11/08/2014

S. Pedro e S. Paulo, apóstolos

Ânimo! Tu... podes. – Vês o que fez a graça de Deus com aquele Pedro dorminhoco negador e cobarde...; com aquele Paulo perseguidor, odiento e pertinaz? (Caminho, 483)

Pedro diz-Lhe: "Senhor, Tu lavares-me os pés, a mim?!". Responde Jesus: "O que Eu faço, não o compreendes agora; entendê-lo-ás depois". Insiste Pedro: "Tu nunca me lavarás os pés!". Replicou Jesus: "Se Eu não te lavar, não terás parte coMigo". Simão Pedro rende-se: "Senhor, não só os pés, mas também as mãos e a cabeça!".

Ao chamamento a uma entrega total, completa, sem vacilações, muitas vezes opomos uma falsa modéstia como a de Pedro... Oxalá fôssemos também homens de coração, como o Apóstolo! Pedro não admite que ninguém ame Jesus mais do que ele. Esse amor leva-o a reagir assim: – Aqui estou! Lava-me as mãos, a cabeça, os pés! Purifica-me de todo, que eu quero entregar-me a Ti sem reservas! (Sulco, 266)


"Pesa sobre mim a solicitude por todas as igrejas", escrevia S. Paulo; e este suspiro do Apóstolo recorda a todos os cristãos – também a ti! – a responsabilidade de pôr aos pés da Esposa de Jesus Cristo, da Igreja Santa, o que somos e o que podemos, amando-a muito fielmente, mesmo à custa da bens, da honra e da vida. (Forja, 584)

Temas para meditar 202



Santa Missa

O Santo Sacrifício da Missa está gravado no que de mais profundo tem a vida de cada um dos homens: a vida do pai, da mãe, da criança, do ancião, do rapaz e da rapariga, do professor e do estudante, do homem culto e do homem simples, da religiosa e do sacerdote. De cada um sem excepção. Eis aqui que a vida do homem se enxerta, mediante a Eucaristia, no mistério do Deus vivo. 

(são joão Paulo II, Homília no fecho do XX Congresso Eucarístico Nacional de Itália, 1983.05.23)

Tratado da lei 81

Questão 106: Da lei do Evangelho, chamada nova, em si mesma considerada.

Art. 3 — Se a lei nova devia ter sido dada desde o princípio do mundo.

[Supra, q. 96, a. 5, ad 2].

O Terceiro discute-se assim. — Parece que a lei nova devia ter sido dada desde o princípio do mundo.

1. — Pois, não há para com Deus acepção de pessoas, como diz a Escritura (Rm 2, 11). Ora, todos os homens pecaram e necessitam da glória de Deus, segundo o Apóstolo (Rm 3, 23). Logo, a lei do Evangelho devia ter sido dada desde o princípio do mundo, para que socorresse a todos.

2. Demais. — Tanto em lugares como em tempos diversos os homens são diversos. Ora, Deus, que quer que todos os homens se salvem, mandou fosse o Evangelho pregado em todos os lugares, como está claro na Escritura (1 Tm 2, 4). Logo, a lei do Evangelho devia ter existido em todos os tempos, e portanto, dada desde o princípio do mundo.

3. Demais. — A salvação espiritual, sendo eterna, é mais necessária ao homem que a saúde corpórea, que é temporal. Ora, Deus desde o princípio do mundo, providenciou sobre o necessário à saúde do corpo submetendo ao homem todos os seres, por causa dele criados, como se lê na Escritura (Gn 1, 26-29). Logo, também a lei nova necessária por excelência à salvação espiritual, devia ter sido dada aos homens desde o princípio do mundo.

Mas, em contrário, diz o Apóstolo (1 Cor 15, 46): Não primeiro o que é espiritual, senão o que é animal. Ora, a lei nova é por excelência espiritual. Logo, não devia ter sido dada desde o princípio do mundo.

Pode-se dar tríplice razão de não ter sido a lei nova dada desde o princípio do mundo. — A primeira é que, como já dissemos (a. 1), a lei nova consiste principalmente na graça do Espírito Santo, que não devia ser dada abundantemente, antes de ter sido o género humano livrado do pecado, depois de consumada a redenção de Cristo. Por isso, diz a Escritura (Jo 7, 39): Ainda o Espírito Santo não fora dado, por não ter sido ainda glorificado Jesus. E esta razão o Apóstolo a assinala manifestamente, quando acrescenta, depois de ter tratado da lei do Espírito Santo (Rm 8, 2 ss): Enviando Deus a seu filho em semelhança de carne de pecado, ainda do pecado condenou ao pecado na carne, para que a justificação da lei se cumprisse em nós.

A segunda razão pode ser tirada da perfeição da lei nova. Pois nada alcança imediatamente, desde a origem, um estado perfeito; se não depois de uma certa ordem sucessiva no tempo. Assim, primeiro somos crianças, e depois homem. E esta razão o Apóstolo a assinala, quando diz (Gl 3, 24-25): A lei nos serviu de pedagogo, que nos conduziu a Cristo, para sermos justificados pela fé; mas, depois que veio a fé, já não estamos debaixo do pedagogo.

A terceira se funda em ser a lei nova a lei da graça. Donde, era primeiro necessário fosse o homem abandonado a si mesmo, no regime da lei antiga, para que, caindo no pecado e conhecendo a sua fraqueza, reconhecesse a necessidade da graça. E nesta razão toca o Apóstolo, quando diz (Rm 5, 20): Sobreveio a lei para que abundasse o pecado, mas onde abundou o pecado, superabundou a graça.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — O género humano mereceu, por causa do seu primeiro pai, ser privado do auxílio da graça. E assim, este não é dado a uns, por justiça, e o é a outros, por graça, como diz Agostinho. Donde, Deus não faz acepção de pessoas, por não ter desde o princípio do mundo proposto a todos a lei da graça, que devia ser proposta na ordem devida.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A diversidade dos lugares não faz variar a diversidade dos estados do género humano, que varia conforme a sucessão dos tempos. Por isso, a lei nova é proposta para todos os lugares, mas não, para todos os tempos. Embora em todos existissem certos homens pertencentes ao Novo Testamento, como já dissemos (a. 1, ad 3).

RESPOSTA À TERCEIRA. — O que respeita à saúde do corpo serve ao homem, em virtude da natureza, que não é destruída pelo pecado. Ao passo que o atinente à saúde espiritual se ordena para a graça, que se perde pelo pecado. Portanto, os casos não são idênticos.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


Evang.; Coment.; Leit. Esp. (Magistério - Ratzinguer)

Tempo comum XIX Semana

Evangelho: Mt 17, 22-27

22 Enquanto andavam pela Galileia, Jesus disse-lhes: «O Filho do Homem será entregue nas mãos dos homens, 23 eles Lhe darão a morte, e ressuscitará ao terceiro dia». Eles entristeceram-se em extremo. 24 Quando entraram em Cafarnaum, chegaram-se a Pedro os que recebiam a didracma, e disseram-lhe: «Vosso Mestre não paga a didracma?». 25 Ele respondeu-lhes: «Sim». Quando Pedro entrou em casa, Jesus adiantou-Se, dizendo: «Que te parece, Simão? De quem recebem os reis da terra o tributo ou o imposto? De seus filhos, ou dos estranhos?». 26 Ele respondeu: «Dos estranhos». Disse-lhe Jesus: «Logo os filhos estão isentos. 27 Todavia, para que não os escandalizemos, vai ao mar e lança o anzol, e o primeiro peixe que vier, toma-o e, abrindo-lhe a boca, acharás dentro um estáter. Toma-o, e dá-lho por Mim e por ti»

Comentário:

A um espírito “retorcido” alegraria, talvez, que pagar impostos desta forma é fácil!
A verdade é que quem assim pensa não estaria disposto a pagá-los mesmo que tivesse a possibilidade de fazer como Cristo.
Porque, o que interessa verdadeiramente, á a justiça e, esta, fica ferida se não se cumpre uma obrigação.
Note-se que, nem a alegação de que o imposto pode ser injusto iliba do seu pagamento. Tal como aqui se constata, Jesus Cristo paga um imposto que, na verdade, não se Lhe aplica.

(ama, comentário sobre Mt 17, 22-27, 2013.08.13)

Leitura espiritual



Magistério

cardeal joseph ratzinger

Algumas perguntas pessoais

…/3


Moral cristã versus originalidade pessoal.

Antes, as pessoas queriam simplesmente ser alguém "como se deve" e ter assegurada, até certo ponto, a sua existência.

Parece-me indiscutível que, nesta nossa sociedade tão complexa, a vida se tornou muito mais complexa ainda, se é que isto é possível. No entanto, não devemos lançar tudo pela borda fora e considerar que quase já não existem constantes. Pensemos, por exemplo, nos dez Mandamentos, que, apesar de se dirigirem sempre de novo a cada geração e a cada indivíduo, contêm uma mensagem clara e imutável.

Seria preciso repetir que o cristianismo não se desvanece no indeterminado, perdendo a sua expressividade. O cristianismo tem um perfil que, por um lado, é suficientemente amplo para permitir o desenvolvimento da originalidade, mas por outro também determina as normas que possibilitam esse desenvolvimento. Num mundo tão intrincado e complexo [como o nosso], é preciso apostar mais nas grandes constantes do discurso divino, para continuar a encontrar a diretriz fundamental. Porque, quando não se actua assim, a criatividade niilista do indivíduo muito em breve se converte num mimetismo que se submete às normas gerais e só age segundo os ditames da época e das suas possibilidades.

Abandonar a mensagem específica da fé não nos torna mais originais, e sim cada vez mais padronizados - e padronizados pelo nível mais baixo - segundo as modas da época.

Podemos perceber esta tendência para a uniformidade na vida moderna. Por isso, na minha opinião, hoje é mais importante que nunca ver que as constantes da Revelação e da fé são marcos do caminho que me fornecem os pontos de apoio para chegar mais alto, e ao mesmo tempo me trazem luz para desenvolver o meu destino completamente pessoal [i]24.

A moral, dom recíproco de Deus e do homem.

A teologia moral cristã nunca é simplesmente ética da lei; mas também supera o âmbito de uma ética das virtudes. A teologia moral cristã é ética do diálogo, porque o agir moral do homem se desenvolve a partir do encontro com Deus; portanto, nunca é apenas um agir próprio, autárquico e autónomo, puro desempenho humano, mas resposta ao dom de amor, e assim um ver-se inserido na dinâmica do amor, do próprio Deus, o único que realmente liberta o homem e o eleva ao seu verdadeiro nível. O agir moral, por conseguinte, nunca é apenas uma realização própria, e também nunca é apenas algo "inoculado" de fora. O verdadeiro agir moral é totalmente dom e é, ao mesmo tempo, um agir totalmente nosso: precisamente aquilo que lhe é próprio se manifesta apenas no dom de amor, e, por outro lado, o dom não despoja o homem de si mesmo, mas o reconduz a si mesmo [ii].


A consciência e a vida correcta


Entre as preocupações do cardeal Ratzinger e agora Papa Bento XVI, possivelmente a maior é a do relativismo intelectual e moral. O núcleo desse tema gira em torno da questão da consciência e da sua necessária formação segundo a verdade, isto é, segundo valores absolutos e universalmente válidos; por isso, dedicamos aqui um espaço maior a ela.

Consciência.

A unidade do homem tem um órgão: a consciência. Foi uma ousadia de São Paulo afirmar que todos os homens têm a capacidade de escutar a sua consciência, separando assim a questão da salvação da questão do conhecimento e da observância da Torah, e situando-a no terreno da comum exigência interior em que o Deus único fala e diz a cada um o que é verdadeiramente essencial na Lei: Quando os gentios, que não têm lei, cumprem naturalmente as prescrições da lei, sem ter lei são lei para si mesmos, demonstrando que têm a realidade dessa lei escrita no seu coração, segundo o testemunho da sua consciência... (Rom 2, 14 e segs.). Paulo não diz: "Se os gentios se mantiverem firmes na sua religião, isso é bom diante do juízo de Deus". Pelo contrário, ele condena grande parte das práticas religiosas do seu tempo. Remete para outra fonte, para aquela que todos trazem escrita no coração, para o único bem do único Deus.

Neste ponto enfrentam-se hoje dois conceitos contrários de consciência, que na maioria das vezes simplesmente se intrometem um no outro. Para Paulo, a consciência é o órgão da transparência do único Deus em todos os homens, que são um só homem. Mas, actualmente, a consciência aparece como expressão do carácter absoluto do sujeito, acima do qual não poderia haver, no campo moral, nenhuma instância superior. O bem como tal não seria cognoscível. O Deus único não seria cognoscível. No que diz respeito à moral e à religião, a última instância seria o sujeito [...].

Assim, o conceito moderno de consciência equivale à canonização do relativismo, da impossibilidade de haver normas morais e religiosas comuns, ao passo que, pelo contrário, para Paulo e para a tradição cristã, a consciência sempre foi a garantia da unidade do ser humano e da cognoscibilidade de Deus, e portanto da obrigatoriedade comum de um mesmo e único bem. O facto de em todos os tempos ter havido e haver santos pagãos baseia-se em que em todos os lugares e em todos os tempos – embora muitas vezes com grande esforço e apenas parcialmente - a voz do coração era perceptível; a To-rah de Deus se nos fazia perceptível como obrigação dentro de nós mesmos, no nosso ser criatural, e desse modo tornava possível que superássemos a mera subjetividade na relação de uns com os outros e na relação com Deus. E isto é a salvação [iii].

Consciência e verdade.

A vida e a obra do Cardeal Newman poderiam ser realmente definidas como um extraordinário e extenso comentário ao problema da consciência [...]. Quem não se recorda [...] da famosa frase acerca da consciência na carta que dirigiu ao duque de Norfolk? Diz assim: "Se tivesse de brindar pela religião, o que é altamente improvável, fá-lo-ia pelo Papa. Mas em primeiro lugar pela consciência. Só depois o faria pelo Papa" [iv]. Newman queria que a sua resposta fosse uma adesão clara ao Papado em face da contestação de Gladstone, mas também queria que fosse, em face das formas erróneas do "ultramontanismo", uma interpretação do  Papado que só pode ser concebido adequadamente quando visto de forma conjunta com o primado da consciência, não como oposto a ela, mas como algo que a funda e lhe dá garantia. É difícil para o homem moderno, que pensa sempre na subjetividade como oposta à autoridade, entender este problema. Para ele, a consciência está do lado da subjectividade e é expressão da liberdade do sujeito, enquanto a autoridade aparece como urna limitação, e até como uma ameaça e negação, para essa liberdade. É preciso aprofundar mais em tudo isto para entender de novo a perspectiva em que essa oposição não é válida.

O conceito central de que Newman se serve para unir autoridade e subjetividade é o da verdade. Não tenho reparos em dizer que a verdade é a ideia central da sua luta espiritual. A consciência ocupa para ele um lugar central porque a verdade está no centro. Dito de outra maneira: em Newman, a importância do conceito de consciência está unida à excelência do conceito de verdade [...]. A presença constante da ideia de consciência não significa para ele a defesa, no século XIX e em contraposição à neo-escolástica "objectivista", de uma filosofia ou uma teologia da subjetividade. O sujeito merece, a seu ver, uma atenção como não havia despertado talvez desde Santo Agostinho. Mas é uma atenção na linha de Santo Agostinho, não na da filosofia subjectivista da modernidade. Ao ser elevado ao cardinalato, Newman confessou que toda a sua vida tinha sido uma luta contra o liberalismo. Poderíamos acrescentar: e também contra o subjetivismo cristão tal como o encontrou no movimento evangélico do seu tempo, e que constituiu o primeiro degrau de um caminho de conversão que
duraria toda a sua vida.

A consciência não significa para Newman a norma do sujeito em oposição às exigências da autoridade num mundo sem verdade [...], mas, antes, a presença clara e imperiosa da voz da verdade no sujeito. A consciência é a anulação da mera subjetividade no ponto em que se tangenciam a intimidade do homem e a verdade de Deus. São significativos os versos que escreveu na Sicília em 1833: "Eu amava o meu próprio caminho. Agora Te peço, ilumina-me para Te seguir" [v]. A conversão ao catolicismo não foi para Newman uma questão de gosto pessoal ou uma necessidade anímica subjetiva. Já em 1844, no umbral de sua conversão, referia-se ao tema com estas palavras: "Ninguém pode ter uma opinião mais desfavorável que eu sobre a situação actual dos católicos" [vi].

Mas importava-lhe mais obedecer à verdade, mesmo contra o seu próprio sentir, que seguir o seu gosto, os vínculos de amizade e os caminhos trilhados.

Parece-me muito significativo que ele tenha sublinhado a prioridade da verdade sobre o bem na hierarquia das virtudes [...]. Homem de consciência é aquele que não compra tolerância, bem-estar, êxito, reputação e aprovação públicas renunciando à verdade.

Nisso Newman coincide com outra grande testemunha britânica da consciência, com Thomas More, para quem a consciência nunca foi expressão de uma vontade obstinada nem de um heroísmo caprichoso. Thomas More contava-se a si mesmo entre os mártires timoratos, e dizia que só depois de muitos atrasos e inumeráveis questionamentos tinha conseguido levar a sua alma a obedecer à consciência, a essa obediência à verdade que deve estar acima das instâncias sociais e dos gostos pessoais. Aparecem então dois critérios para distinguir a presença de uma verdadeira voz da consciência: que não coincida com os desejos e gostos próprios, nem, por outro lado, com o que é mais benéfico para a sociedade, com o consenso do grupo ou as exigências do poder político ou social.

Chegados a este ponto, parece natural lançar um olhar sobre os problemas da nossa época. O indivíduo não deve trair a verdade reconhecida pela sua consciência para comprar o progresso e o bem-estar. A sua humanidade não o permite. Mas aqui tocamos o ponto verdadeiramente crítico da modernidade: o conceito de verdade foi praticamente abandonado e substituído pelo de progresso. O progresso "é" a verdade.

Mas, com essa aparente elevação, esse conceito de progresso desmente-se e anula-se a si próprio, pois quando não há uma direção, o mesmo movimento tanto pode ser progressivo como retrógrado. É assim que a teoria da relatividade formulada por Einstein vê o cosmos físico. Mas penso que também descreve com acerto a situação do cosmos espiritual do nosso tempo. A teoria da relatividade estabelece que não há nenhum sistema de referência fixo; cabe a nós considerar um ponto qualquer como referência e a partir dele tentar medir a totalidade, pois só assim poderemos obter resultados; da mesma maneira que escolhemos um, poderíamos ter escolhido qualquer outro.

O que se diz a respeito do cosmos físico reflecte também a segunda inversão "copernicana" que se deu na nossa relação fundamental com a realidade: a verdade, o absoluto, o ponto de referência do pensamento deixou de ser evidente. Por isso, já não há - tampouco do ponto de vista espiritual - nem Norte nem Sul. Não há direção num mundo sem pontos de referência fixos. O que consideramos direção não assenta numa medida verdadeira, mas numa decisão nossa e, em última análise, no ponto de vista da nossa utilidade pessoal. Em semelhante contexto "relativista", a ética teleológica ou consequencialista converte-se numa ética niilista, mesmo que não o percebamos. Numa cosmovisão como essa, aquilo a que chamamos "consciência" é, considerada em profundidade, apenas um modo de dissimular que não há autêntica consciência, isto é, unidade de conhecimento e verdade. Cada um cria os seus próprios critérios, e, nessa situação de relatividade geral, ninguém pode ajudar os outros, e menos ainda dar-lhes instruções.

Agora se compreende a enorme radicalidade do debate ético actual, cujo centro é a consciência. Penso que o paralelismo mais aproximado na história das ideias é a controvérsia entre Sócrates e Platão, por um lado, e os sofistas, por outro, na qual se confrontam duas atitudes fundamentais: a confiança na capacidade humana de atingir a verdade e uma visão do mundo na qual o homem cria os seus próprios critérios de verdade.

O motivo pelo qual Sócrates, um pagão, se converteu em certo sentido num profeta de Jesus Cristo é, a meu ver, essa questão primordial: a sua disposição de acolher a verdade foi o que permitiu ao modo de fazer filosofia inspirado na sua figura o privilégio de ser de algum modo um elemento da História Sagrada, e o que fez dele um recipiente idóneo do Logos cristão, cuja finalidade é a libertação pela verdade e para a verdade. Se separarmos a luta de Sócrates das contingências históricas do seu momento, perceberemos rapidamente com que intensidade esse embate está presente - com outros argumentos e nomes - nos assuntos da polémica do presente. [...]

Tal como ocorria com os sofistas, em muitos lugares já não se pergunta o que um homem qualquer pensa. Basta-nos dispor de uma ideia sobre o seu modo de pensar para incluí-lo na categoria formal conveniente: conservador, reacionário, fundamentalista, progressista ou revolucionário. A inclusão num esquema formal torna desnecessária qualquer explicação do seu pensamento. Algo parecido, mas reforçado, se observa na arte. O que expressa é indiferente: pode glorificar Deus ou o diabo. O único critério é que seja formalmente conhecido.

Com isto, chegamos ao verdadeiro núcleo do nosso assunto. Quando os conteúdos não contam e a pura fraseologia assume o comando, o poder converte-se em critério supremo, isto é, transforma-se em categoria - revolucionária ou reacionária - dona de tudo. Esta é a forma perversa de semelhança com Deus de que fala o relato do pecado original. O caminho do mero poder e da pura força é a imitação de um ídolo, não a realização da imagem de Deus. O traço essencial do homem enquanto homem não é perguntar pelo poder, mas pelo dever, e abrir-se à voz da verdade e suas exigências.

Esta é, a meu ver, a trama definitiva da luta de Sócrates. Também é o argumento mais profundo do testemunho dos mártires: os mártires manifestam a capacidade de verdade do homem como limite de qualquer poder e como garantia da sua semelhança com Deus. É assim que os mártires se constituem nas grandes testemunhas da consciência, da capacidade outorgada ao homem de perceber o dever acima do poder e de começar o progresso verdadeiro e a ascensão efectiva [vii].

A consciência "infalível".

A consciência é apresentada [hoje] como o baluarte da liberdade em face das constrições da existência causadas pela autoridade. [...] Deste modo, a moral da consciência e a moral da autoridade parecem enfrentar-se como duas morais contrapostas em luta recíproca. A liberdade do cristão ficaria a salvo graças ao postulado original da tradição moral: a consciência é a norma suprema que o homem deve seguir sempre, mesmo quando vai contra a autoridade. Quando a autoridade, neste caso o Magistério da Igreja, fala sobre problemas de moral, estará apenas apresentando um subsídio para a consciência poder decidir, e esta sempre reservará para si mesma a última palavra [...]. Esta concepção da consciência como última instância é recolhida por alguns autores na fórmula "a consciência é infalível". [...]

Por um lado, é inquestionável que devemos sempre seguir o veredicto evidente da consciência, ou pelo menos não o infringir com as nossas ações. Mas é muito diferente sustentar que o ditame da consciência, ou aquilo que consideramos como tal, sempre está certo, sempre é infalível. Semelhante afirmação seria o mesmo que dizer que não há verdade alguma, ao menos em matéria de moral e religião, isto é, justamente no âmbito que é o fundamento constitutivo da nossa existência. Como os juízos da consciência se contradizem uns aos outros, só haveria uma "verdade do sujeito" [...].

A pergunta pela consciência transporta-nos, na prática, para o domínio essencial do problema moral e para a interrogação acerca da existência do homem. Não gostaria de pôr estes problemas em forma de considerações estritamente conceptuais e, por conseguinte, completamente abstractas, mas preferiria avançar de modo narrativo.

Primeiramente, contarei a história da minha relação pessoal com este problema. Ele pôs-se pela primeira vez com toda a sua urgência no começo da minha actividade académica.

Um colega meu mais velho [...] expressou durante uma disputa a opinião de que devíamos dar graças a Deus por conceder a muitos homens a possibilidade de se fazerem não-crentes seguindo a sua consciência; se lhes abríssemos os olhos e eles se fizessem crentes, não seriam capazes de suportar neste nosso mundo o peso da fé e das suas obrigações morais. Mas, como todos seguiram de boa-fé um caminho diferente, poderiam alcançar a salvação.

(cont.)

(Revisão da versão portuguesa por ama)




[i] La fe, de tejas abajo
[ii] Actualidad doctrinal del Catecismo de Ia lglesia católica, em revista Humanitas, Santiago de Chile, 2005, n. 36.
[iii] Fe, verdad y cultura. Reflexiones a propósito de Ia Encíclica Fides et ratio. Primeiro Congresso Internacional da Faculdade San Dámaso de Teologia, Madrid, 16.02.2000
[iv] Letter to Norfolk, pág. 261
[v] Do conhecido poema Lead, kindly light
[vi] Correspondence of J.H. Newman with J, Kebk and Others, págs. 351 e 364
[vii] "Se quiseres a paz, respeita a consciência de cada um. Consciência e verdade", em Wahrheit, Werte, Machí. Prufsteine der pluralistischen Gesellschaft, Herder, Friburgo, 1993; trad. esp. Verdad, valores, poder, Piedras de toque de Ia sociedad pluralista, Rialp, Madrid, 2000, págs. 56-64