A
CIDADE DE DEUS 2
Vol. 2
LIVRO XIV
CAPÍTULO XVI
Do mal do libido, cujo
nome, embora convenha a muitos vícios, está, todavia, reservado, em sentido
próprio, aos movimentos da paixão obscena.
Embora haja desejos (libido, pl. libidines) de muitas coisas, todavia,
quando se fala de libido, sem se acrescentar de que coisa é «desejo», pensa-se
quase sempre na excitação das regiões pudendas do corpo. Este desejo apodera-se
não só do corpo todo, exterior e interiormente, mas agita também o homem todo,
unindo e misturando as paixões da alma e as apetências carnais para esta volúpia, a maior de todas entre os
prazeres do corpo; e isto de tal forma que, no momento de chegar à sua
plenitude, como que se aniquila a agudeza e a consciência do pensamento. Qual é
o amigo da sabedoria e das santas alegrias que, praticando a vida conjugal, mas
em conformidade com o conselho do Apóstolo:
Sabendo possuir o seu corpo na santidade e no respeito, não na
paixão do desejo como entre os gentios que não conhecem a Deus,[i]
qual é este amigo da sabedoria que não preferiria, se pudesse, gerar filhos sem
este «libido», de modo que, mesmo na função de os gerar, os órgãos, criados
para essa função, permanecessem submetidos ao espírito, como submetidos ao
espírito estão os outros órgãos nas suas respectivas funções e movidos por um
sinal da vontade e não pelo ardor da volúpia? Mas nem mesmo os que se entregam
a esta volúpia se sentem excitados quando querem, quer na união conjugal quer
nas impurezas da devassidão. Às vezes esta emoção é inoportuna, surge sem ser
solicitada; outras vezes abandona o que arde em desejo: a alma arde em desejo e
o corpo fica gelado. Assim — coisa estranha! — não é só à vontade de gerar que
a paixão se recusa a obedecer, mas à própria paixão de gozar. E embora, na
maior parte das vezes, se oponha ao espírito que a refreia, vezes há em que se
divide contra si própria agitando a alma sem agitar o corpo.
CAPÍTULO XVII
Da nudez que os primeiros homens, após o pecado, consideraram torpe e
vergonhosa.
É com razão que se sente vergonha principalmente desta paixão. E também com
razão que se chamam «vergonhosas» as regiões ou órgãos que esta paixão excita
ou não, por assim dizer, segundo as suas leis e não precisamente como nós
quereríamos. Não fora assim antes do pecado:
Estavam nus e não se sentiam embaraçados.[ii]
Não é que a nudez lhes passasse desapercebida — é que a nudez não era ainda
vergonhosa; é que a paixão ainda não agitava os seus membros sem seu
consentimento e a desobediência da carne de certo modo ainda não prestava
testemunho contra a desobediência do homem para a rebater. Mas não foram
criados cegos como julga um vulgar ignorante. Adão viu os animais; pôs-lhes nomes. E lê-se acerca da mulher:
A mulher viu que o fruto era bom para comer e agradava aos olhos
para ver.[iii]
Os seus olhos estavam, portanto, abertos. Mas não estavam abertos para isso,
isto é, não estavam atentos para conhecerem o que neles cobria a veste da graça
quando ignoravam a resistência dos seus membros à vontade. Uma vez perdida esta
graça, para castigar esta desobediência com pena correspondente, surgiu nos
movimentos do corpo certa impudente novidade que tornou indecente a nudez, os tornou a ela
atentos e os encheu de confusão Foi por isso que, após a evidente transgressão
do mandamento de Deus, foi a este respeito escrito:
Abriram-se os olhos de ambos, apercebendo-se de que estavam nus e
coseram folhas de figueira e fizeram para si umas tangas (campestria).[iv]
«Abriram -se os olhos de ambos», diz-se, não para verem, pois já antes viam,
mas para discernirem entre o bem que tinham perdido e o mal em que tinham
caído. Por isso é que a própria árvore destinada a comunicar-lhes esse
discernimento, se, apesar da proibição, comessem do seu fruto, tomou daí o seu
nome: chamou-se a árvore da ciência do bem e do mal. Realmente, a dolorosa
experiência da doença torna mais sensível o encanto da saúde.
«Aperceberam -se de que estavam nus», isto é, despidos dessa graça que os
impedia de terem vergonha da sua nudez quando neles nenhum a lei de pecado se
opunha ao espírito. Desta forma aprenderam o que felizmente ignorariam se,
crendo em Deus e obedecendo-lhe, não cometessem o que os coagiu a experimentar
os efeitos nocivos da infidelidade e da desobediência. Por isso, confundidos ao
verem a desobediência da carne como testemunho do castigo da sua desobediência,
coseram folhas de figueira e para si fizeram umas campestria, isto é, succintoria
(faixas) com o escrevem certos tradutores. (Campestria é uma palavra
latina cuja origem procede do facto de os jovens cobrirem as regiões pudendas
quando se exercitavam no Campo de Marte. Por isso o povo chamava campestrati
— cobertos com tanga — aos que assim se tapavam). E assim, o que a paixão (libido)
excitava contra vontade em punição da sua própria desobediência, tapava-o
envergonhado odor. Daí que todos os povos, desta estirpe originários, têm tão arreigada tendência para cobrirem as suas vergonhas que alguns bárbaros
nem nos banhos desnudam essas artes do corpo e lavam-se com vestuário próprio.
Nas sombrias solidões da índia alguns homens que filosofam nus (daí o nome de
gimnosofistas) trazem, no entanto, nessas regiões uma cobertura que não usam
nas outras partes.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i] I Tessal., I V, 4 - 5.