LEGENDA MAIOR
Vida de São Francisco de Assis)
SEGUNDA PARTE
CAPITULO
11
Conhecimento
das Escrituras e espírito de profecia
7. Em Sena, havia predito
a um amigo seu algumas coisas que deveriam acontecer-lhe nos seus últimos dias.
Então aquele douto religioso que, como recordamos acima, de tempos em tempos
vinha discutir com ele sobre textos da Escritura, lhe perguntou se ele dissera
realmente aquelas coisas que lhe haviam relatado.
Francisco não se contentou
com reconhecer que as dissera, mas insistiu e predisse a morte daquele que
vinha se preocupar com a dos outros; enfim, para ter mais certeza de sensibilizar
sua alma, revelou-lhe, por um outro milagre, uma inquietação que lhe roía a
consciência, e ele não tivera coragem de confessá-la a ninguém.
Deu-lhe a solução para o
caso e conseguiu mediante os seus conselhos lhe tirar aquele sofrimento da
alma.
Todas essas predições se
realizaram, pois o religioso terminou seus dias exactamente como o servo de Cristo
lhe havia anunciado.
8. Ao tempo que voltou do
ultramar, tendo por companheiro a Frei Leonardo de Assis, aconteceu que
Francisco, extenuado de cansaço, montou alguns instantes sobre um humilde
jumentinho.
Seguia-o o companheiro,
também exausto, e como era fraco de virtude, começou a dizer em seu íntimo: “Os
pais dele e os meus não eram de igual condição, e no entanto ele anda agora a
cavalo e eu, soldado, a pé, conduzo seu jumento”.
Estando nessas reflexões,
apeou-se o santo do animal imediatamente e disse-lhe:
“Tens razão, irmão, não
fica bem que eu vá comodamente montado e tu andes a pé, pois no século foste
muito mais nobre e poderoso do que eu”.
O companheiro ficou atónito,
e corrido de vergonha ao ver descobertos seus mais secretos pensamentos,
prostrou-se banhado em lágrimas aos pés do seráfico Pai, a quem confessou sua
culpa, pedindo humildemente o perdão.
9. Um irmão, muito devoto
e admirador do servo de Deus, vivia remoendo em seu íntimo este pensamento:
será digno da graça do céu aquele a quem o santo concede sua familiaridade e
afecto; e ao contrário, aquele que o santo trata como um estranho se há de
considerá-lo excluído do número dos eleitos.
Atormentado com essa ideia
perturbadora, suspirava para que o servo de Deus lhe concedesse a sua
familiaridade, mas a ninguém revelava o segredo do seu coração.
O Pai piedoso, porém,
chamou-o amavelmente e disse-lhe:
“Que não te perturbe
nenhum pensamento, filho, pois te considero como o mais caro entre todos
aqueles que me são particularmente caros e de boa mente te ofereço minha
familiaridade e minha estima”.
O irmão ficou maravilhado
e mais devoto ainda se tornou desde então. Não só cresceu no amor ao santo,
mas, por obra e graça do Espírito Santo, enriqueceu-se de dons sempre maiores.
Ao tempo em que no monte
Alverne ficou recluso na sua cela, um dos seus companheiros sentia um grande
desejo: de ter algumas palavras ao menos da Sagrada Escritura escritas pelo
próprio punho do santo. Alimentava a convicção de que com esse recurso poderia
eliminar ou ao menos suportar com menor sofrimento a grave tentação que o
atormentava: tentação não dos sentidos, mas do espírito. Perseguido por esse
pensamento, sentia-se oprimido na sua alma, pois, dominado pela vergonha, não
ousava manifestar este seu desejo ao santo. Mas este, embora não lho tivesse
revelado homem algum, soube do que se passava por revelação divina. Por essa
razão mandou ao referido companheiro que lhe trouxesse papel e tinta e, conforme
os seus desejos, escreveu pela sua própria mão no papel alguns louvores ao Senhor
e ao final acrescentou sua bênção:
“Toma para ti este escrito
e guarda-o com cuidado até ao dia da tua morte”.
Logo que recebeu aquele
presente, a tentação desapareceu inteiramente.
Ainda se conserva o
documento, e os milagres que ele realizou testemunham em favor das virtudes de
Francisco.
10. Havia num convento um
irmão que - a julgar pelas aparências - era de uma santidade extraordinária.
Levava uma vida exemplar,
mas totalmente singular. Estava continuamente ocupado a rezar. Guardava um silêncio
tão rigoroso, que chegava mesmo a confessar-se não por palavras mas por sinais.
Aconteceu que o santo Pai certo dia veio ao lugar onde se encontrava esse
religioso para vê-lo e falar a respeito dele com os outros irmãos.
Todos ponderavam e louvavam
a grande virtude desse irmão.
O santo, porém, respondeu-lhes:
“Não queirais, irmãos, elogiar nesse homem aquilo que não passa de ardis de Satanás!
Sabei que na realidade tudo são tentação e embustes do demónio!”
Os irmãos não queriam se
convencer desse facto, pois lhes parecia impossível que a fraude pudesse
disfarçar-se tão bem com as aparências, de santidade. Mas o referido irmão
abandonou a Ordem pouco depois e todos viram a penetração do olhar profundo que
assim havia descoberto o que se passava no fundo daquele coração.
Houve igualmente muitos
irmãos assim ditos de notável santidade cuja queda ele predisse e mais ainda de
pecadores cuja conversão ele previu, demonstrando-se desse modo que havia
chegado a contemplar já aqui o espelho da eterna Luz cuio brilho permitia aos
olhos da sua alma enxergar como se estivessem presentes acontecimentos
distantes no espaço e no tempo.
11. Em outra ocasião
aconteceu que seu vigário celebrava o capítulo no momento em que ele se
encontrava orando em sua cela, fazendo o ofício de intercessor e medianeiro
entre Deus e seus irmãos.
Havia um entre eles, que,
coberto com a capa de injustas pretensões, queria subtrair-se ao rigor da
disciplina regular.
O santo chamou um de seus
companheiros e disse-lhe:
“Irmão, vi o demónio
montado sobre os ombros desse irmão desobediente e apertando-lhe fortemente o
pescoço; cavalgado por um cavaleiro desses, ele sacode o freio da obediência e
não obedece senão às rédeas de seus instintos. Mas eu roguei a Deus por ele e o
demónio fugiu envergonhado.
Vai, pois, dizer-lhe que
submeta de novo o pescoço ao jugo da santa obediência”.
Às palavras do mensageiro, o irmão arrependeu-se
imediatamente e atirou-se aos pés do vigário com toda humildade.
(cont)
São Boaventura
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portuguesa por AMA