Leitura espiritual
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A Cidade de Deus |
Vol. 1
LIVRO
IV
CAPÍTULO
II
Assuntos
contidos nos livros segundo e terceiro.
Tínhamos pois prometido que havíamos de opor
certos argumentos aos que atribuem à nossa religião os desastres da República
Romana, e de relembrar (quaisquer que eles fossem e por muito grandes que
fossem, à medida que eles se apresentassem ou tanto quanto fosse necessário) os
males suportados por Roma e pelas províncias dependentes do Império antes da
proibição dos seus sacrifícios — males que eles nos atribuiriam sem dúvida se
já então a nossa religião tivesse sobre eles difundido a sua luz ou se já lhes
tivesse proibido as suas sacrílegas cerimónias.
Parece-me que desenvolvemos suficientemente
estes assuntos no segundo e terceiro livros:
— no segundo, ao tratarmos
dos males morais, que se devem considerar como os únicos verdadeiros males ou,
pelo menos, como os maiores,
— no terceiro, ao tratarmos
dos males ligados ao corpo e às coisas exteriores, únicos que os insensatos
suportam com horror e que também os bons suportam. Aqueles males, não digo que
os aceitam com paciência, mas antes com prazer; e, todavia, estes males é que
os tornam maus.
E bem pouco disse acerca de Roma e do seu
império — e muito menos até César Augusto. Se eu quisesse recordar e exagerar
tais males — não já os males que os homens fazem uns aos outros, tais como as
devastações e as destruições dos guerreiros, mas aqueles que surgem dos
elementos terrenos do próprio mundo (Apuleio faz deles um breve relato numa
passagem do seu livro DE MUNDO [i]. Refere
que todas as coisas terrestres estão sujeitas a mutações, transformações,
destruições: «tremores de terra sem medida» — utilizo as suas palavras —
«abriram o solo e engoliram cidades com as suas populações»;
trombas de água inundaram
regiões inteiras;
antigos continentes
transformaram-se em ilhas pela invasão de estranhas ondas;
outras ilhas, devido ao
recuo do mar, tomaram-se acessíveis a pé enxuto;
ventanias e procelas
arrasaram cidades;
fogo caído das nuvens
abrasou e consumiu regiões do Oriente;
no Ocidente, trombas de água
e inundações causaram idênticas devastações. Assim, certo dia o Etna esvaziou a
sua cratera e rios de fogo precipitaram-se, como um incêndio vindo do céu, do
cume ao longo das encostas, como uma torrente de chamas) — se eu quisesse
recolher, de onde pudesse, estes factos e outros semelhantes que a história
refere, quando é que eu acabaria? E estas calamidades aconteceram nesses tempos
em que o nome de Cristo não tinha reprimido qualquer dessas fúteis práticas,
perniciosas à verdadeira salvação.
Também tinha prometido mostrar de que
qualidade eram os hábitos morais dos Romanos, e por que razão o verdadeiro
Deus, em cujo poder estão todos os reinos, se dignou ajudá-los a estender o seu
império, e como aqueles, que consideram deuses, em nada os auxiliaram, mas
antes inúmeros danos lhes têm causado com disfarces e enganos. Parece-me que
agora devo, portanto, falar (e mais demoradamente) do incremento do Império
Romano. De facto, acerca da nociva falácia dos demónios que eles adoram como
deuses, já se disse, e não pouco, principalmente no livro segundo, quantos
males introduziram nos seus costumes. No decurso dos três livros findos,
assinalámos, quando nos pareceu oportuno, quantas consolações, mesmo nas
desgraças da guerra, graças ao nome de Cristo, a quem os bárbaros testemunharam
tanta honra, ao contrário dos costumes de guerra, Deus carreou para os bons e
para os maus,
Ele que fez nascer o sol
sobre os bons e sobre os maus e chover sobre os justos e os injustos [ii].
CAPÍTULO
III
Se
a dilatação do Império, que só por guerras se conseguiu, se deve considerar um
dos bens dos sábios e dos felizes.
Vejamos então agora o que valem as suas
razões para se atreverem a atribuir aos deuses tamanha extensão e duração do
Império Romano, e afirmarem que se comportaram honestamente, venerando-os com
jogos torpes representados por torpes comediantes.
Mas, antes, quereria averiguar brevemente se
é razoável e sensato querer gabar-se da extensão e grandeza do Império — quando
se não pode demonstrar a felicidade de homens sempre mergulhados em guerras, em
calamidades, no sangue do concidadão ou do inimigo (mas sempre sangue humano) e
sob tenebroso terror e cruenta cupidez. Essa «felicidade» brilhante como o
vidro e como ele frágil, vive-se no terrível receio de que de repente se
estilhace.
Para mais à-vontade sobre isto fazermos um
juízo, não nos desvaneçamos com vãs jactâncias, nem enfraqueçamos a força do
pensamento com palavras altissonantes como «povos», «reinos», «províncias».
Imaginemos dois homens (porque cada homem, tal como uma letra na frase, é um
elemento da cidade e do reino, por maior que seja a extensão do seu território)
— pensemos que, destes dois homens, um é pobre ou antes de classe média, e o
outro muito rico. O rico é atormentado de temores, consumido de desgostos, arde
em cobiça, nunca seguro, sempre inquieto, ofegante em perpétuos conflitos de
inimizades, aumentando sem dúvida o seu património sem limite à custa destas
misérias, mas àqueles aumentos juntando também amaríssimos cuidados.
O de condição média, porém, está satisfeito
com o seu pequeno e apertado património familiar, é dos seus muito querido,
goza da mais doce paz com os parentes, vizinhos e amigos, é piedosamente religioso
e dotado de grande afabilidade, tem o corpo sadio, na vida parco, casto nos
costumes, sereno de consciência. Não sei se haverá alguém tão louco que duvide
qual deverá preferir.
Ora, como nestes dois homens, assim é a regra
da equidade a seguir em duas famílias, em dois povos, em dois reinos. Aplicando
como deve ser e com a condição de rectificar o nosso pensamento, veremos
facilmente onde estão as aparências e onde está a felicidade. É por isso que,
se o verdadeiro Deus for adorado e for servido com verdadeiros sacrifícios e
costumes puros, é útil que os bons estendam até muito longe e por muito tempo o
seu poder, e isto não tanto por eles próprios mas por aqueles que eles governam.
Porque, quanto a eles próprios, a sua piedade, a sua justiça, que são grandes
dons de Deus, bastam-lhes para a verdadeira felicidade: a de viverem bem nesta
vida e obterem depois a vida eterna. Nesta Terra, portanto, o reino dos bons é
um benefício não tanto para eles próprios como para a humanidade. Porém, o
reino dos maus é-lhes funesto principalmente a eles, pois arruínam as almas com
a maior facilidade de cometerem crimes. Mas, àqueles que lhes estão submetidos,
nada mais é prejudicial do que a iniquidade própria. Efectivamente, os
sofrimentos que aos justos advêm dos senhores injustos não são o castigo de uma
falta, mas a provação da virtude. Por conseguinte, o bom, mesmo que reduzido à
escravidão, é livre; ao passo que o mau, mesmo que seja rei, é escravo — não de
um homem mas, o que é mais grave, de tantos senhores quantos os vícios. A estes
vícios se refere a Sagrada Escritura quando diz:
Quando alguém se deixa
vencer por alguma coisa, toma-se dela escavo [iii].
CAPÍTULO
IV
Os
reinos sem justiça assemelham-se a uma quadrilha de ladrões.
Afastada a justiça, que são, na verdade, os
reinos senão grandes quadrilhas de ladrões? Que é que são, na verdade, as
quadrilhas de ladrões senão pequenos reinos? Estas são bandos de gente que se
submete ao comando de um chefe, que se vincula por um pacto social e reparte a
presa segundo a lei por ela aceite. Se este mal for engrossando pela afluência
de numerosos homens perdidos, a ponto de ocuparem territórios, constituírem
sedes, ocuparem cidades e subjugarem povos arroga-se então abertamente o título
de reino, título que lhe confere aos olhos de todos, não a renúncia à cupidez,
mas a garantia da impunidade. Foi o que com finura e verdade respondeu a
Alexandre Magno certo pirata que tinha sido aprisionado. De facto, quando o rei
perguntou ao homem que lhe parecia isso de infestar os mares, respondeu ele com
franca audácia: «O mesmo que a ti parece isso de infestar todo o mundo; mas a
mim, porque o faço com um pequeno navio, chamam-me ladrão; e a ti porque o fazes
com uma grande armada, chamam-te imperador».
CAPÍTULO
V
Os
gladiadores fugitivos cujo poderio se assemelhou à dignidade régia.
Não me detenho a averiguar que tipo de gente
congregou Rómulo. Muito fez por eles quando os admitiu na comunidade da cidade,
pois desta maneira afastou-os daquela vida, impediu-os de pensarem nas devidas
penas, cujo receio os arrastava para crimes ainda mais graves, e levou-os a que
doravante se tomassem mais pacíficos na vida social.
Pois digo-vos que, quando o Império Romano já
era grande pelo número de povos subjugados e temível para os demais, sofreu
amargamente, teve grandes receios e não conseguiu senão à custa de grandes
esforços evitar um ingente desastre, quando pouquíssimos gladiadores, fugidos
da sua escola de exercícios na Campânia, formaram um grande exército, nomearam
três chefes e devastaram cruelmente grande parte da Itália. Dirão: que Deus é
que os terá ajudado de forma a chegarem, de um pequeno e desprezível bando de
ladrões, a um poder capaz de meter medo às forças e fortalezas romanas tão
imponentes? Teremos que lhes negar o auxílio divino porque duraram pouco tempo?
Como se, na verdade, a vida de qualquer homem fosse longa! Deste modo, os
deuses a ninguém ajudariam a reinar, pois que cedo cada um morrerá — nem
poderia ser tomado como um benefício o que em cada homem, e, portanto, em
todos, em pouco tempo se desvanece como fumo. Que importa, de facto, aos que
veneraram os deuses no tempo de Rómulo e que morreram há muito tempo, que o
Império Romano tanto se tenha dila-tado depois da sua morte, quando já
enfrentam as suas causas nos infernos? Se são boas ou más, isso já não importa
ao caso presente. O mesmo é de pensar de todos aqueles que passaram a correr
através do próprio Império (mesmo que a sua duração se estenda por várias
épocas, dado o desaparecimento e a sucessão dos mortais), transportando o fardo
dos seus actos durante a curta vida. Mas, se mesmo as vantagens desses tempos
efémeros se devem atribuir à ajuda dos deuses — em pouco não foram ajudados os
gladiadores que quebraram os grilhões da condição servil, que fugiram, que
escaparam, que se agruparam num enorme e fortíssimo exército, e que, obedecendo
às directrizes e ordens dos seus reis, fizeram trem er a grandeza romana e,
depois de se terem mantido invictos perante vários generais romanos, se
apoderaram de muitos despojos, conseguiram inúmeras vitórias, deram satisfação
aos prazeres por que ansiavam e fizeram tudo o que a paixão lhes sugeria. Por
fim, até serem vencidos — o que mui dificilmente aconteceu — viveram gloriosos
como reis. Mas passemos a assuntos mais importantes.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i]
Acerca
do Mundo. Tem-se hoje quase como ponto assente que o De Mundo é uma adaptação
do tratado do pseudo-Aristóteles.