LEGENDA MAIOR
Vida de São Francisco de Assis
CAPITULO 5
Austeridade
de vida e como as criaturas lhe proporcionavam consolo
1. Francisco, o homem de
Deus, via que por seu exemplo muitíssimos se sentiam encorajados a levar a cruz
de Cristo com grande fervor e com isso também ele se sentia animado, como bom
guia do exército de Cristo, a conquistar vitoriosamente as culminâncias da
virtude. A fim de realizar aquelas palavras do Apóstolo: “Os que são de Cristo
crucificaram sua carne com seus vícios e concupiscências” (GI 5,24),
e levar no próprio corpo a armadura da cruz, refreava os estímulos dos sentidos
com uma disciplina tão rigorosa que a muito custo admitia o necessário para seu
sustento.
Dizia que é difícil
satisfazer as exigências do corpo sem se abrir mão das baixas tendências dos
sentidos. Por essa razão, a contragosto e raramente, aceitava alimentação
cozida e. neste caso, ou lhe acrescentava cinzas ou a mergulhava na água para
torná-la insípida. E que diremos do vinho se a própria água ele a bebia tão
escassamente, ainda que abrasado de sede?
Facilmente encontrava
meios de tornar mais penosa a sua abstinência em que todos os dias fazia
progresso; pois, embora houvesse chegado ao cume da perfeição, procurava,
contudo como se fosse um principiante, castigar com novas mortificações as
revoltas da carne. Mas quando saía pelo mundo, conformava-se, no tocante à
comida, com aqueles que o hospedavam em suas casas, seguindo nisso o conselho
do Evangelho; mas logo que voltava ao retiro, entregava-se de novo aos
costumeiros rigores de sua abstinência.
Desse modo agia com
austeridade consigo mesmo, mas suave e caridosamente com o próximo, e
conformando-se em tudo ao Evangelho de Cristo, não só jejuando, mas também
comendo, a todos edificava com seu exemplo. Era a terra nua que quase sempre
servia de leito a seu pobre corpo fatigado.
Muitas vezes dormia
sentado, usando uma pedra ou um tronco como travesseiro, enquanto o único manto
andrajoso lhe cobria o corpo.
E assim servia ao Senhor
no frio e na nudez.
2. Alguém lhe perguntou
certa vez como podia proteger-se contra o rigor do inverno com agasalhos tão
pobres e ele respondeu cheio de estranho fervor de espírito: “Se tivéssemos
internamente esse fogo que é o desejo da pátria celeste, não
teríamos dificuldade em
suportar o frio externo”.
Tinha horror de roupas
caras e preferia as grosseiras, acrescentando que João Baptista foi louvado por
Cristo por causa das suas roupas rudes.
Se a roupa que recebesse
parecia muito macia, costumava coser-lhe por dentro pedaços de cordas
grosseiras porque, dizia ele, é nos palácios dos ricos que devemos procurar os
que usam roupas finas e não nas choupanas dos pobres.
Sabia por experiência própria
que os demónios ficavam aterrorizados ao verem pessoas vestidas com roupas
rudes, ao passo que vestes ricas ou macias lhes davam coragem para atacarem
mais afoitamente.
Certa noite, usou um
travesseiro de penas, contrariamente aos seus costumes, porque estava com dor
de cabeça e sofria dos olhos; mas um demónio entrou no travesseiro e não lhe
deu descanso até de manhã, impedindo-o de se entregar à oração.
Finalmente ele chamou um
irmão e disse-lhe que levasse embora aquele travesseiro. Ao deixar o quarto com
o travesseiro, o irmão ficou sem forças e com os membros paralisados. Então
Francisco, que viu em espírito o que estava acontecendo, com uma palavra
restituiu ao irmão o vigor do corpo e da alma.
3. Francisco vigiava
constantemente sobre si mesmo, tomando todo cuidado em conservar puros a sua
alma e o seu corpo; no início da sua conversão, em pleno inverno, às vezes,
mergulhava num fosso cheio de água gelada para reprimir os desordenados
movimentos da concupiscência e preservar ilesa dos ardores do torpe deleite a
cândida veste de seu pudor virginal. Um homem espiritual, afirmava ele, suporta
muito mais facilmente o frio que congela o corpo do que o ardor do mais leve
desejo carnal que domine seu espírito.
4. Uma noite, enquanto
orava num cubículo do eremitério de Sarteano, o antigo inimigo chamou-o por
três vezes:
“Francisco, Francisco,
Francisco!”
E tendo perguntado o que
queria, o demónio acrescentou maliciosamente: “Não existe pecador algum no
mundo com quem Deus não use de misericórdia, se ele se converter. Mas aquele
que se mata com as suas penitências, jamais encontrará misericórdia”.
O homem de Deus logo
percebeu, por revelação divina, o engano do inimigo que tentava chamá-lo de
volta à tibieza, como logo a seguir ficou demonstrado pelo que aconteceu.
De facto Francisco sentiu arder
dentro de si uma grave tentação sensual, alimentada pelo sopro daquele que tem
um “hálito ardente como brasas” (Jo 41,12). Mal a notou e já se
despojou das suas vestes e começou a disciplinar-se com todo rigor.
“Eia, irmão burro, assim
te convém permanecer, assim te convém estar e sofrer os açoites que bem
mereces.
O hábito religioso serve
para a decência e leva em si o carácter da santidade; por essa razão não deve
apropriar-se dele um homem luxurioso.
Pois bem, se pretendes evitar
o castigo, anda, pois, para onde te apraza”.
Movido então de um grande
fervor de espírito, saiu da cela e foi a um campo que ficava bem próximo e aí,
nu como estava, revirou-se num grande monte de neve para sufocar assim os
ardores da concupiscência. Em seguida, formou sete bolas ou figuras de neve de
diversos tamanhos, e diante delas falava a si mesmo:
“Tens aqui, neste bloco
maior, a tua mulher; esses quatro são dois filhos e duas filhas; os outros dois
são um servo e uma serva, que precisas para os trabalhos da casa. Apressa-te,
pois, a vesti-los porque estão morrendo de frio. Mas se as muitas preocupações
que te dão te aborrecem, procura desprender-te deles e consagra-te fielmente a
teu único Deus e Senhor”.
O tentador, vencido, bateu
em retirada imediatamente e o santo voltou à sua cela, vitorioso.
O frio externo que ele se
impusera como castigo tinha tão bem apagado o fogo interior da concupiscência
que se livrou dele para sempre. Um dos irmãos, que estava em oração naquela
hora, testemunhou todo o espectáculo graças a um esplêndido luar que havia; o
homem de Deus, informado desse facto, contou-lhe o drama da sua tentação, mas
proibiu-lhe que falasse dele a quem quer que fosse, enquanto vivesse.
5. Ensinava que não basta
só mortificar as paixões da carne e refrear os seus estímulos, mas também
guardar com suma vigilância os outros sentidos, através dos quais a morte entra
na alma. Recomendava muito evitar-se com todo empenho a familiaridade e as
conversas com as mulheres, porque para muitos elas são ocasião de ruína.
Pois, afirmava ele, “é o
que perde os mais fracos e enfraquece os mais fortes; conseguir evitar o contágio
das mulheres para quem com elas se entretém é tão difícil quanto ‘caminhar no
fogo e não queimar os pés’, como diz a Escritura (cf. Pr 6,27). A
não ser que se trate de um indivíduo de virtude muito provada”. Ele mesmo
desviava os olhos para não perder tempo com vaidades, de tal forma que não
conhecia mulher alguma pelas feições, como ele próprio assegurou certa vez a um
companheiro.
Julgava perigoso permitir
que a fantasia retivesse a imagem delas capaz de fazer renascer o fogo numa
carne já dominada ou de manchar a alvura de uma alma inocente. Chegava mesmo a
declarar que falar a uma mulher era frivolidade, salvo confissão ou breve aconselhamento,
de acordo com as necessidades de sua alma e as exigências das boas maneiras:
“De que assuntos poderia
um religioso tratar com uma mulher a não ser o caso de ela lhe pedir
devotamente a penitência ou algum conselho para melhorar sua vida?
Quem se sente muito seguro
de si, não toma o devido cuidado com o inimigo, e o demónio quando pode pegar
um homem por um fio de cabelo transforma este numa grossa amarra com que o
arrasta sem dificuldade ao abismo”.
6. Quanto à preguiça,
sentina de todos os maus pensamentos, ensinava que se há de fugir dela com o
maior cuidado e mostrava por seu exemplo que é preciso dominar a carne
preguiçosa e rebelde mediante contínuas disciplinas e frutuosas fadigas. Por
isso chamava o corpo de “irmão burro”, indicando assim que é necessário
carregá-lo de trabalho e de fardos, puni-lo com chicotadas e ser sustentado com
alimento ordinário e escasso. Por isso quando via algum ocioso e vagabundo, desses
que pretendem viver às expensas do suor dos outros, chamava-o de “Irmão Mosca”,
porque este, nada fazendo de bom e usando mal dos benefícios recebidos, chega a
se converter em objecto de abominação para todos.
Por isso, em certa ocasião
assim se expressava: “Quero que meus irmãos trabalhem e se ocupem em algum
trabalho honesto, para que não se entreguem à ociosidade e venham a cair por
palavra ou pensamento em algo que seja ilícito ou pecaminoso”.
Queria que seus irmãos
observassem o silêncio indicado no Evangelho, quer dizer, que em todas as
circunstâncias evitassem com todo cuidado qualquer palavra ociosa, de que no
dia do juízo deverão prestar contas (cf. Mt 12,36).
Levado por esse sentimento,
toda vez que encontrava um religioso viciado pelo apetite desenfreado de falar,
repreendia-o duramente, dizendo que o calar com modéstia protege a pureza do
coração e não é virtude de menor importância, se é verdade, como diz a
Escritura, que “a morte e a vida se encontram em poder da língua” (Pr
18,21), não tanto por razão do gosto quanto pela excessiva loquacidade.
São Boaventura
(cont)
(Revisão da versão
portuguesa por AMA)