São Josemaria Escrivá
Amigos de Deus
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Recordem a parábola dos talentos.
Aquele servo que só recebeu um podia - como
os companheiros - empregá-lo bem, procurar que rendesse, usando as suas qualidades.
E
que decide?
Tem
medo de o perder.
E
está certo.
Mas,
e depois?
Enterra-o!
E
acaba por não dar fruto.
Não esqueçamos este caso de temor doentio
de aproveitar honradamente a capacidade de trabalho, a inteligência, a vontade,
o homem todo.
Enterro-o
- parece afirmar esse desgraçado -, mas a minha liberdade fica a salvo!
Não.
A
liberdade inclinou-se para uma coisa muito concreta, para a mais pobre e árida
secura.
Optou,
porque não tinha outro remédio senão escolher; mas escolheu mal.
Nada mais falso do que opor a liberdade à
entrega, porque a entrega surge como consequência da liberdade.
Reparem
que, quando uma mãe se sacrifica por amor aos filhos, escolheu; e, segundo a
medida desse amor, assim se manifestará a sua liberdade.
Se
esse amor é grande, a liberdade será fecunda e o bem dos filhos nasce dessa
bendita liberdade, que pressupõe entrega, e nasce dessa bendita entrega, que é
precisamente liberdade.
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Mas, perguntar-me-ão, quando conseguimos o
que amamos com toda a alma, já não continuamos a procurá-lo.
Desapareceu a liberdade?
Garanto-vos que então é mais activa do que
nunca, porque o amor não se contenta com um cumprimento rotineiro, nem se coaduna
com o fastio e a apatia.
Amar
significa recomeçar todos os dias a servir, com obras de carinho.
Insisto, e gostaria de gravá-lo a fogo em
cada um: a liberdade e a entrega não se contradizem; apoiam-se mutuamente.
A
liberdade só se pode entregar por amor; não concebo outra espécie de
desprendimento.
Não
é um jogo de palavras mais ou menos acertado.
Na
entrega voluntária, em cada instante dessa dedicação, a liberdade renova o amor
e renovar-se é ser continuamente jovem, generoso, capaz de grandes ideais e de
grandes sacrifícios.
Lembro-me
que tive uma grande alegria quando soube que em português chamam aos jovens os
novos.
E
são isso.
Conto-vos
isto, porque já tenho muitos anos, mas quando rezo junto do altar ao Deus que
enche de alegria a minha juventude, sinto-me muito jovem e sei que nunca me
hei-de considerar velho, porque, se permanecer fiel ao meu Deus.
O Amor vivificar-me-á continuamente.
A minha juventude renovar-se-á como a da
águia.
Por amor à liberdade nos prendemos.
Só
a soberba sente nesses laços o peso de uma cadeia.
A
verdadeira humildade, que nos é ensinada por Aquele que é manso e humilde de
coração, mostra-nos que o seu jugo é suave e a sua carga leve: o jugo é a
liberdade; o jugo é o amor; o jugo é a unidade; o jugo é a vida que Ele ganhou
para nós na Cruz.
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A
liberdade das consciências
Quando, nos meus anos de sacerdócio, não
direi que prego mas que grito o meu amor à liberdade pessoal, noto nalguns um
gesto de desconfiança, como de quem suspeita que a defesa da liberdade implica
um perigo para a fé.
Que
se tranquilizem esses pusilânimes.
Só
atenta contra a fé uma errada interpretação da liberdade, uma liberdade sem
qualquer fim, sem norma objectiva, sem lei, sem responsabilidade, numa palavra,
a libertinagem.
Infelizmente,
é isso que alguns defendem; essa reivindicação é que constitui um atentado
contra a fé.
Por isso, não é exacto falar de liberdade
de consciência, que equivale a considerar de boa categoria moral o facto de o
homem rejeitar Deus.
Já
recordámos que nos podemos opor aos desígnios salvadores de Nosso Senhor;
podemos, mas não devemos fazê-lo.
E
se alguém tomasse essa atitude deliberadamente, pecaria ao transgredir o
primeiro e o fundamental dos mandamentos: amarás Yahvé com todo o teu coração.
Defendo com todas as minhas forças a
liberdade das consciências, que significa que não é lícito a ninguém impedir
que a criatura tribute culto a Deus.
Têm
de se respeitar os legítimos anseios de verdade: o homem tem obrigação grave de
procurar Nosso Senhor, de O conhecer e de O adorar, mas a ninguém na terra é
lícito impor ao próximo a prática de uma fé que este não tem, tal como ninguém
pode arrogar-se o direito de prejudicar quem a recebeu de Deus.
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A Igreja, nossa Santa Mãe, sempre se
pronunciou pela liberdade e rejeitou todos os fatalismos, antigos ou menos
antigos.
Declarou
que cada alma é dona do seu destino para bem ou para mal.
E
os que não se afastaram do bem irão para a vida eterna; os que cometeram o mal,
para o fogo eterno.
Impressiona-nos
sempre esta terrível capacidade humana, tua e minha, de todos, que
simultaneamente é o sinal da nossa nobreza.
A
tal ponto o pecado é um mal voluntário, que de nenhum modo seria pecado, se não
tivesse o seu princípio na vontade; esta afirmação goza de tal evidência, que
estão de acordo os poucos sábios e os muitos ignorantes que habitam no mundo.
Volto a levantar o meu coração em acção de
graças ao meu Deus, ao meu Senhor, porque nada o impedia de nos criar impecáveis,
com um impulso irresistível para o bem; mas julgou que seriam melhores os seus
servidores se o servissem livremente.
Que grande é o amor, a misericórdia do
nosso Pai!
Perante esta realidade das suas loucuras
divinas pelos filhos, gostaria de ter mil bocas, mil corações mais, que me
permitissem viver num contínuo louvor a Deus Pai, a Deus Filho, a Deus Espírito
Santo.
Reparem
que o Todo-Poderoso, Aquele que governa o Universo com a sua Providência, não
deseja servos forçados, prefere filhos livres. Meteu na alma de cada um de nós
- embora nasçamos proni ad peccatum,
inclinados ao pecado pela queda dos nossos primeiros pais - uma chispa da sua
inteligência infinita, a atracção pelo bem, uma ânsia de paz perdurável.
E
leva-nos a compreender que a verdade, a felicidade e a liberdade se conseguem
quando procuramos que germine em nós essa semente de vida eterna.
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Responder negativamente a Deus, rejeitar
esse princípio de felicidade nova e definitiva, ficou nas mãos da criatura.
Mas,
se agir assim, deixa de ser filho e torna-se escravo.
Cada
coisa é aquilo que segundo a sua natureza lhe convém; por isso, quando se move
à procura de algo que lhe é estranho, não actua segundo a sua própria maneira
de ser, mas por impulso alheio; e isto é servil.
O
homem é racional por natureza.
Quando
se comporta segundo a razão, procede, pelo seu próprio movimento, como quem é;
e isto é próprio da liberdade.
Quando
peca, age fora da razão, e então deixa-se conduzir pelo impulso de outro,
submetido a domínio alheio; e por isso quem aceita o pecado é servo do pecado
(Jo 8, 34).
Permitam-me que insista sobre este ponto; é
muito claro e podemos comprová-lo com frequência à nossa volta ou no nosso
próprio eu: nenhum homem escapa a algum tipo de servidão.
Uns
prostram-se diante do dinheiro; outros adoram o poder; outros a tranquilidade
relativa do cepticismo; outros descobrem na sensualidade o seu bezerro de ouro.
E
acontece o mesmo com as coisas nobres.
Empenhamo-nos
num trabalho, numa actividade de maiores ou menores proporções, na realização
de um trabalho científico, artístico, literário, espiritual.
Se
há empenho, se existe verdadeira paixão, quem a isso se entrega vive como
escravo, dedica-se com prazer ao serviço da finalidade da sua tarefa.
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Escravidão por escravidão - já que de
qualquer modo temos de servir, pois, quer queiramos quer não, essa é a condição
humana - não há nada melhor do que saber que somos, por Amor, escravos de Deus.
Porque
nesse momento perdemos a situação de escravos para nos tornarmos, amigos,
filhos.
E
aqui surge a diferença: enfrentamos as ocupações honestas do mundo com a mesma
paixão, com o mesmo empenho que os outros, mas com paz no íntimo da alma; com
alegria e serenidade, mesmo nas contradições: pois não depositamos a nossa
confiança naquilo que é passageiro, mas no que permanece para sempre, não somos
filhos da escrava, mas da mulher livre.
Donde nos vem esta liberdade?
De Cristo, Nosso Senhor.
Esta é a liberdade com que Ele nos redimiu.
Por
isso ensina: se o Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres. Nós, cristãos,
não temos de pedir emprestado a ninguém o verdadeiro sentido deste dom, porque
a única liberdade que salva o homem é cristã.
Gosto de falar da aventura da liberdade,
porque é essa realmente a aventura da vossa vida e da minha. Livremente - como filhos,
insisto, não como escravos - seguimos o caminho que Nosso Senhor assinalou para
cada um de nós.
E
saboreamos esta facilidade de movimentos como um presente de Deus.
Livremente, sem qualquer coacção, porque me
apetece, decido-me por Deus.
E
comprometo-me a servir, a converter a minha existência numa entrega aos outros,
por amor ao meu Senhor Jesus.
Esta
liberdade incita-me a clamar que nada na terra me separará da caridade de
Cristo.
(cont)