A
CIDADE DE DEUS
Vol. 1
LIVRO
V
CAPÍTULO
XIII
O amor da glória, embora
seja um vício, é considerado como unia virtude porque impede vícios maiores.
Os
impérios do Oriente brilharam durante muito tempo. Por isso quis Deus que
houvesse um no Ocidente que, embora posterior no tempo, fosse ainda mais
brilhante pela extensão e poderio. Foi uma concessão que Deus fez a tais homens
para reprimirem graves males de muitos povos, a eles que, por causa da honra,
do louvor e da glória se votaram ao serviço da pátria, nela procuraram esta
mesma glória e não hesitaram em antepor a salvação, abafando a cupidez do
dinheiro e muitos outros vícios a esse vício único, isto é, do amor da glória.
Vê
com justeza quem reconhece que o amor do louvor é um vício, o que não escapa ao
poeta Horácio, que diz:
Inchas
com o amor do louvor? Há ritos expiatórios capazes de te aliviarem, infalíveis
remédios num livrito: se o leres três vezes com atenção, sentir-te-ás aliviado [i].
E
o mesmo, num dos seus poemas líricos, para reprimir a paixão de domínio, canta
assim:
Mais
vasto será o teu império se dominares o teu espírito ambicioso, do que se
reunires a Líbia aos longínquos povos de Cádis e se os dois púnicos se te
renderem [ii].
Certamente,
porém, que aqueles que não refreiam as suas torpes paixões invocando o Espírito
Santo com piedosa fé e enamorando-se da beleza inteligível, pelo menos
tornam-se melhores pelo desejo de glória e de louvor humano. Não é que se
tornem santos, mas menos torpes.
O
próprio Túlio nos livros que escreveu acerca da República, onde fala da
formação do chefe do Estado, não pôde deixar de dizer que é preciso alimentá-lo
de glória e, consequentemente, recordar-lhe como é que os seus antepassados
realizaram tantas proezas admiráveis e gloriosas pela paixão de glória.
Não
resistiam a tal vício, mas até achavam que deviam excitá-lo e inflamá-lo,
julgando-o útil à República. Nem mesmo nas suas obras de filosofia Túlio se
afasta desta peste e presta-lhe um testemunho mais claro que a própria luz. Ao
falar dos estudos que é preciso prosseguir sobretudo na mira do verdadeiro bem
e não dum vão louvor humano, proferiu esta máxima geral e universal:
E a
honra que alimenta as artes; é a glória que inflama os homens para o estudo; e
jazem sempre por terra as coisas que no ânimo de cada um se encontram
desprestigiadas [iii].
CAPÍTULO
XIV
É preciso reprimir o amor do
louvor humano porque toda a glória dos justos está em Deus.
Sem
dúvida que é melhor resistir do que ceder a esta paixão. Realmente, cada um é
tanto mais semelhante a Deus quanto mais puro está desta imundície. Embora
durante esta vida ela não possa ser arrancada do fundo do coração, porque não
cessa de tentar mesmo as almas em bom progresso — seja pelo menos a paixão da
glória superada pelo amor da justiça, de maneira que, se em alguma parte «jazem
por terra as coisas que no ân:’mo de cada um se encontram desprestigiadas», —
se essas coisas são boas, se são justas, o próprio amor da glória se cubra de
vergonha e ceda ao amor da verdade! Chega a ser tão contrário à fé religiosa
este vício, quando a paixão da glória é no coração maior que o temor e o amor
de Deus, que o Senhor diria:
Como
podereis crer, vós que esperais a glória uns dos outros e não procurais a
glória que só de Deus vem? [iv].
Da
mesma forma, a propósito de certos que n’Ele tinham acreditado, mas tinham medo
de o confessar publicamente, diz o Evangelista:
Amaram
a glória dos homens mais que a de Deus [v].
Não
foi isto que fizeram os santos apóstolos. Estes pregaram o nome de Cristo nos
lugares onde não somente eram desprestigiados, conforme aquele que disse:
E
jazem sempre por terra as coisas que no ânimo de cada um se encontram
desprestigiadas [vi],
mas
onde até eram objecto de profunda aversão;
—
retiveram estas palavras que ouviram ao bom Mestre que também é médico das
almas:
Se
alguém me negar perante os homens, também eu o negarei perante meu Pai que está
nos Céus e perante os anjos de Deus [vii];
—
entre as maldições e os opróbrios, entre as mais duras perseguições e os mais
cruéis suplícios, todo este enorme bramido da perseguição humana não foi capaz
de os desviar da pregação da salvação dos homens.
Realizaram
obras divinas; proferiram palavras divinas; viveram uma vida divina; de certa
maneira destruíram corações endurecidos; introduziram no mundo a paz da
justiça; conseguiram para a Igreja uma ingente glória — e nem por isso
descansaram nela como um fim alcançado da sua própria virtude, mas referiram-na
sempre à glória de Deus por cuja graça eram o que eram. E com este mesmo fogo
procuravam inflamar os que guiavam no amor d’Aquele que os havia de tornar a
Ele semelhantes.
Para
que não fossem bons por razões de glória humana, deu-lhes seu Mestre este
ensinamento:
Tende
cuidado em não praticar a vossa justiça perante os homens para por eles serdes
vistos: senão, não tereis recompensa junto do vosso Pai que está nos Céus [viii].
Mas
para que, compreendendo mal estas palavras, eles não receassem agradar aos
homens e se não tornassem menos úteis escondendo-se, mostrou-lhes até que ponto
deviam mostrar que eram bons, dizendo:
Brilhem as vossas obras
diante dos homens, para que vejam as vossas boas acções e glorifiquem vosso Pai
que está nos Céus [ix].
Não
diz «para que sejais vistos por eles», isto é, com a intenção de os verdes
voltarem-se para vós, porque vós por vós próprios nada sois, mas diz:
Para
que glorifiquem vosso Pai que está nos Céus [x],
e, voltados para Ele, se tornem como vós sois.
A
estes (aos apóstolos) seguiram-se os mártires que ultrapassaram pela sua
inúmera multidão, os Cévolas, os Cúrcios, os Décios, não por se infligirem a si
mesmos torturas mas por suportarem com verdadeira fortaleza e com verdadeira
piedade religiosa, as que lhes infligiam.
Mas
porque eram cidadãos da Cidade Terrena, e tinham proposto, como fim de todas as
suas obrigações, mantê-la a salvo e vê-la reinar não no céu, mas na terra, não
na vida eterna, mas no lugar de partida dos que morrem e no lugar de chegada
dos que hão-de morrer — que outra coisa poderiam amar senão a glória pela qual
pretendiam viver, mesmo depois da morte, na boca dos que os louvam?
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i] Horácio,
Epist., I, 1, 36-37.
[ii] Horácio,
Odes, II, 2, 9-12.
[iii] Cícero.
Tuscul., I. 2, 4.
[vi] Cícero,
Tuscul., I, 4.
[vii] Mat.,
X , 33; Luc., XII, 9.