LEGENDA MAIOR
Vida de São Francisco de Assis
SEGUNDA PARTE
CAPITULO 9
8. Tomou, pois, consigo um
companheiro chamado Iluminado, homem de inteligência e coragem. E havendo
começado a caminhar, saíram-lhes ao encontro duas mansas ovelhinhas, à vista
das quais, cheio de alegria, disse a seu companheiro: “Confiemos no Senhor,
irmão, porque em nós se realizam hoje as palavras do Evangelho: ‘Eis que vos
envio como ovelhas entre lobos”’ (Mt 10,16). E tendo-se adiantado,
encontraram as sentinelas sarracenas que, quais lobos vorazes contra ovelhas,
capturaram os servos de Deus e, ameaçando-os de morte, maltrataram-nos com
crueldade e desprezo, os cobriram de injúrias e violências e os algemaram. Por
fim, depois, de havê-los afligido e atormentado de mil maneiras, a divina Providência
fez com que os levassem à presença do Sultão, realizando-se desse modo as
fervorosas aspirações de Francisco.
Colocados em sua presença,
perguntou-lhes aquele bárbaro príncipe quem os havia enviado, a que vinham e
como tinham conseguido chegar a seu acampamento. Ao que respondeu o servo de
Deus com intrepidez que sua missão não procedia de nenhum homem, mas de Deus
altíssimo que o enviava para ensinar a ele e a todo o seu povo os caminhos da
salvação e para pregar-lhes as verdades de vida contidas no Evangelho. Com
tanta constância e clareza em sua mente, com tanta virtude na expressão e com
tão inflamado zelo pregou ao Sultão a existência de um só Deus em três pessoas
e a de um Jesus Cristo, Salvador de todos os homens, que claramente se viu
realizar-se em Francisco as palavras do Evangelho: “Porei em vossos lábios
palavras tão cheias de sabedoria, que a elas não poderá resistir nenhum de
vossos adversários” (Lc 21,15). Admirado o Sultão ao ver o espírito
e o fervor do seráfico Pai, não apenas o ouvia com grande satisfação, mas até
insistiu com repetidas súplicas que permanecesse algum tempo com ele. Mas o
servo de Deus, iluminado pela força do alto, logo lhe respondeu dizendo: “Se me
prometeres que tu e os teus vos convertereis a Cristo, permanecerei de muito
bom grado entre vós. Mas se duvidas em abandonar a lei impura de Maomé pela fé
santíssima de Cristo, ordena imediatamente que se faça uma grande fogueira e
teus sacerdotes e eu nos lançaremos ao fogo, a ver se deste modo compreendes a
necessidade de abraçar a fé sagrada que te anuncio”. A essa proposta, replicou
sem demora o Sultão: “Não creio que haja entre meus sacerdotes um só que, para
defender sua doutrina, se atreva a lançar-se ao fogo nem esteja disposto a
sofrer o menor tormento”. E sobrava-lhe razão para dizer isso, pois vira que um
dos seus falsos sacerdotes, ancião e protervo sequaz de sua lei, desaparecera,
mal ouviu as primeiras palavras do santo. Este acrescentou, dirigindo-se ao
Sultão: “Se em teu nome e em nome de teu povo me prometes abraçar a religião de
Cristo, com a condição que eu saia ileso da fogueira, estou disposto a entrar
eu sozinho nela. Se o fogo me consumir entre as suas chamas, atribua-se isso aos
meus pecados; mas se, como espero, a virtude divina me conservar ileso,
reconhecereis a ‘Cristo, virtude e sabedoria de Deus’ (cf. 1Cor 1,24)
e único Salvador de todos os homens”. A essa proposta respondeu o Sultão que
não podia aceitar esse contrato aleatório, pois temia uma sublevação popular.
Mas ofereceu-lhe numerosos e ricos presentes que o homem de Deus desprezou como
lama. Não era das riquezas do mundo que ele estava ávido, mas da salvação das
almas. O Sultão ficou ainda mais admirado ao verificar um desprezo tão grande
pelos bens deste mundo. Não obstante a sua recusa ou talvez o seu receio de
passar à fé cristã, rogou ao servo de Deus que levasse todos aqueles presentes
e os distribuísse aos cristãos pobres e às igrejas. Mas o santo que tinha horror
de carregar dinheiro e não via na alma do Sultão raízes profundas da fé
verdadeira, recusou-se terminantemente a aceitar a sua oferta.
9. Vendo frustradas as suas
ânsias de martírio e conhecendo que nada adiantava o seu empenho na conversão
daquele povo, resolveu Francisco, por inspiração divina, voltar aos países
cristãos. E assim, por disposição da bondade divina e pelos méritos e virtude
do santo, sucedeu que o amigo de Cristo procurou com todas as suas energias
morrer por ele, mas não conseguiu. Desse modo não perderia o mérito do desejado
martírio e ainda gozaria de vida para ser mais adiante assinalado com um
singular privilégio. Aconteceu assim para que aquele fogo primeiro ardesse no
seu coração e mais tarde se manifestasse na sua carne. Ó varão verdadeiramente
ditoso, cuja carne, embora não tenha sucumbido sob o ferro do tirano, teve,
contudo, tão perfeita semelhança com o Cordeiro morto por nosso amor! Ó varão
mil vezes feliz, cuja alma, “embora não haja sucumbido debaixo da espada do
carrasco, nem por isso deixou de alcançar a palma do martírio!” (cf.
Breviário, Ofício de S. Martinho de Tours, ant. das Vésperas).
CAPITULO 10
Zelo
na oração e poder de sua prece
1. Francisco, servo de
Cristo, tinha perfeita consciência que seu corpo (inacessível a qualquer paixão
terrena em virtude de seu amor a Cristo) o forçava a caminhar como peregrino
longe do Senhor (cf. 2Cor 5,6-8). Empenhava-se portanto por manter
sempre ao menos seu espírito na presença do Senhor por uma oração ininterrupta,
para não ficar sem o conforto do Bem-Amado. Pois para ele era um consolo na
meditação orar e percorrer as mansões celestiais, já como cidadão dos anjos, para
procurar aí, com todo o ardor de seu desejo, seu Bem-Amado do qual o separava
unicamente a barreira da própria carne. A oração era também uma defesa ao se
entregar à acção, pois persistindo nela, fugia de confiar em suas próprias capacidades,
punha toda a sua confiança na bondade divina, lançando no Senhor os seus cuidados.
Sobre todas as coisas, dizia, deve o irmão desejar a graça da oração e incitava
os seus irmãos por todas as maneiras possíveis a praticá-la zelosamente,
convencido de que ninguém progride no serviço de Deus sem ela. Quer andasse ou
parasse, viajando ou residindo no convento, trabalhando ou repousando,
entregava-se à oração, de modo que parecia ter consagrado a ela todo seu
coração e todo seu corpo, toda sua actividade e todo seu tempo.
2. Compenetrado dessas
verdades, jamais desprezava por negligência qualquer visita do Espírito; mas ao
contrário, sempre que elas se apresentavam, seguia-as cuidadosamente e,
enquanto duravam, procurava gozar da doçura que lhe comunicavam. Por isso, se
estivesse caminhando e sentisse alguns movimentos do Espírito divino, parava um
momento, deixando passar os companheiros, para gozar mais intensamente da nova
inspiração e não receber em vão a graça celeste (cf. 2Cor 6,1). A sua
contemplação o levava muitas vezes a tão alto nível que, arrebatado e fora de
si, sentia o que um homem não pode sentir e ficava alheio ao que se passava à
sua volta. Aconteceu em certa ocasião que ao passar por Borgo San Sepolcro, de
população numerosa, ia montado num jumentinho por causa de sua enfermidade, e
as multidões saíram ao seu encontro, atraídas a ele pela fama das suas
virtudes. Detido por essas turbas, que o rodeavam e comprimiam de todos os lados,
a tudo parecia insensível e como se o seu corpo já estivesse inanimado. Bem
mais tarde, passados já o burgo e os atropelos das multidões, pararam num albergue
de leprosos. E ele, como se voltasse de algum rapto de espírito, perguntava com
solicitude se chegariam logo ao dito burgo. Porque a sua mente ocupada na
contemplação das coisas celestes não se havia apercebido nem da variedade dos
lugares e dos tempos, nem da multidão de pessoas que haviam saído ao seu
encontro.
E sabe-se pelo testemunho
dos seus companheiros que isso acontecia com não pouca frequência.
3. Francisco havia
percebido na, oração a presença do Espírito Santo, tanto mais propenso a
derramar-se sobre os que o invocam quanto mais apartados os encontra do
estrépito das coisas mundanas, Por isso, procurava lugares solitários, e durante
a noite retirava-se aos bosques e igrejas abandonadas para, se entregar à
oração, E aí na solidão, sustentou frequentes lutas com os demónios, os quais,
atacando-o de modo palpável, procuravam apartá-lo do exercício da oração.
Mas ele, fortalecido com o
auxílio do céu, quanto mais violentos os ataques do inimigo, tanto mais sólido
parecia na virtude e mais fervoroso na oração, dizendo cheio de confiança a
Cristo as palavras do salmista: “Defendei-me, Senhor, sob a sombra de vossas
asas, da presença daqueles que me encheram de aflição” (Sl 16,8). E
dirigindo-se depois aos demónios, dizia-lhes: “Espíritos malignos e perversos,
atormentai-me quanto puderdes, pois nunca podereis mais do que aquilo que vos
concede a mão do Senhor. De minha parte estou disposto a sofrer com sumo gozo
quanto queira ele consentir-vos”. E não podendo os demónios suportar tão
admirável constância, fugiam cobertos de confusão.
São Boaventura
(cont)
(Revisão da versão
portuguesa por AMA)