Cartas
de São Paulo
Gálatas
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Caridade fraterna –
1 Irmãos, se porventura um homem for apanhado
nalguma falta, vós, que sois espirituais, corrigi essa pessoa com espírito de
mansidão; e tu olha para ti próprio, não estejas também tu a ser tentado. 2 Carregai
as cargas uns dos outros e assim cumprireis plenamente a lei de Cristo. 3 É
que, se alguém julga ser alguma coisa, nada sendo, engana-se a si mesmo. 4 Mas
examine cada um a sua própria acção, e então o motivo de glória que encontrar,
tê-lo-á em relação a si próprio e não em relação ao outro. 5 Pois cada um terá
de carregar o próprio fardo. 6 Mas quem está a ser instruído na Palavra esteja
em comunhão com aquele que o instrui, em todos os bens. 7 Não vos enganeis: de
Deus não se zomba. Pois o que um homem semear, também o há-de colher: 8 quem
semear na própria carne, da carne colherá a corrupção; quem semear no Espírito,
do Espírito colherá a vida eterna. 9 E não nos cansemos de fazer o bem; porque,
a seu tempo colheremos, se não tivermos esmorecido. 10 Portanto, enquanto temos
tempo, pratiquemos o bem para com todos, mas principalmente para com os irmãos
na fé.
CONCLUSÃO
11 Vede com que grandes letras vos escrevo
pela minha mão! 12 Todos quantos querem fazer boa figura, são esses que vos
forçam a circuncidar-vos, só para não serem perseguidos por causa da cruz de
Cristo. 13 Pois nem mesmo aqueles que se circuncidam observam a Lei; mas o que
querem é que vos circuncideis, para se poderem gloriar na vossa carne. 14 Quanto
a mim, porém, de nada me quero gloriar, a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus
Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo. 15 Pois
nem a circuncisão vale alguma coisa nem a incircuncisão, mas sim uma nova
criação. 16 Paz e misericórdia para todos quantos seguirem esta regra, bem como
para o Israel de Deus. 17 De agora em diante ninguém mais me venha perturbar;
pois eu levo no meu corpo as marcas de Jesus. 18 A graça de Nosso Senhor Jesus
Cristo esteja com o vosso Espírito, irmãos! Ámen.
Amigos
de Deus
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Tomemos outros exemplos, também da vida
corrente. S. Paulo menciona-os: todos os que combatem na arena de tudo se
abstêm, para alcançar uma coroa corruptível; nós, porém esperamos uma incorruptível.
Basta deitar um olhar à nossa volta. Reparai a quantos sacrifícios se submetem
de boa ou má vontade, eles e elas, para cuidar do corpo, para defender a saúde,
para conseguir a estima alheia... Não seremos nós capazes de nos comover
perante esse imenso amor de Deus, tão mal correspondido pela humanidade,
mortificando o que tiver de ser mortificado, para que a nossa mente e o nosso
coração vivam mais pendentes do Senhor?
Alterou-se de tal forma o sentido
cristão em muitas consciências que, ao falar de mortificação e de penitência,
se pensa apenas nesses grandes jejuns e cilícios que se mencionam nos
admiráveis relatos de algumas biografias de santos. Ao iniciar esta meditação,
aceitámos a premissa evidente de que temos de imitar Jesus Cristo, como modelo
de conduta. É certo que Ele preparou o começo da sua pregação retirando-se para
o deserto, a fim de jejuar durante quarenta dias e quarenta noites, mas antes e
depois praticou a virtude da temperança com tanta naturalidade, que os seus
inimigos aproveitaram para rotulá-lo caluniosamente de «glutão e bebedor de
vinho, amigo dos publicanos e dos pecadores.»
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Interessa-me que descubrais em toda a
sua profundidade esta simplicidade do Mestre, que não faz alarde da sua vida
penitente, porque isso mesmo te pede Ele a ti: quando jejuais, não vos
mostreis tristes como os hipócritas, que desfiguram os seus rostos para mostrar
aos homens que jejuam. Na verdade vos digo que já receberam a sua recompensa.
Mas tu, quando jejuas, unge a tua cabeça e lava o teu rosto, a fim de que não
pareça aos homens que jejuas, mas a teu Pai, que está presente ao que há de
mais secreto, e teu Pai, que vê no secreto, te dará a recompensa.
Assim te deves exercitar no espírito de
penitência: na presença de Deus e como um filho, como o pequenito que demonstra
a seu pai quanto o ama, renunciando aos seus poucos tesouros de escasso valor -
um carro de linhas, um soldado sem cabeça, uma carica; custa-lhe dar esse
passo, mas no fim o carinho pode mais e estende satisfeito a mão.
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Permiti-me que vos repita uma e outra
vez o caminho que Deus espera que cada um percorra, quando nos chama para o
servir no meio do mundo, para santificar e nos santificarmos através das
ocupações normais. Com um sentido comum colossal, ao mesmo tempo cheio de fé,
pregava S. Paulo que na lei de Moisés está escrito: não atarás a boca ao boi
que debulha o grão.
E pergunta-se: Porventura
preocupar-se-á Deus com os bois? Ou, pelo contrário, dirá isto sobretudo por
nós? Sim, com certeza que se escreveram estas coisas por nós; porque a
esperança faz lavrar o que lavra, e o que debulha fá-lo com esperança de
participar dos frutos.
Nunca se reduziu a vida cristã a uma
trama angustiante de obrigações, que deixa a alma submetida a uma desesperada
tensão; a vida cristã adapta-se às circunstâncias individuais como a luva à mão
e pede que no exercício das nossas tarefas habituais, nas grandes e nas
pequenas, na oração e na mortificação, não percamos nunca o ponto de vista
sobrenatural. Pensai que Deus ama apaixonadamente as suas criaturas, e como
trabalhará o burro se não se lhe dá de comer nem dispõe de tempo para restaurar
as forças ou se se quebranta o seu vigor com excessivas pauladas? O teu corpo é
como um burrico - um burrico foi o trono de Deus em Jerusalém - que te carrega
pelos caminhos divinos da terra: é necessário dominá-lo para que não se afaste
dos caminhos de Deus e animá-lo para que o seu trote seja o mais alegre e
brioso que se pode esperar de um jumento.
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Espírito de penitência
Procuras tomar já a tua resolução de
propósitos sinceros? Pede ao Senhor que te ajude a sacrificares-te pelo seu
amor; a pôr em tudo, com naturalidade, o aroma purificador da mortificação; a
gastares-te ao seu serviço, sem espectáculo, silenciosamente, como se consome a
lamparina que tremeluz junto do Tabernáculo. E se agora não te ocorre como
responder concretamente aos apelos divinos que se fazem ouvir no teu coração,
ouve-me bem.
Penitência é o cumprimento exacto do
horário que te fixaste, mesmo que o corpo resista ou a mente pretenda evadir-se
com sonhos quiméricos. Penitência é levantares-te pontualmente. E também, não
deixar para mais tarde, sem motivo justificado, essa tarefa que te é mais
difícil ou custosa.
A penitência está em saber compaginar as
tuas obrigações relativas a Deus, aos outros e a ti próprio, exigindo-te, de
modo que consigas encontrar o tempo necessário para cada coisa. És penitente
quando te submetes amorosamente ao teu plano de oração, apesar de estares
cansado, sem vontade ou frio.
Penitência é tratar sempre os outros com
a maior caridade, começando pelos teus. É atender com a maior delicadeza os que
sofrem, os doentes e os que padecem. É responder com paciência aos maçadores e
inoportunos. É interromper ou modificar os nossos programas, quando as
circunstâncias - sobretudo os interesses bons e justos dos outros - assim o
requerem.
A penitência consiste em suportar com
bom humor as mil pequenas contrariedades do dia; em não abandonar o trabalho,
mesmo que no momento te tenha passado o entusiasmo com que o começaste; em
comer com agradecimento o que nos servem, sem caprichos importunos.
Penitência, para os pais e, em geral,
para os que têm uma missão de dirigir ou de educar é corrigir quando é
necessário fazê-lo, de acordo com a natureza do erro e com as condições de quem
necessita dessa ajuda, superando subjectivismos néscios e sentimentais.
O espírito de penitência leva a não nos
apegarmos desordenadamente a esse esboço monumental dos projectos futuros, no
qual já previmos quais serão os nossos traços e pinceladas mestras. Que alegria
damos a Deus quando sabemos renunciar aos nossos gatafunhos e pinceladas, e
permitimos que seja Ele a acrescentar os traços e cores que mais lhe agradam!
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Poderia continuar a assinalar-te uma
quantidade de pormenores - citei-te apenas os que agora me vieram à cabeça -
que podes aproveitar ao longo do dia, para te aproximares mais de Deus e mais
do teu próximo. Se te mencionei esses exemplos, insisto, não é porque despreze
as grandes penitências; pelo contrário, mostram-se santas e boas, e até
necessárias, quando o Senhor chama por esse caminho, contando sempre com a
aprovação de quem dirige a tua alma. Mas advirto-te que as grandes penitências
são compatíveis também com as quedas espalhafatosas, provocadas pela soberba.
Em contrapartida, com esse desejo contínuo de agradar a Deus nas pequenas
batalhas pessoais - como sorrir quando não se tem vontade: asseguro-vos, aliás,
que em certas ocasiões torna-se mais custoso um sorriso do que uma hora de
cilício - é difícil alimentar o orgulho, a ridícula ingenuidade de nos
considerarmos heróis notáveis: ver-nos-emos como uma criança que apenas
consegue oferecer ninharias ao seu pai, que as recebe, no entanto, com imensa
alegria.
Então, um cristão há-de ser sempre
mortificado? Sim, mas por amor. Porque este tesouro da nossa vocação levamo-lo
em vasos de barro, para que se veja bem que esse extraordinário poder vem de
Deus e não de nós. Em tudo sofremos tribulação, mas não somos oprimidos; somos
cercados de dificuldades, mas não desesperamos; somos perseguidos, mas não
desamparados; somos abatidos, mas não perecemos, trazendo sempre em nosso corpo
os traços da morte de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste nos
nossos corpos.