Tempo de Natal
Epifania
Evangelho:
Mc 6, 34-44
34 Ao desembarcar, viu Jesus uma grande multidão e teve
compaixão deles, porque eram como ovelhas sem pastor, e começou a ensinar-lhes
muitas coisas. 35 Fazendo-se tarde chegaram-se a Ele os discípulos,
dizendo: «Este lugar é solitário e a hora é já adiantada; 36 despede-os,
a fim de que vão às quintas e povoados próximos e comprem alguma coisa para
comer». 37 Ele respondeu-lhes: «Dai-lhes vós de comer». Eles
disseram: «Iremos, pois, com duzentos denários comprar pão para lhes darmos de
comer?». 38 Jesus perguntou-lhes: «Quantos pães tendes? Ide ver».
Depois de se terem informado, disseram-Lhe: «Temos cinco pães e dois peixes». 39
Então mandou-lhes que os fizessem sentar a todos, em grupos, sobre a relva
verde. 40 E sentaram-se em grupos de cem e de cinquenta. 41
Jesus, tomando os cinco pães e os dois peixes, elevando os olhos ao céu,
pronunciou a bênção, partiu os pães e os deu a Seus discípulos para que os
distribuíssem; igualmente repartiu os dois peixes por todos. 42
Comeram todos e ficaram saciados. 43 E recolheram doze cestos cheios
das sobras dos pães e dos peixes. 44 Os que tinham comido dos pães
eram cinco mil homens.
Comentário:
Pela primeira vez os
discípulos de Jesus parecem tomar publicamente consciência daquilo que o Senhor
lhes tem falado com regularidade: amar o próximo!
Esse amor traduz-se em
coisas concretas como seja, neste caso, preocupação pelo longo tempo passado
sem terem comido e não haver naquele local possibilidade de o fazer.
O Senhor tinha consciência
disso mesmo mas esperou que fossem os Seus seguidores mais próximos a tomar a
iniciativa para daí tirar um bem maior: o extraordinário milagre da
multiplicação dos peixes e do pão.
(ama, comentário sobre Mc 6, 34-44, 12-17,
2015.01.07)
Leitura espiritual
CARTA
ENCÍCLICA
LAUDATO SI’
DO
SANTO PADRE
FRANCISCO
SOBRE
O CUIDADO DA CASA COMUM
CAPÍTULO
III
A RAIZ HUMANA DA CRISE ECOLÓGICA
2.
A globalização do paradigma tecnocrático
109. O paradigma tecnocrático tende a exercer
o seu domínio também sobre a economia e a política.
A economia assume todo o desenvolvimento
tecnológico em função do lucro, sem prestar atenção a eventuais consequências
negativas para o ser humano.
A finança sufoca a economia real.
Não se aprendeu a lição da crise
financeira mundial e, muito lentamente, se aprende a lição do deterioramento
ambiental.
Nalguns círculos, defende-se que a
economia actual e a tecnologia resolverão todos os problemas ambientais, do
mesmo modo que se afirma, com linguagens não académicas, que os problemas da
fome e da miséria no mundo serão resolvidos simplesmente com o crescimento do
mercado.
Não é uma questão de teorias económicas,
que hoje talvez já ninguém se atreva a defender, mas da sua instalação no
desenvolvimento concreto da economia.
Aqueles que não o afirmam em palavras
defendem-no com os factos, quando parece não preocupar-se com o justo nível da
produção, uma melhor distribuição da riqueza, um cuidado responsável do meio
ambiente ou os direitos das gerações futuras.
Com os seus comportamentos, afirmam que é
suficiente o objectivo da maximização dos ganhos.
Mas o mercado, por si mesmo, não garante o
desenvolvimento humano integral nem a inclusão social.[i]
Entretanto temos um «super-desenvolvimento
dissipador e consumista que contrasta, de modo inadmissível, com perduráveis
situações de miséria desumanizadora»,[ii]
mas não se criam, de forma suficientemente rápida, instituições económicas e
programas sociais que permitam aos mais pobres terem regularmente acesso aos
recursos básicos.
Não temos suficiente consciência de quais
sejam as raízes mais profundas dos desequilíbrios actuais: estes têm a ver com
a orientação, os fins, o sentido e o contexto social do crescimento tecnológico
e económico.
110. A especialização própria da
tecnologia comporta grande dificuldade para se conseguir um olhar de conjunto.
A fragmentação do saber realiza a sua
função no momento de se obter aplicações concretas, mas frequentemente leva a
perder o sentido da totalidade, das relações que existem entre as coisas, do
horizonte alargado: um sentido, que se torna irrelevante.
Isto impede de individuar caminhos
adequados para resolver os problemas mais complexos do mundo actual, sobretudo
os do meio ambiente e dos pobres, que não se podem enfrentar a partir duma
única perspectiva nem dum único tipo de interesses.
Uma ciência, que pretenda oferecer
soluções para os grandes problemas, deveria necessariamente ter em conta tudo o
que o conhecimento gerou nas outras áreas do saber, incluindo a filosofia e a
ética social.
Mas este é actualmente um procedimento
difícil de seguir.
Por isso também não se consegue reconhecer
verdadeiros horizontes éticos de referência.
A vida passa a ser uma rendição às
circunstâncias condicionadas pela técnica, entendida como o recurso principal
para interpretar a existência.
Na realidade concreta que nos interpela,
aparecem vários sintomas que mostram o erro, tais como a degradação ambiental,
a ansiedade, a perda do sentido da vida e da convivência social.
Assim se demonstra uma vez mais que «a
realidade é superior à ideia».[iii]
111. A cultura ecológica não se pode
reduzir a uma série de respostas urgentes e parciais para os problemas que vão
surgindo à volta da degradação ambiental, do esgotamento das reservas naturais
e da poluição.
Deveria ser um olhar diferente, um
pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma
espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático.
Caso contrário, até as melhores
iniciativas ecologistas podem acabar bloqueadas na mesma lógica globalizada.
Buscar apenas um remédio técnico para cada
problema ambiental que aparece, é isolar coisas que, na realidade, estão
interligadas e esconder os problemas verdadeiros e mais profundos do sistema
mundial.
112. Todavia é possível voltar a ampliar o
olhar, e a liberdade humana é capaz de limitar a técnica, orientá-la e
colocá-la ao serviço doutro tipo de progresso, mais saudável, mais humano, mais
social, mais integral.
De facto verifica-se a libertação do
paradigma tecnocrático nalgumas ocasiões.
Por exemplo, quando comunidades de
pequenos produtores optam por sistemas de produção menos poluentes, defendendo
um modelo não-consumista de vida, alegria e convivência.
Ou quando a técnica tem em vista
prioritariamente resolver os problemas concretos dos outros, com o compromisso
de os ajudar a viver com mais dignidade e menor sofrimento.
E ainda quando a busca criadora do belo e
a sua contemplação conseguem superar o poder objectivo numa espécie de salvação
que acontece na beleza e na pessoa que a contempla.
A humanidade autêntica, que convida a uma
nova síntese, parece habitar no meio da civilização tecnológica de forma quase
imperceptível, como a neblina que filtra por baixo da porta fechada.
Será uma promessa permanente que, apesar
de tudo, desbrocha como uma obstinada resistência daquilo que é autêntico?
113. Além disso, as pessoas parecem já não
acreditar num futuro feliz nem confiam cegamente num amanhã melhor a partir das
condições actuais do mundo e das capacidades técnicas.
Tomam consciência de que o progresso da
ciência e da técnica não equivale ao progresso da humanidade e da história, e
vislumbram que os caminhos fundamentais para um futuro feliz são outros.
Apesar disso, também não se imaginam
renunciando às possibilidades que oferece a tecnologia.
A humanidade mudou profundamente, e o
avolumar de constantes novidades consagra uma fugacidade que nos arrasta à
superfície numa única direcção.
Torna-se difícil parar para recuperarmos a
profundidade da vida.
Se a arquitectura reflecte o espírito duma
época, as mega-estruturas e as casas em série expressam o espírito da técnica
globalizada, onde a permanente novidade dos produtos se une a um tédio
enfadonho. Não nos resignemos a isto nem renunciemos a perguntar-nos pelos fins
e o sentido de tudo.
Caso contrário, apenas legitimaremos o
estado de facto e precisaremos de mais sucedâneos para suportar o vazio.
114. O que está a acontecer põe-nos
perante a urgência de avançar numa corajosa revolução cultural.
A ciência e a tecnologia não são neutrais,
mas podem, desde o início até ao fim dum processo, envolver diferentes
intenções e possibilidades que se podem configurar de várias maneiras.
Ninguém quer o regresso à Idade da Pedra,
mas é indispensável abrandar a marcha para olhar a realidade doutra forma,
recolher os avanços positivos e sustentáveis e ao mesmo tempo recuperar os
valores e os grandes objectivos arrasados por um desenfreamento megalómano.
3.
Crise do antropocentrismo moderno e suas consequências
115. O antropocentrismo moderno acabou,
paradoxalmente, por colocar a razão técnica acima da realidade, porque este ser
humano «já não sente a natureza como norma válida nem como um refúgio vivente.
Sem se pôr qualquer hipótese, vê-a,
objectivamente, como espaço e matéria onde realizar uma obra em que se imerge
completamente, sem se importar com o que possa suceder a ela».[iv]
Assim debilita-se o valor intrínseco do
mundo.
Mas, se o ser humano não redescobre o seu
verdadeiro lugar, compreende-se mal a si mesmo e acaba por contradizer a sua
própria realidade.
«Não só a terra foi dada por Deus ao
homem, que a deve usar respeitando a intenção originária de bem, segundo a qual
lhe foi entregue; mas o homem é doado a si mesmo por Deus, devendo por isso respeitar
a estrutura natural e moral de que foi dotado».[v]
116. Nos tempos modernos, verificou-se um
notável excesso antropocêntrico, que hoje, com outra roupagem, continua a minar
toda a referência a algo de comum e qualquer tentativa de reforçar os laços
sociais.
Por isso, chegou a hora de prestar
novamente atenção à realidade com os limites que a mesma impõe e que, por sua
vez, constituem a possibilidade dum desenvolvimento humano e social mais
saudável e fecundo.
Uma apresentação inadequada da
antropologia cristã acabou por promover uma concepção errada da relação do ser
humano com o mundo.
Muitas vezes foi transmitido um sonho
prometeico de domínio sobre o mundo, que provocou a impressão de que o cuidado
da natureza fosse actividade de fracos.
Mas a interpretação correcta do conceito
de ser humano como senhor do universo é entendê-lo no sentido de administrador
responsável.[vi]
117. A falta de preocupação por medir os
danos à natureza e o impacto ambiental das decisões é apenas o reflexo evidente
do desinteresse em reconhecer a mensagem que a natureza traz inscrita nas suas
próprias estruturas.
Quando, na própria realidade, não se
reconhece a importância dum pobre, dum embrião humano, duma pessoa com
deficiência – só para dar alguns exemplos –, dificilmente se saberá escutar os
gritos da própria natureza.
Tudo está interligado.
Se o ser humano se declara autónomo da
realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua
existência, porque «em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na
obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a
revolta da natureza».[vii]
118. Esta situação leva-nos a uma
esquizofrenia permanente, que se estende da exaltação tecnocrática, que não
reconhece aos outros seres um valor próprio, até à reacção de negar qualquer
valor peculiar ao ser humano.
Contudo não se pode prescindir da
humanidade.
Não haverá uma nova relação com a
natureza, sem um ser humano novo.
Não há ecologia sem uma adequada antropologia.
Quando a pessoa humana é considerada
apenas mais um ser entre outros, que provém de jogos do acaso ou dum
determinismo físico, «corre o risco de atenuar-se, nas consciências, a noção da
responsabilidade».[viii]
Um antropocentrismo desordenado não deve
necessariamente ser substituído por um «biocentrismo», porque isto implicaria
introduzir um novo desequilíbrio que não só não resolverá os problemas existentes,
mas acrescentará outros.
Não se pode exigir do ser humano um
compromisso para com o mundo, se ao mesmo tempo não se reconhecem e valorizam
as suas peculiares capacidades de conhecimento, vontade, liberdade e responsabilidade.
(cont)
[i] Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de
Junho de 2009), 35: AAS 101 (2009), 671.
[ii] Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de
Junho de 2009), 22: o. c., 657.
[iii] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de
Novembro de 2013), 231: AAS 105 (2013), 1114.
[iv] Romano Guardini, Das Ende der Neuzeit (Würzburg9
1965), 63.
[v] João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio
de 1991), 38: AAS83 (1991), 841.
[vi] Cf. Declaração Love for Creation. An Asian Response to
the Ecological Crisis: Colóquio promovido pela Federação das Conferências
Episcopais da Ásia, Tagaytay (31 de Janeiro a 5 de Fevereiro de 1993), 3.3.2.
[vii] João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio
de 1991),37: AAS 83 (1991), 840.
[viii] Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2010,
2: AAS 102 (2010), 41.