DENTRO DO EVANGELHO
(Re Lc X)
DENTRO DO EVANGELHO
(Re Lc X)
Samaritano
O
Chefe dos assaltantes.
Toda a minha vida tem sido a de um
autêntico marginal, dedicando-me a roubar quanto me aparece a jeito.
A princípio, teria talvez escassos
dezoito anos, juntava-me a outros rapazes da minha idade, marginais como eu, e assim
levava-mos uma vida de sobressaltos sempre em fuga das autoridades e, muitas
vezes, alguns dos que assaltávamos reagiam e as coisas corriam mal, para o
nosso lado, já se vê.
Um dia as coisas mudaram bastante porque
veio ter connosco um sujeito bastante mais velho que nós e que – para encurtar
– nos reuniu num bando passando a agir sob as suas ordens e instruções. O homem
era de facto um autêntico facínora que não hesitava em empregar violência para
atingir os seus fins. Chamava-se Barrabás!
Dizia ele que, como Zelote que era, o
seu principal alvo era provocar o ocupante romano de modo a mantê-lo ocupado em
acções de polícia desviando-o de outras acções mais aparatosas com que tentavam
manter a férrea disciplina que impunham ao povo.
Dividiu-nos em grupos de três e quatro e
a cada grupo dava instruções sobre o que fazer e onde. O meu grupo – eu e mais
três – tinha sido “destacado” para a via que descia de Jericó para Jerusalém
que, segundo ele, tinha numerosos viandantes a maioria dos quais eram gente que
comerciava, logo, trazendo consigo ou bens ou o dinheiro produto da sua venda. E,
realmente, a nossa actividade produzia bons resultados e Barrabás estava muito
satisfeito connosco pois arrecadava a maior parte dos “proventos” da nossa
actividade.
Hoje, porém, as coisas não correram
muito bem, ou antes, correram muito mal. Do nosso esconderijo avistámos um
homem sozinho que descia, o jumento que conduzia estava ajoujado de mercadoria.
Todo o seu aspecto e a forma como trajava indicavam que seria um homem de
posses. Não se avistando mais ninguém por perto resolvemos assaltá-lo e, foi
aqui, que tudo se complicou. O homem era bastante robusto e ofereceu uma
resistência feroz e determinada a não se deixar roubar.
Um dos meus companheiros recebeu vários
golpes que o deixaram praticamente inanimado e outro recebeu um profundo corte
provocado pela adaga que o homem esgrimia com destreza. Não estive com
contemplações e com um bastão de ferro agredi o sujeito prostrando-o no chão
poeirento. Depois… movido pela raiva dei-lhe pontapés, murros, eu sei lá…
arranquei-lhe os vestidos deixando-o em farrapos e pondo o meu companheiro em
cima do jumento fugimos para o nosso esconderijo para tentar recuperar dos
ferimentos recebidos e deitar contas ao espólio arrecadado.
Os outros dois, amparando-se mutuamente,
puseram-se a caminho de Jerusalém para procurar tratamento para as suas
feridas, eu fiquei ali escondido remoendo a minha raiva pelo que acontecera.
Deixara-me dominar pela ira ao atacar de forma tão desumana o desgraçado que
nos caíra nas mãos.
Ora um chefe, um verdadeiro chefe, não
pode deixar que os seus sentimentos extravasem colocando-se fora de controlo, é
fundamental manter a calma em qualquer situação para se impor aos que têm de
ver nele capacidade e aptidão para chefiar e comandar.
Ouvi um ruido de cavalgadura e avistei
um homem que se aproximava. Já era o terceiro desde que decorrera o assalto.
Antes tinham aparecido um sacerdote e um levita que mal olharam para o
desgraçado que jazia na vera do caminho, antes estugaram o passo seguindo
viajem. Porém, este, deteve-se e debruçou-se sobre a vítima,
voltando-o de costas, retirou o manto e pôs-lho debaixo da cabeça. Depois
dirigiu-se à sua montada e dos alforges retirou um pequeno odre com vinho e uma
garrafa com azeite. Com grande cuidado e destreza foi destapando as numerosas
feridas e contusões deitando-lhes azeite e vinho e cobrindo-as com pequenos
pedaços de pano que rasgava de um lençol.
O pobre ferido começou a falar e embora
eu não pudesse ouvir o que diziam percebi que mostrava gratidão e
reconhecimento.
Depois e a muito custo conseguiu
coloca-lo sobre a sua cavalgadura e afastaram-se por outro caminho.
Tenho de confessar que estava atónito
com o que acabara de presenciar é que, esquecia-me de dizer, o socorrista era
um samaritano que, como toda agente sabe, não suportam os judeus. Fiquei longo
tempo ali sentado pensando em tudo aquilo que tanto me impressionara, sobretudo
na solicitude e compaixão demonstradas pelo samaritano para com a vítima e não
pude deixar de me avaliar a mim mesmo se, acaso, procederia de igual forma. O
meu coração empedernido por anos de violências e desacatos, abusos e esbulhos
parece que me estalava no peito e, num impulso irresistível dei um salto para
fora do esconderijo e abalei numa corrida desenfreada em direcção Jerusalém.
Mas tive de parar a minha correria, um
aglomerado de gente atravancava o caminho. Escutavam um homem que falava com
uma voz tão clara e segura que me apercebi logo ser alguém excepcional. Parecia
estar a acabar um longo discurso e ouvi estas palavras finais: «Quero misericórdia e não sacrifício. Porque
Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores».
Fiquei por ali pensando no que acabara
de ouvir e, dentro de mim algo se transformou como se, sem eu compreender bem o
que me acontecia, estivesse a ver toda a minha vida num relance, uma vida feita
de assaltos, roubos, violências de toda a ordem e percebi, sim, entendi, que
tinha de mudar radicalmente.
Retomei a corrida e cheguei ofegante,
mal podendo respirar, à escadaria do Templo e, pela primeira vez na minha vida,
entrei. Não sabia o que fazer ou o que dizer, mas, a verdade, é que caí de
joelhos e pus a cabeça no chão. Então, como se fosse outro que não eu, ouvi-me
dizer: ‘Senhor, tem misericórdia de mim que sou um desgraçado, um malfeitor, um
miserável!’
Quando saí parecia-me que mal punha os
pés no chão de tal forma me sentia outro, mais leve, muito mais leve e voltei
pelo mesmo caminho, decidido a encontrar a minha vítima para lhe restituir o
que lhe roubara.