Amigos
de Deus
304
A Santa Cruz
Afã
de adoração, ânsias de desagravo com sossegada suavidade e com sofrimento.
Far-se-á
vida na nossa vida a afirmação de Jesus: aquele que não toma a sua cruz para me
seguir, não é digno de mim.
E
Nosso Senhor manifesta-se-nos cada vez mais exigente, pede-nos reparação e
penitência, até nos fazer experimentar o fervoroso desejo de querer viver para
Deus, pregado na cruz juntamente com Cristo.
Mas
guardamos este tesouro em vasos de barro frágil e quebradiço, para que se
reconheça que a grandeza do poder que se vê em nós é de Deus e não nossa.
Vemo-nos
acossados por toda a espécie de atribulações e nem por isso perdemos o ânimo;
encontramo-nos em grandes apuros, mas não desesperados, ou sem recursos; somos
perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não inteiramente perdidos:
trazemos sempre no nosso corpo por toda a parte a mortificação de Jesus.
Parece-nos,
além disso, que Nosso Senhor não nos escuta, que andamos enganados, que só se
ouve o monólogo da nossa voz. Encontramo-nos como se não tivéssemos apoio na
terra e fossemos abandonados pelo Céu.
No
entanto, é verdadeiro e prático o nosso horror ao pecado, mesmo ao pecado
venial.
Com
a obstinação da Cananeia, prostramo-nos rendidamente como ela, que O adorou,
implorando: Senhor, socorre-me.
E
desaparece a obscuridade, superada pela luz do Amor.
305
É
a hora de clamar: lembra-Te das promessas que me fizeste, para me encher de
esperança; isto consola-me no meu nada e enche o meu viver de fortaleza. ~
Nosso
Senhor quer que contemos com Ele para tudo: vemos com evidência que sem Ele
nada podemos e que com Ele podemos tudo.
E
confirma-se a nossa decisão de andar sempre na Sua presença.
Com
a claridade de Deus no entendimento, que parece inactivo, torna-se-nos
indubitável que, se o Criador cuida de todos - mesmo dos inimigos -, quanto
mais cuidará dos amigos!
Convencemo-nos
que não há mal nem contradição que não venham por bem: assim assentam com mais
firmeza, no nosso espírito, a alegria e a paz que nenhum motivo humano poderá
arrancar-nos, porque estas visitas deixam sempre em nós algo de Seu, algo
divino. Louvaremos o Senhor Nosso Deus que efectuou em nós coisas admiráveis e
compreenderemos que fomos criados com capacidade de possuir um tesouro
infinito.
306
A Santíssima Trindade
Tínhamos
começado com orações vocais, simples, encantadoras, que aprendemos na nossa
meninice e que gostaríamos de não perder jamais.
A
oração, que começou com essa ingenuidade pueril, desenvolve-se agora em caudal
largo, manso e seguro, porque acompanha a nossa amizade com Aquele que afirmou:
Eu sou o caminho.
Se
amarmos Cristo assim, se com divino atrevimento nos refugiarmos na abertura que
a lança deixou no Seu peito, cumprir-se-á a promessa do Mestre: qualquer que me ame observará a minha
doutrina e meu Pai o amará e viremos a ele e nele faremos morada.
O
coração sente então a necessidade de distinguir e adorar cada uma das pessoas
divinas.
De
certo modo, é uma descoberta que a alma faz na vida sobrenatural, como as de
uma criancinha que vai abrindo os olhos à existência. E entretém-se
amorosamente com o Pai e com o Filho e com o Espírito Santo; e submete-se
facilmente à actividade do Paráclito vivificador, que se nos entrega sem o
merecermos: os dons e as virtudes sobrenaturais!
307
Corremos
como o veado que anseia pelas fontes da água; com sede, a boca gretada pela
secura.
Queremos
beber nesse manancial de água viva. Sem atitudes extravagantes, mergulhamos ao
longo do dia nesse caudal abundante e claro de águas frescas que saltam até à
vida eterna.
As
palavras tornam-se supérfluas, porque a língua não consegue expressar-se; o
entendimento aquieta-se.
Não
se discorre, olha-se!
E
a alma rompe outra vez a cantar um cântico novo, porque se sente e se sabe
também olhada amorosamente por Deus a toda a hora.
Não
me refiro a situações extraordinárias.
São,
podem muito bem ser, fenómenos ordinários da nossa alma: uma loucura de amor
que, sem espectáculo, sem extravagâncias, nos ensina a sofrer e a viver, porque
Deus nos concede a Sabedoria.
Que
serenidade, que paz então, metidos no caminho estreito que conduz à vida.
308
Ascética?
Mística?
Não
me interessa.
Seja
o que for, ascética ou mística, que importa?
É
mercê de Deus.
Se
procuras meditar, o Senhor não te negará a sua assistência.
Fé
e obras de fé!
Obras,
porque o Senhor - tu já reparaste nisso desde o princípio e eu já to fiz notar
a seu tempo - cada dia é mais exigente.
Isto
já é contemplação e união; e assim há-de ser a vida de muitos cristãos,
avançando cada um pela sua própria via espiritual - são infinitas - no meio dos
afazeres deste mundo, mesmo sem se darem conta disso.
Uma
oração e uma conduta que não nos afastam das nossas actividades correntes, que
nos conduzem a Nosso Senhor no meio dos nossos nobres empenhos terrenos.
Ao
elevar a Deus todas essas ocupações, a criatura diviniza o mundo. Tenho falado
tantas vezes do mito do rei Midas que convertia em ouro tudo aquilo em que
tocava!
Podemos
converter em ouro de méritos sobrenaturais tudo o que tocamos, apesar dos
nossos erros pessoais.
309
Assim
actua o Nosso Deus.
Quando
aquele filho regressa, depois de ter gasto o seu dinheiro, vivendo mal, depois
- sobretudo - de se ter esquecido do pai, o pai diz: depressa, trazei aqui o
vestido mais rico e vesti-lho e colocai-lhe um anel no dedo; calçai-lhe as
sandálias.
Tomai
um vitelo gordo, matai-o e comamos e celebremos um banquete.
O
Nosso Pai, Deus, quando recorremos a Ele com arrependimento, tira riqueza da
nossa miséria e força da nossa debilidade.
Que
preparará para nós, se não O abandonarmos, se O procurarmos todos os dias, se
Lhe dirigirmos palavras carinhosas confirmadas pelas nossas acções, se Lhe
pedirmos tudo, confiados na Sua omnipotência e na Sua misericórdia?
Só
por o filho voltar a Ele, depois de o atraiçoar, prepara um banquete. Que nos
concederá, a nós, que procurámos ficar sempre ao Seu lado?
Longe
da nossa conduta, portanto, a lembrança das ofensas que nos tenham feito, das
humilhações que tenhamos padecido - por mais injustas, grosseiras e rudes que
tenham sido - porque é impróprio de um filho de Deus ter um registo preparado
para apresentar depois uma lista de ofensas.
Não
podemos esquecer o exemplo de Cristo.
Não
se muda a nossa fé cristã como quem muda um vestido: pode enfraquecer ou
robustecer-se ou perder-se.
Com
esta vida sobrenatural revigora-se a fé e a alma aterra-se ao considerar a
miserável nudez humana sem o auxílio divino.
E
perdoa e agradece: meu Deus, se contemplo a minha pobre vida não encontro
nenhum motivo de vaidade e menos ainda de soberba; só encontro abundantes
razões para viver sempre humilde e compungido.
Sei
bem que a melhor nobreza é servir.
310
Oração viva
Levantar-me-ei
e percorrerei a cidade: pelas ruas e praças procurarei aquele que amo...
E
não apenas a cidade; correrei o mundo de lés a lés - por todas as nações, por
todos os povos, por carreiros e atalhos - para conquistar a paz da minha alma.
E
descubro-a nas ocupações diárias, que não me servem de estorvo; que são - pelo
contrário - o caminho e a ocasião de amar cada vez mais e de cada vez mais me
unir a Deus.
E
quando a tentação do desânimo, dos contrastes, da luta, da tribulação, de uma
nova noite da alma nos ataca -violenta -, o salmista põe-nos nos lábios e na
inteligência aquelas palavras: estou com Ele no tempo da adversidade.
Jesus,
perante a Tua Cruz, que vale a minha; perante as Tuas feridas, os meus
arranhões?
Perante
o Teu Amor imenso, puro e infinito, que vale o minúsculo fardo que Tu colocaste
sobre os meus ombros?
E
os vossos corações e o meu enchem-se de uma santa avidez, confessando-Lhe - com
obras - que morremos de Amor.
Nasce
uma sede de Deus, uma ânsia de compreender as Suas lágrimas; de ver o Seu
sorriso, o Seu rosto...
Julgo
que o melhor modo de o exprimir é voltar a repetir, com a Escritura: como o
veado deseja a fonte das águas, assim a minha alma te anela, ó meu Deus!
E
a alma avança, metida em Deus, endeusada: o cristão tornou-se um viajante
sedento, que abre a boca às águas da fonte.
311
Com
esta entrega, o zelo apostólico ateia-se, aumenta dia-a-dia - pegando esta
ânsia aos outros - porque o bem é difusivo.
Não
é possível que a nossa pobre natureza, tão perto de Deus, não arda em desejos
de semear no mundo inteiro a alegria e a paz, de regar tudo com as águas
redentoras que brotam do lado aberto de Cristo, de começar e acabar todas as
tarefas por Amor.
Falava
antes de dores, de sofrimentos, de lágrimas.
E
não me contradigo se afirmo que, para um discípulo que procura amorosamente o
Mestre, é muito diferente o sabor das tristezas, das penas, das aflições:
desaparecem imediatamente, quando aceitamos deveras a Vontade de Deus, quando
cumprimos com gosto os Seus desígnios, como filhos fiéis, ainda que os nervos
pareçam rebentar e o suplício pareça insuportável.
(cont)