enquanto queria o que Deus ordenara.
Vivia gozando de Deus de cujo bem era feita a sua bondade. Vivia sem qualquer
privação, estando em seu poder viver sempre assim. Havia alimento para que não
passasse fome, havia bebida para que não passasse sede, havia a árvore da vida para
que a velhice o não dissolvesse. Nenhum a corrupção no corpo ou do corpo
procedente produzia doença alguma aos seus sentidos. Nenhuma doença interna,
nenhum acidente exterior havia a temer. Na carne a saúde plena, na alma a total
tranquilidade. No Paraíso, assim como não havia calor nem frio, assim também quem
lá morava estava livre de qualquer atentado que o desejo ou o medo causassem à
sua boa vontade. Nenhuma tristeza, nenhuma vã alegria havia lá. Perpetuava-se,
vinda de Deus, uma alegria verdadeira em que ardia
uma caridade nascida de um coração puro, duma consciência recta e
duma fé sincera [i].
Havia também uma sociedade sincera dos cônjuges entre si garantida pelo amor
honesto, a alma e o corpo levaram uma vida de mútua concórdia e o mandamento
era observado sem esforço. O tédio não molestava o ocioso nem contra vontade se
era molestado pelo sono.
Estamos muito longe de pensar que, em tão grande abundância de bens e com tal
felicidade dos homens, a prole se não podia gerar sem a morbidez libidinosa.
Pelo contrário: os membros genitais obedeceriam ao arbítrio da vontade tal com
o os demais, e o marido ter-se-ia introduzido nas entranhas da esposa sem o
aguilhão arrebatador da paixão libidinosa, na tranquilidade da alma e sem
corrupção alguma da integridade do corpo. Embora isto se não possa demonstrar
pela experiência, não é caso para se não crer, pois estas partes do corpo não
seriam excitadas por um alvorotado ardor, mas utilizadas, conforme as necessidades, por um poder que a si mesmo se domina (spontanea potestas). E
então poderia assim o sémen viril penetrar no útero da esposa mantendo-se a
integridade do órgão genital feminino, — tal como presentemente o fluxo do
sangue menstrual pode sair do útero de uma virgem sem prejuízo para a sua
integridade. De facto, é pela mesma via que um se introduz e o outro sai. No
parto as entranhas da mulher dilatar-se-iam, não com os gemidos da dor, mas com
o impulso da maturidade. Do mesmo modo para fecundar e para conceber não seria
o apetite libidinoso, mas o uso voluntário que uniria as duas naturezas.
Falamos de assuntos que agora causam vergonha e por isso, embora procurem os
conceber o que poderiam ter sido antes de causarem vergonha, todavia, é mais
conveniente que esta nossa exposição se refreie pelo pudor que nos retrai do
que seja ajudada pela nossa débil eloquência. Nem mesmo os que poderiam experimentá-lo,
experimentaram o que estou a dizer (porque, tendo-se antecipado o pecado,
mereceram o exílio do Paraíso antes de se unirem em tranquilo alvedrio na obra
da propagação). Como é que, então, um
tal assunto poderia sugerir aos nossos sentidos humanos outra coisa que não
seja o exercício dum a turbulenta paixão em vez do exercício de uma tranquila
vontade? Daí que o pudor impeça quem fala, embora não faltem argumentos a quem
pensa.
Porém, a Deus omnipotente — Criador supremo e supremamente bom de todas as
naturezas, que ajuda a recompensar as boas vontades, que abandona e condena as más
vontades, que ordena umas e outras — não faltou plano para tirar eleitos mesmo
do género humano condenado, para preencher o número, fixado na sua sabedoria, dos
cidadãos da sua cidade. Distingue-os dos outros pela sua graça e não pelos seus
méritos — já que toda a massa estava condenada na sua raiz corrompida — mostrando
não só aos libertados de si próprios, mas também aos não libertados, que graças
lhes dispensava. Bem sabe cada um que não é por seus méritos, mas por gratuita
bondade que é arrancado ao mal quando se vê desembaraçado da sociedade dos homens de cujo justo
castigo deveria partilhar. Porque é que não haveria Deus de criar aqueles que
previu viriam a pecar, se, na verdade, neles e por eles podia mostrar
não só o que é que merecia a sua culpa,
mas também o que é que lhes concederia a sua graça
e, ainda que, sob tal criador e
ordenador, a perversa desordem dos delinquentes não seria capaz de perturbar a recta
ordem das coisas?
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)