EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL
AMORIS LÆTITIA
DO SANTO PADRE FRANCISCO
AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA
CAPÍTULO I
À LUZ DA PALAVRA
A ternura do abraço
27.
Como distintivo dos seus discípulos, Cristo pôs sobretudo a lei do amor e do
dom de si mesmo aos outros[i], e fê-lo através dum princípio que um pai ou uma mãe
costumam testemunhar na sua própria vida: «Ninguém tem maior amor do que quem
dá a vida pelos seus amigos» [ii]. Frutos do amor são também a misericórdia e o perdão.
Nesta linha, é emblemática a cena que nos apresenta uma adúltera na explanada
do templo de Jerusalém, primeiro, rodeada pelos seus acusadores e, depois,
sozinha com Jesus, que não a condena mas convida-a a uma vida mais digna[iii].
28.
No horizonte do amor, essencial na experiência cristã do matrimónio e da
família, destaca-se ainda outra virtude, um pouco ignorada nestes tempos de
relações frenéticas e superficiais: a ternura. Detenhamo-nos no terno e denso
Salmo 131, onde – como se observa, aliás, noutros textos [iv] – a união entre o fiel e o seu Senhor é expressa com
traços de amor paterno e materno. Lá aparece a intimidade delicada e carinhosa
entre a mãe e o seu bebé, um recém-nascido que dorme nos braços de sua mãe
depois de ter sido amamentado. Como indica a palavra hebraica gamùl, trata-se dum menino que acaba de
mamar e se agarra conscientemente à mãe que o leva ao colo. É, pois, uma
intimidade consciente, e não meramente biológica. Por isso canta o Salmista: «Estou sossegado e tranquilo, como criança
saciada ao colo da mãe»[v]. Paralelamente, podemos ver outra cena na qual o
profeta Oseias coloca na boca de Deus, visto como pai, estas palavras
comoventes: «Quando Israel era ainda menino,
Eu amei-o (...), Eu ensinava Efraim a andar, trazia-o nos meus braços (...).
Segurava-o com laços de ternura, com laços de amor, fui para ele como os que
levantam uma criancinha contra o seu rosto; inclinei-me para ele para lhe dar
de comer».[vi]
29.
Com este olhar feito de fé e amor, de graça e compromisso, de família humana e
Trindade divina, contemplamos a família que a Palavra de Deus confia nas mãos
do marido, da esposa e dos filhos, para que formem uma comunhão de pessoas que
seja imagem da união entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Por sua vez, a
actividade geradora e educativa é um reflexo da obra criadora do Pai. A família
é chamada a compartilhar a oração diária, a leitura da Palavra de Deus e a
comunhão eucarística, para fazer crescer o amor e tornar-se cada vez mais um
templo onde habita o Espírito.
30.
Cada família tem diante de si o ícone da família de Nazaré, com o seu dia-a-dia
feito de fadigas e até de pesadelos, como quando teve que sofrer a violência
incompreensível de Herodes, experiência que ainda hoje se repete tragicamente
em muitas famílias de refugiados descartados e inermes. Como os Magos, as
famílias são convidadas a contemplar o Menino com sua Mãe, a prostrar-se e
adorá-Lo[vii]. Como Maria, são exortadas a viver, com coragem e
serenidade, os desafios familiares tristes e entusiasmantes, e a guardar e
meditar no coração as maravilhas de Deus[viii]. No tesouro do coração de Maria, estão também todos os
acontecimentos de cada uma das nossas famílias, que Ela guarda solicitamente.
Por isso pode ajudar-nos a interpretá-los de modo a reconhecer a mensagem de
Deus na história familiar.
CAPÍTULO II
A REALIDADE E OS DESAFIOS DAS
FAMÍLIAS.
31.
O bem da família é decisivo para o futuro do mundo e da Igreja. Inúmeras são as
análises feitas sobre o matrimónio e a família, sobre as suas dificuldades e
desafios actuais. É salutar prestar atenção à realidade concreta, porque «os pedidos e os apelos do Espírito ressoam
também nos acontecimentos da história» através dos quais «a Igreja pode ser guiada para uma compreensão
mais profunda do inexaurível mistério do matrimónio e da família»[ix]. Não tenho a pretensão de apresentar aqui tudo aquilo
que poderia ser dito sobre os vários temas relacionados com a família no
contexto actual. Mas, dado que os Padres sinodais ofereceram um panorama da
realidade das famílias de todo o mundo, considero oportuno recolher algumas das
suas contribuições pastorais, acrescentando outras preocupações derivadas da
minha própria visão.
A situação actual da família
32.
«Fiéis ao ensinamento de Cristo, olhamos a realidade actual da família em toda
a sua complexidade, nas suas luzes e sombras. (...) Hoje, a mudança
antropológico-cultural influencia todos os aspectos da vida e requer uma
abordagem analítica e diversificada» [x]. Já no contexto de várias décadas atrás, os bispos da
Espanha reconheciam uma realidade doméstica com mais espaços de liberdade, «com uma distribuição equitativa de encargos,
responsabilidades e tarefas (...). Valorizando mais a comunicação pessoal entre
os esposos, contribui-se para humanizar toda a vida familiar. (...) Nem a
sociedade em que vivemos nem aquela para onde caminhamos permitem a sobrevivência
indiscriminada de formas e modelos do passado»[xi]. Mas «estamos
conscientes da direcção que vão tomando as mudanças antropológico-culturais, em
razão das quais os indivíduos são menos apoiados do que no passado pelas
estruturas sociais na sua vida afectiva e familiar»[xii].
33.
Por outro lado, «há que considerar o
crescente perigo representado por um individualismo exagerado que desvirtua os
laços familiares e acaba por considerar cada componente da família como uma
ilha, fazendo prevalecer, em certos casos, a ideia dum sujeito que se constrói
segundo os seus próprios desejos assumidos com carácter absoluto»[xiii]. «As tensões
causadas por uma cultura individualista exagerada da posse e fruição geram no
seio das famílias dinâmicas de impaciência e agressividade»[xiv]. Gostaria de acrescentar o ritmo da vida actual, o
stresse, a organização social e laboral, porque são factores culturais que
colocam em risco a possibilidade de opções permanentes. Ao mesmo tempo,
encontramo-nos perante fenómenos ambíguos. Por exemplo, aprecia-se uma
personalização que aposte na autenticidade em vez de reproduzir comportamentos
prefixados. É um valor que pode promover as diferentes capacidades e a espontaneidade,
mas, se for mal orientado, pode criar atitudes de permanente suspeita, fuga dos
compromissos, confinamento no conforto, arrogância. A liberdade de escolher
permite projectar a própria vida e cultivar o melhor de si mesmo, mas, se não
se tiver objectivos nobres e disciplina pessoal, degenera numa incapacidade de
se dar generosamente. De facto, em muitos países onde diminui o número de matrimónios,
cresce o número de pessoas que decidem viver sozinhas ou que convivem sem
coabitar. Podemos assinalar também um louvável sentido de justiça; mas, mal
compreendido, transforma os cidadãos em clientes que só exigem o cumprimento de
serviços.
34.
Se estes riscos se transpõem para o modo de compreender a família, esta pode
transformar-se num lugar de passagem, aonde uma pessoa vai quando lhe parecer
conveniente para si mesma ou para reclamar direitos, enquanto os vínculos são
deixados à precariedade volúvel dos desejos e das circunstâncias. No fundo, hoje
é fácil confundir a liberdade genuína com a ideia de que cada um julga como lhe
parece, como se, para além dos indivíduos, não houvesse verdades, valores,
princípios que nos guiam, como se tudo fosse igual e tudo se devesse permitir.
Neste contexto, o ideal matrimonial com um compromisso de exclusividade e
estabilidade acaba por ser destruído pelas conveniências contingentes ou pelos
caprichos da sensibilidade. Teme-se a solidão, deseja-se um espaço de protecção
e fidelidade mas, ao mesmo tempo, cresce o medo de ficar encurralado numa
relação que possa adiar a satisfação das aspirações pessoais. 35. Como
cristãos, não podemos renunciar a propor o matrimónio, para não contradizer a
sensibilidade actual, para estar na moda, ou por sentimentos de inferioridade
face ao descalabro moral e humano; estaríamos a privar o mundo dos valores que
podemos e devemos oferecer. É verdade que não tem sentido limitar-nos a uma
denúncia retórica dos males actuais, como se isso pudesse mudar qualquer coisa.
De nada serve também querer impor normas pela força da autoridade. É-nos pedido
um esforço mais responsável e generoso, que consiste em apresentar as razões e
os motivos para se optar pelo matrimónio e a família, de modo que as pessoas
estejam melhor preparadas para responder à graça que Deus lhes oferece.
36.
Ao mesmo tempo devemos ser humildes e realistas, para reconhecer que às vezes a
nossa maneira de apresentar as convicções cristãs e a forma como tratamos as
pessoas ajudaram a provocar aquilo de que hoje nos lamentamos, pelo que nos
convém uma salutar reacção de autocrítica. Além disso, muitas vezes
apresentámos de tal maneira o matrimónio que o seu fim unitivo, o convite a
crescer no amor e o ideal de ajuda mútua ficaram ofuscados por uma ênfase quase
exclusiva no dever da procriação. Também não fizemos um bom acompanhamento dos
jovens casais nos seus primeiros anos, com propostas adaptadas aos seus
horários, às suas linguagens, às suas preocupações mais concretas. Outras
vezes, apresentámos um ideal teológico do matrimónio demasiado abstracto,
construído quase artificialmente, distante da situação concreta e das
possibilidades efectivas das famílias tais como são. Esta excessiva
idealização, sobretudo quando não despertámos a confiança na graça, não fez com
que o matrimónio fosse mais desejável e atraente; muito pelo contrário.
(cont)
(revisão
da versão portuguesa por AMA)
[i] cf. Mt 22, 39; Jo
13, 34
[iv] cf. Ex 4, 22; Is
49, 15; Sl 27/26, 10
[ix] João Paulo II,
Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981), 4: AAS 74 (1982), 84.
[x] Relatio Synodi 2014,
5.
[xi] Conferência Episcopal
Espanhola, Matrimonio y familia (6 de Julho de 1979), 3.16.23.
[xii] Relatio Finalis
2015, 5.
[xiii] Relatio Synodi 2014,
5.
[xiv] Relatio Finalis
2015, 8.