Quaresma
Semana I
Evangelho:
Lc 11, 29-32
29 Concorrendo as
multidões, começou a dizer: «Esta geração é uma geração perversa; pede um
sinal, mas não lhe será dado outro sinal, senão o sinal do profeta Jonas. 30
Porque, assim como Jonas foi sinal para os ninivitas, assim o Filho do Homem
será um sinal para esta geração. 31 A rainha do meio-dia
levantar-se-á no dia do juízo contra os homens desta geração, e condená-los-á,
porque veio dos confins da terra para ouvir a sabedoria de Salomão; e aqui está
Quem é mais do que Salomão. 32 Os ninivitas levantar-se-ão no dia do
juízo contra esta geração, e condená-la-ão, porque fizeram penitência com a pregação
de Jonas; e aqui está Quem é mais do que Jonas!
Comentário:
Há
que estar atento!
Durante
toda a nossa vida o Espírito Santo envia-nos numerosos “sinais” que são
inspirações por vezes muito claras, outras nem tanto.
Se
não estivermos atentos a esses sinais como podemos queixar-nos que não sabemos
o que fazer?
Mas
esta atenção de que falo implica, sobretudo, um coração puro e bem-disposto
para que possamos entender e entendendo, pôr em prática.
(ama, comentário
sobre Lc, 11, 29 - 32 2013.10.14, 2015.10.12)
Leitura espiritual
Ioannes Paulus PP. II
Dives in misericordia
sobre a Misericórdia Divina
1980.11.30
/…3
Consideração
pela dignidade humana
6. A imagem que acabei de
descrever do estado de espírito do filho pródigo permite-nos compreender com
exactidão em que consiste a misericórdia divina. Não há dúvida de que naquela
simples mas penetrante comparação, a figura do pai revela-nos Deus como Pai.
A atitude do pai da
parábola, todo o seu modo de agir manifestação da disposição interior,
permite-nos encontrar cada um dos fios que entretecem a visão da misericórdia
no Antigo Testamento, mas numa síntese totalmente nova, cheia de simplicidade e
profundidade. O pai do filho pródigo é fiel à sua paternidade, fiel ao amor que
desde sempre tinha dedicado ao seu filho. Tal fidelidade manifesta-se na parábola
não apenas na prontidão em recebê-lo em casa, quando ele voltou depois de ter
esbanjado a herança, mas sobretudo na alegria e no clima de festa tão generoso
para com o esbanjador que regressa. Esta atitude provoca até a inveja do irmão
mais velho, que nunca se tinha afastado do pai, nem abandonado a casa paterna.
A fidelidade a si próprio
por parte do pai — traço característico já conhecido pelo termo do Antigo
Testamento «hesed» — exprime-se de
modo particularmente denso de afecto. Lemos, com efeito, que, ao ver o filho
pródigo regressar a casa, o pai, «movido de compaixão, correu ao seu encontro,
abraçou-o efusivamente e beijou-o» 64. Procede deste modo levado certamente por
profundo afecto; e assim se explica também a sua generosidade para com o filho,
generosidade que causará tanta indignação no irmão mais velho.
Todavia, as causas da sua
comoção hão-de ser procuradas em algo mais profundo. O pai sabe que o que se
salvou foi um bem fundamental: o bem da vida de seu filho. Embora tenha
esbanjado a herança, a verdade é que a sua vida está salva. Mais ainda, esta,
de algum modo, foi reencontrada. É o sentido das palavras dirigidas pelo
próprio pai ao filho mais velho: «Era preciso que fizéssemos festa e nos
alegrássemos, porque este teu irmão estava morto e voltou à vida, estava
perdido e foi encontrado» 65. No mesmo capítulo XV do Evangelho de
S. Lucas lemos as parábolas da ovelha desgarrada e reencontrada 66 e
a seguir a da dracma perdida e de novo achada 67. Em cada uma destas
parábolas é posta em evidência a mesma alegria, que transparece no caso do
filho pródigo. A fidelidade do pai a si próprio está inteiramente centralizada
na vida do filho perdido, na sua dignidade. Assim, sobretudo, se explica a
imensa alegria que manifesta quando o filho volta para casa.
Pode-se dizer, portanto,
que o amor para com o filho, o amor que brota da própria essência da
paternidade, como que obriga o pai, se assim nos podemos exprimir, a
desvelar-se pela dignidade do filho. Esta solicitude constitui a medida do seu
amor; amor, do qual escreverá S. Paulo: «A caridade é paciente, é benigna...,
não busca o próprio interesse, não se irrita, não guarda ressentimento pelo mal
sofrido... rejubila com a verdade ..., tudo espera, tudo suporta» e «não acaba
nunca» 68.
A misericórdia apresentada
por Cristo na parábola do filho pródigo tem a característica interior do amor,
que no Novo Testamento é chamado «ágape». Este amor é capaz de debruçar-se
sobre todos os filhos pródigos, sobre qualquer miséria humana e, especialmente,
sobre toda miséria moral, sobre o pecado. Quando isto acontece, aquele que é objecto
da misericórdia não se sente humilhado, mas como que reencontrado e
«revalorizado». O pai manifesta-lhe alegria, antes de mais por ele ter sido
«reencontrado» e , por ter «voltado à vida». Esta alegria indica um bem que não
foi destruído: o filho, embora pródigo, não deixa de ser realmente filho de seu
pai. Indica ainda um bem reencontrado: no caso do filho pródigo, o regresso à
verdade sobre si próprio.
O que, na parábola de
Cristo, se verificou na relação do pai para com o filho, não se pode avaliar
«de fora». As nossas opiniões acerca da misericórdia são de maneira geral o
resultado de um juízo meramente externo. Acontece até por vezes que seguindo
tal critério, percebemos na misericórdia sobretudo uma relação de desigualdade
entre aquele que a exercita e aquele que a recebe. Por consequência, somos
levados a deduzir que a misericórdia degrada aquele que a recebe e ofende a
dignidade do homem.
A parábola do filho
pródigo persuade-nos que a realidade é diferente: a relação de misericórdia
baseia-se na experiência daquele bem que é o homem, na experiência comum da
dignidade que lhe é própria. Esta experiência comum faz com que o filho pródigo
comece a ver-se a si próprio e às suas acções com toda a verdade (e esta visão
da verdade é autêntica humildade). Por outro lado para o pai, precisamente por
isso, torna-se o seu único bem. Graças a uma misteriosa comunicação da verdade
e do amor, o pai vê com tal clareza o bem operado, que parece esquecer todo o
mal que o filho tinha cometido.
A parábola do filho
pródigo exprime, de maneira simples mas profunda, a realidade da conversão, que
é a mais concreta expressão da obra do amor e da presença da misericórdia no
mundo humano. O verdadeiro significado da misericórdia não consiste apenas no
olhar, por mais penetrante e mais cheio de compaixão que seja, com que se
encara o mal moral, físico ou material. A misericórdia manifesta-se com a sua
fisionomia característica quando reavalia, promove e sabe tirar o bem de todas
as formas de mal existentes no mundo e no homem. Entendida desta maneira,
constitui o conteúdo fundamental da mensagem messiânica de Cristo e a força
constitutiva da sua missão. Desta mesma maneira entendiam e praticavam a
misericórdia os discípulos e seguidores de Cristo. A misericórdia nunca cessou
de se manifestar nos seus corações e nas suas obras, como prova particularmente
criadora do amor, que não se deixa «vencer pelo mal», mas vence «o mal com o
bem» 69. É preciso que o rosto genuíno da misericórdia seja sempre
descoberto de maneira nova. Não obstante vários preconceitos, a misericórdia
apresenta-se como particularmente necessária nos nossos tempos.
V.
O MISTÉRIO PASCAL
A
misericórdia revelada na Cruz e na Ressurreição
7. A mensagem messiânica
de Cristo e a sua actividade entre os homens terminam com a Cruz e a
Ressurreição. Se quisermos exprimir totalmente a verdade acerca da
misericórdia, com a plenitude com que foi revelada na história da nossa
salvação, devemos penetrar de maneira profunda nesse acontecimento final que,
particularmente na linguagem conciliar, é definido como mysterium paschale (mistério pascal). Chegados a este ponto das
nossas considerações, impõe-se aproximarmo-nos ainda mais do conteúdo da
Encíclica Redemptor Hominis. Se a
realidade da Redenção, na sua dimensão humana, revela a grandeza inaudita do
homem que talem ac tantum meruit habere
Redemptorem (mereceu tal e tão grande Redemptor) 70, a dimensão
divina da Redenção permite-nos descobrir de modo, iria a dizer, mais empírico e
«histórico», a profundidade do amor que não retrocede diante do extraordinário
sacrifício do Filho, para satisfazer à fidelidade de Criador e Pai para com os
homens, criados à sua imagem e escolhidos neste mesmo Filho desde o
«princípio», para a graça e a glória.
Os acontecimentos de
Sexta-Feira Santa e, ainda antes, a oração no Getzemani introduzem mudança
fundamental em todo o processo de revelação do amor e da misericórdia, na
missão messiânica de Cristo. Aquele que «passou fazendo o bem e curando a
todos» 71 e «sarando toda a espécie de doenças e enfermidades» 72,
mostra-se agora Ele próprio, digno da maior misericórdia e parece apelar para a
misericórdia, quando é preso, ultrajado, condenado, flagelado, coroado de
espinhos, pregado na cruz e expira no meio de tormentos atrozes 73.
É então que Ele se apresenta particularmente merecedor da misericórdia dos
homens a quem fez o bem; mas não a recebe. Até aqueles que mais de perto
contactam com ele não têm a coragem de o proteger e arrancar da mão dos seus
opressores. Na fase final do desempenho da função messiânica cumprem-se em
Cristo as palavras dos Profetas e sobretudo as de Isaías, proferidas a respeito
do Servo de Javé: «Fomos curados pelas suas chagas» 74.
Cristo, enquanto homem,
que sofre realmente e de um modo terrível no Jardim das Oliveiras e no
Calvário, dirige-se ao Pai, àquele Pai cujo amor Ele pregou aos homens e de
cuja misericórdia deu testemunho com todo o seu agir. Mas não lhe é poupado,
nem sequer a Ele, o tremendo sofrimento da morte na cruz: «Aquele que não
conhecera o pecado, Deus tratou-o por nós como pecado» 75, escrevia
São Paulo, resumindo em poucas palavras toda a profundidade do mistério da Cruz
e a dimensão divina da realidade da Redenção.
É precisamente a Redenção
a última e definitiva revelação da santidade de Deus, que é a plenitude
absoluta da perfeição: plenitude da justiça e do amor, pois a justiça funda-se
no amor, dele provém e para ele tende. Na paixão e morte de Cristo — no facto
de o Pai não ter poupado o seu próprio Filho, mas «o ter tratado como pecado por
nós» 76 — manifesta-se a justiça absoluta, porque Cristo sofre a paixão
e a cruz por causa dos pecados da humanidade. Dá-se na verdade a
«superabundância» da justiça, porque os pecados do homem são «compensados» pelo
sacrifício do Homem-Deus. Esta justiça, que é verdadeiramente justiça «à
medida» de Deus, nasce toda do amor, do amor do Pai e do Filho, e frutifica
inteiramente no amor. Precisamente por isso, a justiça divina revelada na cruz
de Cristo é «à medida» de Deus, porque nasce do amor e se realiza no amor,
produzindo frutos de salvação. A dimensão divina da Redenção não se verifica
somente em ter feito justiça do pecado, mas também no facto de ter restituído
ao amor a força criativa, graças à qual o homem tem novamente acesso à
plenitude de vida e de santidade, que provém de Deus. Deste modo, Redenção traz
em si a revelação da misericórdia na sua plenitude.
O mistério pascal é o
ponto culminante da revelação e actuação da misericórdia, capaz de justificar o
homem, e de restabelecer a justiça como realização do desígnio salvífico que
Deus, desde o princípio, tinha querido realizar no homem e, por meio do homem,
no mundo, Cristo, ao sofrer, interpela todo e cada homem e não apenas o homem
crente. Até o homem que não crê poderá descobrir nele a eloquência da
solidariedade com o destino humano, bem como a harmoniosa plenitude da
dedicação desinteressada à causa do homem, à verdade e ao amor.
A dimensão divina do
mistério pascal situa-se, todavia, numa profundidade ainda maior. A cruz
erguida sobre o Calvário, na qual Cristo mantém o seu último diálogo com o Pai,
brota do âmago mais íntimo do amor, com que o homem, criado à imagem e
semelhança de Deus, foi gratuitamente beneficiado, de acordo com o eterno
desígnio divino. Deus, tal como Cristo O revelou, não permanece apenas em
estreita relação com o mundo, como Criador e fonte última da existência; é
também Pai: está unido ao homem por Ele chamado à existência no mundo visível,
mediante um vínculo mais profundo ainda do que o da criação. É o amor que não
só cria o bem, mas que faz com que nos tornemos participantes da própria vida
de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. Quem ama deseja dar-se a si próprio.
A cruz de Cristo sobre o
Calvário surge no caminho daquele «admirabile
commercium», daquela comunicação admirável de Deus ao homem, que encerra o
chamamento dirigido ao homem para que, dando-se a si mesmo a Deus e oferecendo
consigo todo o mundo visível, participe da vida divina, e, como filho adoptivo,
se torne participante da verdade e do amor que estão em Deus e vêm de Deus. No
caminho da eterna eleição do homem para a dignidade de filho adoptivo de Deus,
ergue-se na história a cruz de Cristo, Filho unigénito, que, como «Luz da Luz,
Deus verdadeiro de Deus verdadeiro» 77 veio para dar o último
testemunho da admirável aliança de Deus com a humanidade, de Deus com o homem:
com todos e com cada um dos homens. Esta aliança tão antiga como o homem — pois
remonta ao próprio mistério da criação, e foi renovada depois muitas vezes com
o único Povo eleito — é igualmente nova e definitiva aliança; ficou
estabelecida ali, no Calvário, e não é limitada a um único povo, o de Israel,
mas aberta a todos e a cada um.
Que nos ensina a cruz de
Cristo que é, em certo sentido, a última palavra da sua mensagem e da sua
missão messiânica? Em certo sentido — note-se bem — porque não é ela ainda a
última palavra da Aliança de Deus. A última palavra seria pronunciada na
madrugada, quando, primeiro as mulheres e depois os Apóstolos, ao chegarem ao
sepulcro de Cristo crucificado o vão encontrar vazio, e ouvem pela primeira vez
este anúncio: «Ressuscitou». Depois, repetirão aos outros tal anúncio e serão
testemunhas de Cristo Ressuscitado.
Mas mesmo na glorificação
do Filho de Deus, continua a estar presente a Cruz que, através de todo o
testemunho messiânico do Homem-Filho que nela morreu, fala e não cessa de falar
de Deus-Pai, que é absolutamente fiel ao seu eterno amor para com o homem, pois
que «amou tanto o mundo — e portanto, o homem no mundo — que lhe deu o seu
Filho unigénito para que todo aquele que n'Ele crer não pereça, mas tenha a
vida eterna» 78. Crer no Filho crucificado significa «ver o Pai» 79
significa crer que o amor está presente no mundo e que o amor é mais forte do
que toda a espécie de mal em que o homem, a humanidade e o mundo estão
envolvidos. Crer neste amor significa acreditar na misericórdia. Esta é, de
facto, a dimensão indispensável do amor, é como que o seu segundo nome e, ao
mesmo tempo, é o modo específico da sua revelação e actuação perante a
realidade do mal que existe no mundo, que assedia e atinge o homem, que se
insinua mesmo no seu coração e o «pode fazer perecer, na Geena» 80.
Amor
mais forte do que a morte, mais forte do que o pecado
8. A cruz de Cristo sobre
o Calvário é também testemunha da força do mal em relação ao próprio Filho de
Deus: em relação Àquele que, único dentre todos os filhos dos homens, era por
sua natureza absolutamente inocente e livre do pecado, e cuja vinda ao mundo
foi isenta da desobediência de Adão e da herança do pecado original. E eis que
precisamente n'Ele, em Cristo, é feita justiça do pecado à custa do seu
sacrifício, da sua obediência «até à morte» 81, Aquele que era sem
pecado, «Deus o tratou por nós como pecado» 82. É feita justiça
também da morte que, desde o início da história do homem, se tinha aliado ao
pecado. E este fazer-se justiça da morte realiza-se à custa da morte d'Aquele
que era sem pecado e o único que podia, mediante a própria morte, infligir a
morte à morte 83. Deste modo, a Cruz de Cristo, na qual o Filho
consubstancial ao Pai presta plena justiça a Deus, é também revelação radical
da misericórdia, ou seja, do amor que se opõe àquilo que constitui a própria
raiz do mal na história do homem: se opõe ao pecado e à morte.
A Cruz é o modo mais
profundo de a divindade se debruçar sobre a humanidade e sobre tudo aquilo que
o homem - especialmente nos momentos difíceis e dolorosos - considera seu
infeliz destino. A cruz é como que um toque do amor eterno nas feridas mais
dolorosas da existência terrena do homem, é o cumprir-se cabalmente do programa
messiânico, que Cristo um dia tinha formulado na sinagoga de Nazaré 84
e que repetiu depois diante dos enviados de João Baptista 85.
Segundo as palavras
exaradas havia muito tempo na profecia de Isaías 86, tal programa
consistia na revelação do amor misericordioso para com os pobres, os que
sofrem, os prisioneiros os cegos, os oprimidos e os pecadores. No mistério
pascal são superadas as barreiras do mal multiforme de que o homem se torna
participante durante a existência terrena. Com efeito a cruz de Cristo faz-nos
compreender as mais profundas raízes do mal que mergulham no pecado e na morte,
e também ela se torna sinal escatológico. Será somente na realização
escatológica e na definitiva renovação do mundo que o amor vencerá, em todos os
eleitos, os germes mais profundos do mal, produzindo como fruto plenamente
maduro o Reino da vida, da santidade e da imortalidade gloriosa. O fundamento
desta realização escatológica está já contido na cruz de Cristo e na sua morte.
O facto de Cristo «ter ressuscitado ao terceiro dia» 87 constitui o
sinal que indica o remate da missão messiânica, sinal que coroa toda a
revelação do amor misericordioso no mundo, submetido ao mal. Tal facto
constitui ao mesmo tempo o sinal que pre-anuncia «um novo céu e uma nova terra» 88,
quando Deus «enxugará todas as lágrimas dos seus olhos; e não haverá mais
morte, nem pranto, nem gemidos, nem dor, porque as coisas antigas terão
passado» 89.
Na realização
escatológica, a misericórdia revelar-se-á como amor, enquanto no tempo
presente, na história humana, que é conjuntamente história de pecado e de
morte, o amor deve revelar-se sobretudo como misericórdia e ser realizado
também como tal. O programa messiânico de Cristo — programa tão impregnado de
misericórdia — torna-se o programa do seu Povo da Igreja. Ao centro deste programa
está sempre a Cruz, porque nela a revelação do amor misericordioso atinge o
ponto culminante. Enquanto não passarem «as coisas antigas» 90, a
Cruz permanecerá como o «lugar», a que se poderiam aplicar estas palavras do
Apocalipse de São João: «Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha
voz e me abrir, entrarei em sua casa e cearemos juntos, eu com ele e ele
comigo» 91. Deus revela também de modo particular a sua misericórdia,
quando solicita o homem, por assim dizer, a exercitar a «misericórdia» para com
o seu próprio Filho, para com o Crucificado.
Cristo, precisamente como
Crucificado, é o Verbo que não passa 92, é o que está à porta e bate
ao coração de cada homem 93, sem coarctar a sua liberdade, mas
procurando fazer irromper dessa mesma liberdade o amor; amor que é não apenas
acto de solidariedade para com o Filho do homem que sofre, mas também, em certo
modo, uma forma de «misericórdia», manifestada por cada um de nós para com o
Filho do Eterno Pai. Porventura, em todo o programa messiânico de Cristo, em
toda a revelação da misericórdia pela Cruz, poderia ser mais respeitada e
elevada a dignidade do homem, já que o homem, se é objecto da misericórdia, é
também, em certo sentido, aquele que ao mesmo tempo «exerce a misericórdia»?
Em última análise, não é
acaso esta a posição que toma Cristo em relação ao homem quando diz: «Sempre
que fizestes isto a um destes meus irmãos... foi a mim que o fizestes»? 94
As palavras do Sermão da Montanha — «Bem-aventurados os misericordiosos, porque
alcançarão misericórdia» 95 — não constituem, em certo sentido, uma
síntese de toda a Boa-Nova, de todo o «admirável intercâmbio» (admirabile commercium) nela contido, que
é uma lei simples, forte e ao mesmo tempo «suave», da própria economia da
Salvação? Estas palavras do Sermão da Montanha, mostrando desde o ponto de partida
as possibilidades do «coração humano» («ser misericordiosos»), não revelarão
talvez, na mesma perspectiva, a profundidade do mistério de Deus: isto é,
aquela imperscrutável unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, em que o
amor, contendo a justiça, dá origem à misericórdia, a qual, por sua vez, revela
a perfeição da justiça?
O mistério pascal é Cristo
na cúpula da revelação do imperscrutável mistério de Deus. É precisamente então
que se verificam plenamente as palavras pronunciadas no Cenáculo: «Quem rne vê,
vê o Pai» 96. De facto, Cristo a quem o Pai «não poupou» 97
em favor do homem e que na sua paixão assim como no suplício da cruz não
encontrou misericórdia humana, na sua ressurreição revelou a plenitude daquele
amor que o Pai nutre para com Ele e, n'Ele para com todos os homens. Este Pai
«não é Deus de mortos, mas de vivos» 98. Na sua ressurreição Cristo
revelou o Deus de amor misericordioso, precisamente porque aceitou a Cruz como
caminho para a ressurreição. É por isso que, quando lembramos a cruz de Cristo,
a sua paixão e morte a nossa fé e a nossa esperança concentram-se n'Ele Ressuscitado
naquele mesmo Cristo, aliás, que «na tarde desse dia, que era o primeiro de
semana... se pôs no meio deles» no Cenáculo «onde se achavam juntos os
discípulos... soprou sobre eles e lhes disse: «Recebei o Espírito Santo.
Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados e àqueles a quem os
retiverdes ser-lhes-ão retidos» 99.
Este é o Filho de Deus que
na sua ressurreição experimentou em si de modo radical a misericórdia, isto é,
o amor do Pai que é mais forte do que a morte. Ele é também o mesmo Cristo
Filho de Deus, que no termo — e, em certo sentido, já para além do termo — da
sua missão messiânica, se revela a si mesmo como fonte inexaurível de misericórdia,
daquele amor que, na perspectiva ulterior da história da Salvação na Igreja,
deve perenemente mostrar-se mais forte do que o pecado. Cristo pascal é a
encarnação definitiva da misericórdia, o seu sinal vivo: histórico-salvífico e,
simultaneamente, escatológico. Neste mesmo espírito a Liturgia do tempo pascal
põe nos nossos lábios as palavras do Salmo: Cantarei eternamente as
misericórdias do Senhor 100.
Copyright
© Libreria Editrice Vaticana
(Nota:
Revisão da tradução para português por ama)
_______________________
Notas:
63 Lc 15,18 s.
64 Lc 15,20
65 Lc 15,32.
66 Cf. Lc 15,3-6.
67 Cf. Lc 15,89.
68 1 Cor 13,4-8.
69 Cf. Rom 12,21.
70 No «Exsultet» da Liturgia da
Vigília Pascal.
71 Act 10 38
72 Mt 9,35
73 Csf. Mc 15,37; Jo 19,30
74 Is 53,5
75 2 Cor 5,21.
76 Ibid
77 Símbolo Niceno-Constantinopolitano.
78 Cf. Jo 3,16.
79 Cf. Io 14.9.
80 Mt 10,28.
81 Flp 2,8.
82 2 Cor 5,21.
83 Cf. 1 Cor 15,54s.
84 Cf. Lc 4,18-21.
85 Cf. Lc 7,20-23.
86 Cf. Is 35,5; 61,1-3.
87 1 Cor 15,1.
88 Apoc 21,1.
89 Apoc 21,4.
90 Cf. Apoc 21,4.
91 Apoc 3,20.
92 Cf. Mt 24,25.
93 Cf. Apoc 3,20.
94 Mt 25,40
95 Mt 5,7
96 Jo 14,9.
97 Rom 8,32.
98 Mc 12,27
99 Jo 20,19-23.
100 Cf. Sl 89(88),2