Tempo Comum
Sagrado Coração de Jesus
Evangelho:
Lc 15, 3-7
3 Então propôs-lhes
esta parábola: 4 «Qual de vós, tendo cem ovelhas, se perde uma
delas, não deixa as noventa e nove no deserto, para ir procurar a que se tinha
perdido, até que a encontre? 5 E, tendo-a encontrado, a põe sobre os
ombros todo contente 6 e, indo para casa, chama os seus amigos e
vizinhos, dizendo-lhes: Alegrai-vos comigo, porque encontrei a minha ovelha que
se tinha perdido. 7 Digo-vos que, do mesmo modo, haverá maior
alegria no céu por um pecador que fizer penitência que por noventa e nove
justos que não têm necessidade de penitência».
Comentário:
A devoção ao Sagrado Coração
de Jesus é uma tradição muito antiga.
Em casa dos meus Pais, como
era costume em famílias cristãs, um quadro votivo ao Sagrado Coração ocupava
lugar proeminente, normalmente na sala de família.
Sempre adornado com uma
pequena jarra com flores frescas substituídas todas as semanas era para todos
os da casa uma referência de suma importância como que a lembrar que aquela
casa era Sua pertença e estava sob a Sua protecção.
Ainda hoje lá está e sempre
que por ali passo não deixo de dizer-lhe – como a minha querida Mãe me ensinou
em criança – Sagrado Coração de Jesus fazei que o meu coração seja igual ao
Vosso.
São costumes antigos!
Pois são, mas deveriam ser
de sempre!
(ama, comentário sobre Lc 15, 3-7, 2016.04.02)
Leitura espiritual
INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO
"Creio
em Deus" – Hoje
SEGUNDA
PARTE
JESUS
CRISTO
CAPÍTULO
PRIMEIRO
"Creio
em Jesus Cristo seu Filho Unigénito, Nosso Senhor".
III. Jesus Cristo – verdadeiro Deus e verdadeiro Homem
3. O direito do dogma cristológico
a) A terminologia bíblica e sua relação com o dogma.
α) "Filho de Deus".
Aqui se encaixa a nova aplicação do texto pela
comunidade cristã primitiva. Provavelmente devido à fé na ressurreição, o Salmo
foi aplicado pela primeira vez a Jesus. O acontecimento da ressurreição de
Jesus, em que a comunidade acredita, passa a ser considerado como o momento em
que o dito Salmo 2 se concretiza. Naturalmente não é menor o paradoxo.
Crer que o supliciado do Gólgota seja simultaneamente aquele a quem tais palavras
foram ditas, parece contradição inaudita. Que significa semelhante uso do
texto? Significa que no supliciado da cruz e no ressurgido para o olhar da fé,
se vê realizada a esperança real de Israel. Denota a convicção de que a palavra
de Deus: "Meu Filho és tu; eu hoje te gerei", foi dirigida
exclusivamente ao que morreu na cruz, ao que renunciou a todo o poder do mundo
( – e ponhamos, como música de fundo, o tremor dos reis da terra, o destruir
com vara de ferro!); ao que deixou de lado todas as espadas e não mandou outros
à morte, como soem fazê-lo os reis do mundo, mas enfrentou pessoalmente a morte
pelos outros; ao que via o sentido da existência humana não no poder e na
auto-afirmação, mas no existir-radical para os outros; que era, aliás, a existência
para os outros. No crucificado o crente percebe qual é o sentido daquele
oráculo, qual o sentido da eleição; não privilégio e poder para si, mas
serviço para os outros. Nele revela-se o sentido da história da escolha, o
autêntico sentido da realeza que desde sempre queria ser acção vicária. E
"representar" quer dizer: estar pelos outros, substituí-los – o que
agora recebe um sentido novo. Do radicalmente fracassado, do pendente do
patíbulo, a quem falta até um palmo de chão sob os pés, daquele cujas roupas
são objecto de jogo de azar e que chega a dar a impressão de estar abandonado
por Deus, precisamente dele vale o oráculo: "Meu Filho és tu; eu hoje –
neste lugar – te gerei. Pede-me e te darei os povos da terra por herança e o
mundo em possessão".
A ideia do Filho de Deus que, desta forma e por
este caminho, penetrou na fé em Jesus de Nazaré, na interpretação da
ressurreição e da cruz a partir do Salmo 2, não tem, realmente, nada de
comum com o conceito helenístico de homem divino, não podendo ser explicada a
partir dela. Ela representa a segunda desmitização da ideia oriental do rei, já
anteriormente desmitizada. Representa a Jesus como o lídimo herdeiro do cosmos,
como o herdeiro da promessa na qual se cumpre o sentido da Teologia davídica.
Ao mesmo tempo, tornou-se patente que o conceito de rei assim transferido para
Jesus com O título de "Filho", se funde com a ideia de servo. Como
rei, ele é servo e como servo de Deus, é rei. Este entrelaçamento tão
fundamental para a fé em Cristo foi preparado no Antigo Testamento quanto ao
conteúdo e na sua versão grega também quanto à terminologia. A palavra pais,
com que se nomeia o servo de Deus, também denota "Filho". À luz
do acontecimento "Cristo", este duplo sentido deve ser o indicador da
identidade intrínseca na qual ambas as coisas se reúnem em Cristo.
A passagem de Filho a servo, de glória a serviço
que daí resultou e que significava uma interpretação totalmente nova do
conceito de rei, bem como de Filho, encontrou a sua mais grandiosa formulação
na carta aos Filipenses (2,5-11), portanto num texto que cresceu ainda
completamente no solo do cristianismo palestinense. Aqui aponta-se para o
exemplo fundamental do sentimento de Jesus Cristo, que não conservou ciosamente
a igualdade com Deus, que lhe é conatural, mas desceu às profundezas do servo
até ao completo auto-despojamento; a palavra latina evacuatio aqui
empregada indica-nos esta versão, esta afirmação de ele se ter "esvaziado",
abrindo mão da existência-para-si e entrando totalmente no
movimento-para-os-outros. Mas, continua o texto, precisamente nisto tornou-se o
Senhor do universo, do cosmos, e diante dele o universo faz a prosquínese, o
rito e o acto ou gesto da submissão devido exclusivamente ao verdadeiro rei. E
assim o obediente por espontânea vontade surge como o verdadeiro dominador; o
que desceu ao fundo do auto-despojamento tornou-se, por meio deste acto, o
Senhor do mundo. O que já constatamos nas considerações sobre o Deus uno e
trino torna a comprovar-se sob outro ponto de vista: aquele que absolutamente
não se apega a si, sendo pura relação, coincide com o absoluto, tornando-se
Senhor. O Senhor, diante do qual o universo se curva, é o cordeiro imolado como
símbolo da existência que é acto puro, puro ser-para. A liturgia cósmica, a
homenagem adoradora do universo, giram em torno deste cordeiro (Ap 5).
Mas, tornemos ainda à questão do título "Filho
de Deus", e sua posição no mundo antigo. Cumpre, com efeito, notar a
existência de um paralelo greco-romano. Ela não consiste na ideia do
"homem divino" que nada tem a ver com isto. O único paralelo antigo
da denominação de Jesus como Filho de Deus (expressão de uma compreensão nova
de poder, reino, escolha e até humanidade) encontra-se na denominação do
imperador Augusto como "filho de Deus" (theou yios = Divi
(Caesaris) filius). Realmente deparamos aqui com a expressão exacta com que
o Novo Testamento descreve a importância de Jesus de Nazaré. Somente no culto
romano ao imperador surge, na esfera do mundo antigo, com a ideologia oriental
do rei, o título "filho de Deus", que, de resto, não existe ali e que
não pode existir por causa da plurissignificação da palavra "Deus".
Ele só volta a aparecer com o retorno da ideologia oriental referente ao rei,
da qual tal denominação se origina. Por outras palavras: o título "Filho
de Deus" integra a teologia política de Roma, apontando assim, como vimos,
para a mesma relação fundamental da qual também surgiu o "Filho de
Deus" do Novo Testamento. Com efeito, ambos, embora independentes entre si
e por diversos caminhos, nasceram do mesmo solo e se referem à mesma fonte
comum. Portanto – não o esqueçamos – no antigo oriente e na Roma imperial,
"filho de Deus" representa parcela da teologia política; no Novo
Testamento, a expressão foi metamorfoseada com outra dimensão de pensamento,
graças à alteração da teologia da eleição e da esperança. E assim a mesma raiz
fez surgirem duas coisas totalmente diversas. No embate entre a fé em Jesus como
Filho de Deus e o reconhecimento do imperador como filho de Deus, que em
breve se tornaria inevitável, defrontaram-se praticamente o mito desmitizado e
o que permaneceu como tal. A omnipretensão do divino imperador romano não podia
tolerar diante de si a teologia do rei e do imperador modificada e que se
revelava na aceitação de Jesus como Filho de Deus. Neste sentido os martyria
(testemunhos) deviam transformar-se em martyrium, a provocação
contra o auto-endeusamento do poderio político.
β) "O Filho",
A autodenominação de Jesus como "o Filho"
destaca-se e distingue-se do conceito "Filho de Deus" acima descrito,
como algo inteiramente todo diverso. A palavra origina-se de outra história da
língua e pertence a outra esfera idiomática, a saber, à linguagem parabólica
cifrada, usada por Jesus na senda dos profetas e sábios de Israel. Também aqui
a palavra não ressoa na pregação para os de fora, mas deve encontrar o seu habitat
no círculo mais íntimo dos discípulos de Jesus. O seu local de origem
dever-se-á procurar na vida de oração de Jesus; ele representa o correlativo
interno do novo modo com que Jesus se dirige ao Pai: Abba. Joachim
Jeremias mostrou, mediante cuidadosa análise, que as poucas palavras que o Novo
Testamento grego nos transmitiu do original aramaico, ou seja, da língua-mãe de
Jesus, abrem de modo especial caminho ao seu modo original de falar. Exerceram
sobre os ouvintes um impacto todo novo, caracterizando tanto o que era peculiar
ao Senhor, seu modo único, que foram conservadas literalmente; nelas como que
podemos ouvir sempre e ainda a sua própria voz.
A alocução "Abba – Pai" pertence
às pouquíssimas jóias que a proto-comunidade nos conservou, não traduzidas, da
linguagem aramaica de Jesus, por ter percebido nela, de modo impressionante, a
ele próprio. Ela distingue-se da expressão "Pai" do Antigo
Testamento, porquanto Abba representa uma fórmula de maior intimidade
(comparável, embora mais elevada do que a palavra "paizinho"); a
intimidade que lhe é inerente, excluía, no judaísmo, a possibilidade de
relacioná-la com Deus; tal aproximação não cabia ao homem. Que Jesus rezasse
assim, que falasse com Deus usando esta palavra, exprimindo uma forma nova e
toda sua de intimidade com Deus, eis o que a cristandade primitiva conservava
em mente conservando esta palavra com o seu timbre original.
Ora, como já foi insinuado, esse modo de rezar
encontra o seu correlativo na autodenominação de Jesus como "Filho".
Ambos reunidos (Abba – Filho) exprimem o modo peculiar de Jesus orar, a sua
consciência de Deus, à qual, embora tão reservado, permitia que o seu Círculo
mais íntimo de amigos lançasse um olhar. O título "Filho de Deus" (já
o ouvimos) foi tomado de empréstimo à messianologia judaica, representando por
isto uma expressão bastante carregada histórica e teologicamente; pelo
contrário, estamos agora diante de algo novo, infinitamente mais simples e
também infinitamente mais pessoal e profundo. Lançamos um olhar na experiência
orante de Jesus, naquela proximidade com Deus que distingue a sua relação para
com Deus, da de todos os outros homens, que, no entanto, não quer ser
exclusiva, estando capacitada a incluir os outros na mesma relação com Deus.
Ela quer, por assim dizer, assimilar os outros ao seu próprio modo de ser para
com Deus, de maneira que, com Jesus e nele, igualmente possam dizer a Deus Abba:
nenhum limite a distanciá-los, mas aquela familiaridade, que era real em
Jesus, deve envolvê-los.
(cont)
joseph ratzinger, Tübingen, verão de 1967.
(Revisão da versão portuguesa por ama)