A
PAZ NA FAMÍLIA
A IMAGEM IDEAL E A IMAGEM
REAL
Muitos, sem nem darem por
isso, fazem dos outros e, concretamente das pessoas da família, como um espelho
de si mesmos. Encaram a mulher, o marido, os filhos, como espelhos em que
gostariam de ver-se refletidos: sempre lhes agradaria contemplar neles os seus
gostos, os seus desejos, os seus sonhos. Os outros só são estimados como
projeção de si mesmos.
É preciso virar cento e
oitenta graus esse espelho, é preciso abrir o coração e fazer o que, com
expressão feliz, Gustavo Corção chamava “a descoberta do outro”.
“O marido, cheio de razões –
escreve esse autor –, não admite que a mulher fale de certo modo, tenha tal
tique ou qual mania. Que a sua maneira de andar, de partir o pão, de atender o
telefone, seja a sua maneira. O confronto diário, entra ano sai ano, é
insuportável para cada cônjuge [...]. Cada um se procura a si mesmo na face que
lhe fica em frente e, nos dias piores, fica desvairado, atormentado,
enlouquecido, como homem que visse no seu espelho uma imagem absurda, diferente
da sua, a fazer gestos disparatados e femininos”.
Nesse clima de auto-procura,
continua a dizer Corção, as pessoas “são coisas de mim mesmo que circulam fora
de mim para melhor me servir. O eu fica no centro de um universo escuro, em
volta estão os corpos tributários: este traz-me o café, aquele a carícia”.
Para quebrar esse
curto-circuito perverso, é necessário fazer a “descoberta do outro”. A
descoberta de que o marido, a mulher, os filhos, são o “outro”, que deve ser
compreendido e amado por si mesmo. A caridade cristã leva, então, a ver nos
outros membros da família o próximo, “esse que amaremos como a nós mesmos
[...]. Vivemos esbarrando no próximo, porque não nos ocorre, na espessura da
nossa escuridão, que ele tenha direito à objetividade, que seja o outro” [i].
Sim. Como custa entender que
o cônjuge, ou o filho, ou a filha, ou os pais, sejam “eles”! No entanto, esse
olhar compreensivo é o primeiro passo do entendimento, da paz, do amor.
Na realidade, qual é a causa
mais profunda das desavenças, das brigas, dos maus humores, dos
desentendimentos familiares? É que temos uma “imagem ideal” da pessoa (o que
desejaríamos que a esposa, o filho, o pai fossem...), mas encontramo-nos a cada
passo com a “imagem real”. Essa imagem real – que é a única que existe –
irrita, decepciona. O choque com a imagem real, que parece arrebentar os sonhos
ideais, azeda e desgasta o dia-a-dia, fere a harmonia familiar, que – rachada
já por tantas incompreensões – pode ficar estilhaçada.
O primeiro passo do amor
misericordioso consiste em procurar entender os outros, sabendo que são outros.
Para isso, antes de mais nada é necessário respeitá-los. Um ser humano é um
mundo que deve ser encarado com um respeito imenso. Deus faz assim connosco,
dá-nos um enorme valor, embora sejamos – como somos – pobres pecadores: para
Ele valemos o preço do sangue de Jesus Cristo.
“Cada criatura humana – diz
um autor espiritual – é um enigma, uma palavra velada.
Todo o trabalho da caridade
paciente consiste em decifrar esses enigmas e em encontrar o seu sentido” [ii].
Entender exige um acto
consciente, um propósito deliberado de compreender. Como dizia um conhecido
orientador familiar, “os amantes são aqueles que se amam; os esposos são
aqueles que se empenham em amar-se” [iii].
Existe esse ato deliberado,
esse empenho, quando alguém diz: “Eu, a partir de hoje, faço o propósito de
esforçar-me seriamente por entender a minha mulher; eu quero entender o meu
filho”.
OS CANAIS DA COMUNICAÇÃO
Se esse propósito for
sincero, quem o fez logo verá que precisa de lutar contra vários defeitos que
lhe dificultam a compreensão. Em primeiro lugar, terá de lutar contra o
preconceito. No lar, os preconceitos podem ser inúmeros. “Já nos conhecemos!” –
dizem uns aos outros; e assim, mal o marido abre a boca, a mulher, sem se dar
ao trabalho de escutá-lo, corta: “Você já vem de novo com a mesma história,
você não muda”; assim que o pai começa a explicar a dificuldade que tem de
aumentar a mesada, logo o filho o interrompe: “Ah, pai, sempre podando”...
Antes de ouvir, já se tem o filme do outro, pronto e revelado, como se as
pessoas fossem clichês que não pudessem mudar.
Como é importante o
“empenho” em entender: “Por que ele ou ela é assim? Como é mesmo por dentro?
Que lhe acontece? Que teme? Que desejaria? O que o faz sofrer?...”
Não se trata de fazer
“análise”. Deus nos livre do marido “analista” da mulher ou vice-versa. Mas
trata-se, sim, de abrir o coração à compreensão. Para isso, é muito necessário
aprender a bela arte de escutar, que nos permite amplificar os canais da
comunicação, do diálogo compreensivo.
Não pratica certamente essa
arte aquele tipo de marido que, chegando a casa com ar cansado, desaba na
poltrona. A mulher está ansiosa por falar-lhe, e ele, abanando a cabeça como
quem faz uma magnânima concessão a um ser inferior, diz-lhe: – “Vai, fala”. Ela
desabafa enquanto ele olha para o infinito, com inexpressividade de peixe. –
“Já acabou?”, pergunta ele e recolhe-se atrás do jornal.
Pelo contrário, pratica a
arte de escutar aquele que deixa falar o outro: escuta-o com atenção até que
termine; evita acusações ou desqualificações; não se serve de expressões do
tipo “já sei, não precisa dizer-me”; toma cuidado com as interpretações
erróneas de palavras, frases, gestos ou atitudes; sabe pedir amavelmente
esclarecimentos; está atento ao assunto da conversa, sem pular abruptamente
para outro; evita expressões cortantes como “Isso não admito”, “Não aguento
esse modo de falar”, “Você não muda”, etc. [iv].
Só o respeito, sem
preconceitos nem precipitações, pode levar a “entender” o outro.
E, quando a compreensão vai crescendo,
deixa-se de dizer: “Ele deveria ser assim”, e passasse a dizer: “Ele é assim;
portanto, o que é que eu devo fazer?”
Então, como diz o Papa, a
nossa misericórdia “reavalia, promove e tira o bem de todas as formas de mal”
(ou seja, dos defeitos, das limitações, das más disposições dos outros). É uma
verdade comprovada que, quando procuramos compreender uma pessoa, facilmente
descobrimos qual é a nossa atitude – a palavra, o silêncio – que mais a poderia
ajudar, que poderia fazer-lhe maior bem. Nisso consiste a bondade de que fala
São Paulo no texto que estamos a comentar [v].
Quando cada membro da família se esforça por entender os outros, todos acabam
“entendendo-se” cada vez mais. Assim garantem a paz.
O CUME DA MISERICÓRDIA
O cume da misericórdia, como
ensina Cristo, é o perdão. Mas, na vida em família, o perdão, muitas vezes é o
cúmulo da dificuldade. Como custa perdoar no lar! E, no entanto, é muito mais
daninho para a paz familiar guardar rancores, curtir ressentimentos e andar com
revides, do que explodir momentaneamente, dando vazão à ira, ao grito e ao
sopapo.
Creio que todos nós
experimentamos um estremecimento quando encaramos de frente duas declarações de
Cristo:
– depois de nos ensinar a
rezar: perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem
ofendido, Jesus acrescenta: Mas, se não perdoardes aos homens, tampouco vosso
Pai vos perdoará (Mt 6, 12.15). Já imaginamos o que seria, para nós, o dia do
Juízo, se Deus nos perdoasse só como nós perdoamos os outros?
– o segundo ensinamento
deixa-nos pensativos e um tanto perturbados. Repetindo de certa forma o
anterior, introduz um novo matiz. Cristo acaba de narrar a parábola do servo
cruel, que tendo sido perdoado de uma grande dívida pelo seu senhor, não perdoa
um companheiro que lhe deve uma insignificância. O senhor do servo castiga-o
severamente e, como moral da parábola, Cristo conclui: Assim vos tratará meu
Pai celeste, se cada um não perdoar a seu irmão de todo o coração (Mt 18, 35).
Há pessoas que parecem ter
no coração um computador com capacidade de muitos gigas, em cuja memória se vão
guardando todas as mágoas, perfeitamente contabilizadas:
“Não se lembrou do meu
aniversário”, “Faz dez anos que não me traz flores nem bombons”, “Ela não
aceitou a minha explicação «verdadeira» sobre os meus atrasos à noite e
acusa-me de infidelidade”, “Quando éramos namorados, no dia tantos de tantos de
mil novecentos e tantos, às dezoito e trinta e cinco horas, na esquina das ruas
tal e qual, ele me ofendeu dizendo xis ou ípsilon”, “Ela passa o dia na casa da
sua mãe, como se não tivesse marido e filhos”, “Ele não quis ir ao casamento do
meu sobrinho, sabendo que magoava toda a minha família”, “Você disse isso
porque meus pais são pobres”, e assim por diante.
Basta que qualquer faísca
provoque uma irritação, basta uma má interpretação, uma crítica, uma zombaria
ou um protesto, para que a pessoa que se sente ofendida “clique” no seu
computador invisível e apareça no vídeo o arquivo dos “agravos”, com uma lista
interminável. Essa enxurrada de reminiscências negativas cai então como um raio
sobre o outro, reacende a fogueira das acusações mútuas e aumenta o círculo
vicioso dos rancores e das recriminações. Adeus à paz! São Paulo sabia bem de
que massa estamos feitos e, por isso, pensando no amor que gera a paz, dizia,
como víamos acima: Suportai-vos uns aos outros e perdoai-vos mutuamente, se um
tiver contra outro motivo de queixa. Como o Senhor vos perdoou, assim perdoai
também vós (Ef 3, 13).
Como são importantes os
pequenos perdões no lar! Esforcemo-nos, pelo menos, por calar-nos: não
retruquemos, não firamos sensibilidades. Façamos um propósito espiritual
altamente recomendável: “Nas discussões, lá em casa, eu faço questão de dizer a
penúltima palavra”. Quem se obstina em dizer a última, inevitavelmente atiça a
chama da discussão.
Mas calar-se não é
carneirismo? Será que tenho que aceitar todas as injustiças e humilhações? Não.
Às vezes, pode-se – e deve-se – cortar energicamente e na hora um despropósito,
mas não há necessidade de cair numa interminável discussão, nem de ficar
remoendo horas e dias. Outras vezes, convirá calar e esperar, e mais tarde,
tentar um diálogo sereno e esclarecedor ou fazer uma correção tranquila; em
outras ocasiões, nada facilitará tanto o arrependimento do outro como
mostrar-lhe – sem humilhá-lo – grandeza de alma. Uma pessoa ofendida que trata
bem, com coração magnânimo, aquele que o ofendeu, é moralmente “superior”, não
pelo orgulho, mas pela bondade. Com isso, desarma o agressor, que pode perceber
a sua tola mesquinhez em contraste com esse amor maior.
(cont)
[i] Gustavo
Corção, A descoberta do outro, Agir, Rio de Janeiro, 1967, págs. 226-228;
[ii] Um
Cartuxo, Silêncio com Deus, Aster, Lisboa, 1956, págs. 141-142;
[iii]
Pedro-Juan
Viladrich, A família “soberana”, em L'Osservatore Romano, 26.08.1994, pág. 5;
[iv] cfr.
a obra do psiquiatra Enrique Rojas, Remedios para el desamor, Ediciones TH,
Madrid, 1990, págs. 228 e segs.;
[v] Sobre
a bondade, cfr. Francisco Faus, O homem bom, Quadrante, São Paulo, 1990.
[vi] Francisco
Faus é licenciado em Direito pela Universidade de Barcelona e Doutor em Direito
Canónico pela Universidade de São Tomás de Aquino de Roma. Ordenado sacerdote
em 1955, reside em São Paulo, onde exerce uma intensa atividade de atenção
espiritual entre estudantes universitários e profissionais. Autor de diversas
obras literárias, algumas delas premiadas, já publicou na coleção Temas
Cristãos, os títulos:
O valor das dificuldades; O homem bom;
Lágrimas de Cristo, lágrimas dos homens; A língua; A paciência; A voz da
consciência.