Quaresma
Semana III
Evangelho:
Lc 11, 14-23
14 Jesus estava a expulsar um demónio, que era mudo.
Depois de ter expulsado o demónio, o mudo falou e as multidões ficaram maravilhadas.
15 Mas alguns disseram: «Ele expulsa os demónios pelo poder de
Belzebu, príncipe dos demónios». 16 Outros, para O tentarem,
pediam-Lhe um prodígio vindo do céu. 17 Ele, porém, conhecendo os
seus pensamentos, disse-lhes: «Todo o reino dividido contra si mesmo será
devastado, e cairá casa sobre casa. 18 Se, pois, Satanás está
dividido contra si mesmo, como estará em pé o seu reino? Porque vós dizeis que
por virtude de Belzebu é que lanço fora os demónios. 19 Ora, se é
pelo poder de Belzebu que Eu expulso os demónios, os vossos filhos pelo poder
de quem os expulsam? Por isso eles mesmos serão os vossos juízes. 20
Mas se Eu, pelo dedo de Deus, lanço fora os demónios, certamente chegou a vós o
reino de Deus. 21 Quando um, forte e armado, guarda o seu palácio,
estão em segurança os bens que possui; 22 porém, se, sobrevindo
outro mais forte do que ele, o vencer, tira-lhe as armas em que confiava, e
reparte os seus despojos. 23 Quem não é comigo é contra Mim; e quem
não colhe comigo desperdiça.
Comentário:
A resposta de Jesus aos que O assediam
com perguntas e reparos sem qualquer objectivo que não fosse desacreditá-lo
encerra uma argumentação de lógica irrefutável.
E por ser assim tão evidente e
incontestável mais se admira que persistam no erro ou, por outro lado, se
evidencia a sua má-fé e critério retorcido.
Ah! E a infinita paciência do Senhor
que Se digna responder!
Talvez que o faça mais que para
instruir os que O interrogam – que não aceitam as Suas respostas – o faça para
formação dos outros circunstantes.
(ama, comentário sobre LC 11 14-23 2015.03.12)
Leitura espiritual
SANTO
AGOSTINHO CONFISSÕES
LIVRO
PRIMEIRO
CAPÍTULO
XII
Ódio
ao estudo
Nesta minha infância, na
qual eu tinha menos que temer por mim do que em minha adolescência, eu não
gostava dos estudos, e odiava que a eles me obrigassem. Contudo, era coagido, e
faziam-me grande bem. Quem não procedia bem era eu, que não estudava a não ser constrangido,
pois ninguém faz bem o que faz contra a vontade, mesmo que seja bom o que faz.
Tampouco os que obrigavam
a estudar agiam correctamente; antes, todo o bem que eu recebia vinha de ti,
meu Deus, porque eles não tinham outro fim ao obrigarem-me a estudar senão saciar
o apetite de abundante miséria e de glória ignominiosa. Mas tu, Senhor, que
tens contados os cabelos de nossa cabeça, usavas do erro de todos os que me
coagiam a estudar para minha utilidade; e usavas da minha falta de vontade de
estudar para meu castigo, de que certamente eu já era digno, sendo ainda tão
pequeno, e tão grande pecador.
Assim, convertias em bem o
mal que eles me faziam, e dos meus pecados, me davas justa retribuição, porque
é teu desígnio, e assim acontece, que toda alma desordenada seja castigo de si
mesma.
CAPÍTULO
XIII
Gosto
pelo latim
Porque odiava eu as letras
gregas, que me ensinavam quando eu era criança? Não o sei, e nem agora o posso
explicar. Em compensação, as letras latinas me apaixonavam, não as ensinadas
pelos professores primários, mas a que é explicada pelos chamados gramáticos, porque
aquelas primeiras, com as quais se aprende a ler, a escrever e a contar, não me
foram menos pesadas e insuportáveis que as gregas. Mas donde podia proceder
essa aversão, senão do pecado e da vaidade da vida, porque eu era carne e vento
que caminha e não volta?
Aquelas primeiras letras,
pelas quais podia, como ainda faço, chegar e ler tudo o que há escrito e a
escrever tudo o que quero, eram melhores e mais úteis que aquelas outras nas
quais me obrigavam a decorar os erros de um tal Eneias, esquecido dos meus, e a
chorar a morte de Dido, que se suicidou por amor, enquanto isso, eu, miserabilíssimo,
suportava a minha própria morte com olhos enxutos, morrendo para ti, ó meu
Deus, minha vida! Na verdade, que pode haver de mais miserável do que um
infeliz que não se compadece de si mesmo e que, chorando a morte de Dido por
amor de Eneias, não chora sua própria morte por falta de amor a ti, ó Deus, luz
do meu coração, pão interior de minha alma, virtude fecundante do meu pensamento?
Não te amava; prevaricava longe de ti, e ouvia de todas as partes: “Muito bem!
Muito bem!” – porque a amizade deste mundo é adultério contra ti; e se aclamam
a alguém dizendo: “Muito bem! Muito bem!” – é para que este não se envergonhe
de ser assim. Eu não chorava estas faltas, chorava a morte de Dido “que se
suicidou com a espada”, eu procurava as últimas de tuas criaturas, abandonando-te
a ti, como terra que eu era, atraída pela terra. Se então me proibissem a
leitura de tais coisas, me afligiriam por não ler aquilo que me comovia até a
dor.
Não obstante, semelhante
loucura é considerada como coisa mais nobre e proveitosa que as letras pelas
quais aprendemos a ler e a escrever.
Mas agora, meu Deus, grite
na minha alma a tua verdade, e diga: Não é assim, não é assim, antes, aquela
primeira instrução é absolutamente superior; pois eu preferiria esquecer todas
as aventuras de Eneias, e outras histórias semelhantes, do que o saber ler e
escrever. Sei que nas escolas dos gramáticos pendem cortinas às portas; porém,
servem menos para velar o segredo que para encobrir o erro.
Não gritem contra mim
aqueles mestres a quem já não temo, enquanto confesso a ti os desejos de minha
alma, e aborreço dos meus maus caminhos, a fim de amar os teus. Não gritem contra
mim os comerciantes da gramática, pois, se eu os interrogar sobre se é verdade
que Eneias veio uma vez a Cartago, como afirma o poeta, os néscios responderão
que não sabem, e os sábios negarão o facto. Porém, se lhes perguntar como se
escreve o nome de Eneias, todos os que estudaram me responderão a mesma coisa,
de acordo com a convenção com que os homens fixaram o valor das letras do
alfabeto.
Do mesmo modo, se lhes
perguntar o que seria mais prejudicial para a vida humana: esquecer o ler e o
escrever, ou todas as ficções dos poetas, quem não vê o que logo responderia aquele
que não estivesse de tudo esquecido de ti? Pequei, pois, em minha infância, ao
preferir vãos aos proveitosos, ou para dizer melhor, ao amar àqueles e ao odiar
a estes; era para mim uma cantiga odiosa aquele “um e um, dois; dois e dois,
quatro; enquanto considerava espectáculo encantador a história do cavalo de
madeira cheio de guerreiros e o incêndio de Troia, “e até a sombra de Creuza”.
CAPÍTULO
XIV
Aversão
ao grego
Por que então aborrecia eu
a literatura grega na qual se cantam tais coisas? Porque também Homero é mui
habilidoso em tecer essas historietas, dulcíssimo na sua frivolidade, embora
para mim, menino, fosse bem amargo. Creio que o mesmo ocorra com Virgílio para
os meninos gregos obrigados a estudá-lo, como a mim com relação a Homero. Era a
dificuldade de ter de aprender totalmente uma língua estranha que, como fel,
aspergia de amargura todas as doçuras das fábulas gregas.
Eu ainda não conhecia
nenhuma palavra daquela língua, e já me obrigavam com veemência, com crueldades
e terríveis castigos, a aprendê-la. Na verdade, eu, ainda criança, também não
conhecia nenhuma palavra de latim; contudo, com um pouco de atenção, o aprendi entre
o carinho das amas, os gracejos dos que se riam e as alegrias dos que
brincavam, sem medo algum nem tormento. Eu aprendi-o, sem a pressão dos
castigos, impelido unicamente por meu coração desejoso de dar à luz seus
sentimentos, e o único caminho para isso era aprender algumas palavras, não dos
que as ensinavam, mas do que falavam, em cujos ouvidos ia eu depositando quanto
sentia.
Por aqui se evidencia
claramente que, para instruir, tem mais eficácia e curiosidade livre do que a
necessidade inspirada pelo medo. Contudo, os excessos da curiosidade encontram
nessa violência um freio segundo tuas leis, ó Deus; que desde as palmatórias
dos mestres até os tormentos dos mártires sabem dosar suas salutares amarguras,
que nos reconduzem a ti do seio do pernicioso deleite que de ti nos apartara.
CAPÍTULO
XV
Oração
Ouvi, Senhor, minha
oração, para que não desfaleça minha alma sob a tua lei, nem me canse em
confessar as tuas misericórdias, com as quais me arrancaste dos meus perversos caminhos;
que a tua doçura sobrepuje todas as doçuras que segui, e assim te ame
fortissimamente, e abrace a tua mão com toda a minha alma, e me livres de toda
a tentação até o fim dos meus dias.
Pois é, Senhor, meu rei e
meu Deus, e a ti consagro quanto falo, escrevo, leio e conto, pois quando
aprendia aquelas futilidades, tu eras o que me davas a verdadeira disciplina, e
já me perdoaste os pecados de deleite cometidos naquelas vaidades. Aprendi muitas
palavras úteis nelas, é verdade; porém, estas também se podem aprender em
estudos sérios, e este é o caminho seguro pelo qual deveriam encaminhar as
crianças.
CAPÍTULO
XVI
O
mal da mitologia
Ai de ti, torrente dos
hábitos humanos! Quem há que te resista? Quando te secarás? Até quando irás
arrastar os filhos de Eva a esse mar imenso e tenebroso, que apenas logram
passar os que embarcam sobre o lenho da cruz? Acaso não foi em ti que li a
fábula de Júpiter que troveja e adultera? É verdade que não podia fazer tais
coisas ao mesmo tempo, mas assim se representou para autorizar a imitação de um
verdadeiro adultério com o encantamento de um falso trovão. Contudo, qual é o
professor de pénula capaz de ouvir com paciência a um homem nascido do mesmo pó
que clama e diz: “Homero imaginava essas ficções e atribuía aos deuses os vícios
humanos; porém, eu preferiria que atribuísse a nós as qualidades divinas”. Com
mais verdade se diria que Homero imaginou tudo isso, atribuindo qualidades
divinas a homens corrompidos, para que os vícios não fossem considerados como
tais, e para que todo aquele que os cometesse parecesse que imitava a deuses
celestes, e não a homens corrompidos.
E contudo, ó torrente
infernal, em ti se precipitam os filhos dos homens, com o dinheiro gasto para
aprender tais coisas. E consideram acontecimento importante representá-lo, publicamente
no Foro, à vista das leis que concedem aos mestres um prémio, além de seus salários
particulares.
E ferindo os rochedos de
tuas margens, gritas dizendo: “Aqui se aprendem as palavras; aqui se adquire a
eloquência, tão necessária para persuadir e explicar os pensamentos; não poderíamos
pois aprender as palavras: chuva de ouro, regaço, templo celeste, logro e
outras mais, escritas em determinada passagem, se Terêncio não nos apresentasse
um jovem perdido que se propõe a imitar a luxúria de Júpiter? Contemplava ele
uma pintura mural “na qual se representava o mesmo Júpiter no momento em que,
segundo dizem, descia como chuva de ouro sobre o regaço de Danae, para lograr
assim à pobre mulher”.
E vede como se excitava à
luxúria a vista de tão celestial mestre:
- Mas que deus fez isto? –
diz.
- Nada menos que aquele
que faz retumbar a abóbada do céu com enorme trovão!
- E eu, homenzinho, não
haveria de fazer o mesmo?
- Fi-lo, sim, e com muito
gosto.
De modo algum se aprendem
com semelhante torpeza aquelas palavras; antes, essas palavras levam mais
atrevidamente a cometer a mesma devassidão. Não incrimino as palavras, que são
como vasos selectos e preciosos, mas condeno o vinho do erro que mestres ébrios
nos davam a beber nelas e, se não o bebêssemos, éramos açoitados, sem que
pudéssemos apelar para juiz mais sóbrio.
E, não obstante, meu Deus,
cuja presença me protege desta lembrança, confesso que aprendi estas coisas com
gosto e que, miserável, nelas me comprazi, sendo por isso chamado menino de
grandes esperanças.
(cont)
(Revisão
da versão portuguesa por ama)