DENTRO DO EVANGELHO
(Re Lc X)
O
Estalajadeiro.
Talvez possa parecer estranho ter
escolhido este “papel” que, obviamente, parece não ser “central” na parábola.
Mas, eu, que nada sei nem de parábolas nem de personagens, muito menos me sinto
capaz de lhes atribuir mérito ou demérito, o grau de importância que possam
ter, apaixono-me por este.
Imagino-me à porta do meu
estabelecimento onde recebo hóspedes, normalmente viajantes que percorrem os
caminhos poeirentos e agrestes da Palestina e que procuram um lugar onde tomar
uma refeição, descansar um pouco ou passar a noite com um mínimo de conforto.
Estando ali, no meu posto de trabalho,
deparo-me com uma cena estranha: Um homem que se aproxima a pé, conduzindo a
sua cavalgadura pela arreata e, mal se mantendo direito em cima desta, um outro
homem com os vestidos em farrapos, cheio de feridas vendadas com panos
embebidos em azeite e vinho num estado lastimoso.
Apresso-me a ir ao seu encontro e tenho
logo uma primeira reacção de enorme dúvida: quem conduz o ferido é um
Samaritano!
O que faz um Samaritano dirigir-se ao
meu estabelecimento?
Sim, eu, que sou judeu, não “morro de
amores” pelos samaritanos que, aliás, me pagam na mesma moeda.
Um antagonismo ancestral – que ninguém
sabe exactamente quando começou e porquê – divide os filhos de Israel:
Samaritanos e Judeus.
Mas, surpreendentemente, o Samaritano
aproxima-se de mim e diz-me: ‘Encontrei este teu irmão estendido na vera do
caminho porque «caiu nas mãos dos ladrões, que o despojaram, o espancaram e retiraram-se,
deixando-o meio morto». Tentei prestar-lhe o auxílio possível ligando-lhe «as feridas, deitando nelas azeite e vinho»,
mas não podia deixá-lo ali naquele estado por isso pu-lo sobre o meu jumento e
trouxe-o até esta estalagem para melhor cuidar dele. Ajuda-me a levá-lo para
dentro e encontra uma acomodação confortável onde o possamos fazer’.
Fiquei atónito, sem palavras e levei
algum tempo a reagir, mas, como que por encanto desvaneceram-se as minhas
dúvidas e pruridos e ajudei a transportar o ferido para a melhor habitação de
que dispunha.
Deitámos o homem numa cama, despimos-lhe
os farrapos, arranjei uma túnica lavada que lhe vestimos e, enquanto o
Samaritano observava de novo as feridas renovando as ligaduras e unguentos fui
à cozinha buscar um caldo de sopa que a custo conseguiu engolir. Tendo caído
num sono profundo, deixámo-lo a descansar e retiramo-nos; o samaritano para uma
acomodação na parte superior da casa, eu para o meu posto à entrada da
estalagem.
A noite ia adiantada e como não era de
prever aparecessem novos hóspedes, também fui deitar-me. Mas não conseguia
conciliar o sono pensando em tudo quanto acontecera e algo apreensivo quanto ao
dia seguinte.
Logo pela manhã o samaritano preparou-se
para seguir viagem, mas, antes que eu pudesse perguntar o que fosse, abriu a
sua bolsa, «tirou dois denários, e
deu-mos dizendo: Cuida dele; quanto gastares a mais, eu to pagarei quando
voltar».
Ainda hoje, passado tanto tempo, me
admiro com a minha reacção! Nem por um momento me ocorreu que o Samaritano não
faria exactamente como me disse e que não ficaria por receber o que viesse a
gastar com o pobre coitado agora a meu cargo.
Sim, eu que sou judeu e tenho um
negócio, não posso dar-me ao luxo de receber hóspedes sem ter a certeza que
serei ressarcido das despesas de estadia tanto mais que estas seriam bastante
fora do “normal”: os tratamentos, ligaduras, unguentos e outros cuidados que
seriam necessários. Volto a repetir: Ainda hoje, passado tanto tempo, me admiro
com a minha atitude!
Pela noitinha, o doente estava
visivelmente melhor e começou por perguntar-me como tinha ido ali parar, o que
acontecera…
Contei-lhe tudo, claro, e o seu espanto
foi tão grande como tinha sido o meu no dia anterior quando o estranho
“cortejo” aparecera à minha porta.
Não se lembrava de nada, tão súbita e
violenta tinha sido a acção dos salteadores, nem sequer quanto tempo estivera
prostrado por terra. Mas achava estranho que ninguém o tivesse visto naquela
situação, já que o caminho onde tudo acontecera era muito concorrido.
Eu também – pensando melhor – achei
estranho, mas como estou habituado à indiferença das pessoas perante as
necessidades dos outros não me custava acreditar que alguns o terão visto e ao
dar-se conta da situação tivessem optado por seguir adiante livrando-se de
“trabalhos” e incómodos. De facto, há tanta gente que vai pelos caminhos da
vida tão cheios de si próprios, absorvidos com os seus assuntos que olhando não
vêm e, se acaso vêm, ficam indiferentes ao que, pensam, não lhes diz respeito.
Tomei uma decisão: A partir de agora a
porta da minha estalagem estará sempre aberta a quem tiver necessidade de
entrar, não a fecharei a ninguém por motivos de raça, cor da pele ou religião e
independentemente de possuírem meios ou recursos para cobrir as despesas que
porventura façam.
Esta decisão consola-me muito porque
penso que, um dia, pode acontecer-me o mesmo que ao pobre homem assaltado e
espancado pelos salteadores e, então precisarei de alguém – um Samaritano…
talvez – que se condoa de mim e me preste assistência.