Dentro
do Evangelho – (cfr:
São Josemaria, Sulco 253)
(Re Lc XVIII)
Personagem
O Estalajadeiro.
Talvez possa parecer estranho ter escolhido este “papel”
que, obviamente, parece não ser “central” na parábola, mas, eu, que nada sei
nem de parábolas nem de personagens, muito menos me sinto capaz de lhes
atribuir mérito ou demérito, ou grau de importância que possam ter, apaixono-me
por este.
Imagino-me à porta do meu estabelecimento onde recebo
hóspedes, normalmente viajantes que percorrem os caminhos poeirentos e agrestes
da Palestina e que procuram um lugar onde tomar uma refeição, descansar um
pouco ou passar a noite com um mínimo de conforto. Estando ali, no meu posto de
trabalho, deparo-me com uma cena estranha: Um homem que se aproxima a pé,
conduzindo a sua cavalgadura pela arreata e mal se mantendo direito em cima
desta, um outro homem com os vestidos em farrapos, cheio de feridas vendadas
com panos embebidos em azeite e vinho num estado lastimoso. Apresso-me a ir ao
seu encontro e tenho logo uma primeira reacção de enorme dúvida: quem conduz o
ferido é um Samaritano!
O que faz um Samaritano dirigir-se ao meu
estabelecimento? Sim, eu, que sou judeu, não “morro de amores” pelos
samaritanos que, aliás, me pagam na mesma moeda. Um antagonismo ancestral – que
ninguém sabe exactamente quando começou e porquê – divide os filhos de Israel:
Samaritanos e Judeus; mas, surpreendentemente, o Samaritano aproxima-se de mim
e diz-me:
- Encontrei este teu irmão estendido na vera do caminho
porque «caiu nas mãos dos ladrões, que o
despojaram, o espancaram e retiraram-se, deixando-o meio morto» (Cfr. Lc 10, 30). Tentei
prestar-lhe o auxílio possível ligando-lhe
«as feridas, deitando nelas azeite e vinho», mas não podia deixá-lo ali naquele estado por isso pu-lo
sobre o meu jumento e trouxe-o até esta estalagem para melhor cuidar dele.
Ajuda-me a levá-lo para dentro e encontra uma acomodação confortável onde
o possamos fazer.
Fiquei atónito, sem palavras e levei algum tempo a
reagir. Como que por encanto desvaneceram-se as minhas dúvidas e pruridos e
ajudei a transportar o ferido para a melhor habitação de que dispunha, deitámos
o homem numa cama, despimos-lhe os farrapos, arranjei uma túnica lavada que lhe
vestimos e, enquanto o Samaritano observava de novo as feridas renovando as
ligaduras e unguentos fui à cozinha buscar um caldo de sopa que a custo
conseguiu engolir. Tendo caído num sono profundo, deixámo-lo a descansar e
retiramo-nos, o samaritano para uma acomodação na parte superior da casa, eu
para o meu posto à entrada da estalagem. A noite ia adiantada e como não era de
prever aparecessem novos hóspedes, também fui deitar-me, mas não conseguia
conciliar o sono pensando em tudo quanto acontecera e algo apreensivo quanto ao
dia seguinte.
Logo pela manhã o samaritano preparou-se para seguir
viagem mas, antes que eu pudesse perguntar o que fosse, abriu a sua bolsa, «tirou dois denários, e deu-mos dizendo:
Cuida dele; quanto gastares a mais, eu to pagarei quando voltar.» Ainda
hoje, passado tanto tempo, me admiro com a minha atitude! Nem por um momento me
ocorreu que o Samaritano não faria exactamente como me disse e que não ficaria
por receber o que viesse a gastar com o pobre coitado agora a meu cargo; sim,
eu que sou judeu e tenho um negócio, não posso dar-me ao luxo de receber
hóspedes sem ter a certeza que serei ressarcido das despesas de estadia tanto
mais que estas seriam bastante fora do “normal”: os tratamentos, ligaduras,
unguentos e outros cuidados que seriam necessários. Volto a repetir: Ainda
hoje, passado tanto tempo, me admiro com a minha atitude!
Pela noitinha o doente estava visivelmente melhor e começou
por perguntar-me como tinha ido ali parar, o que acontecera… Contei-lhe tudo,
claro, e o seu espanto foi tão grande como tinha sido o meu no dia anterior
quando o estranho “cortejo” aparecera à minha porta. Não se lembrava de nada,
tão súbita e violenta tinha sido a acção dos salteadores, nem sequer quanto
tempo estivera prostrado por terra. Mas achava estranho que ninguém o tivesse
visto naquela situação, já que o caminho onde tudo acontecera era muito
concorrido. Eu também – pensando melhor – achei estranho, mas como estou
habituado à indiferença das pessoas perante as necessidades dos outros não me
custava acreditar que alguns o terão visto e ao dar-se conta da situação
tivessem optado por seguir adiante livrando-se de “trabalhos” e incómodos. De facto
há tanta gente que vai pelos caminhos da vida tão cheios de si próprios,
absorvidos com os seus assuntos que olhando não vêm e, se acaso vêm, ficam
indiferentes ao que, pensam, não lhes diz respeito.
Tomei uma decisão: A partir de agora a porta da minha
estalagem estará sempre aberta a quem tiver necessidade de entrar, não a
fecharei a ninguém por motivos de raça, cor da pele ou religião e
independentemente de possuírem meios ou recursos para cobrir as despesas que
porventura façam. Esta decisão consola-me
muito porque penso que, um dia, pode acontecer-me o mesmo que ao pobre homem
assaltado e espancado pelos salteadores e, então precisarei de alguém – um
Samaritano… talvez… – que se condoa de mim e me preste assistência.
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