Páscoa
Evangelho:
Jo 6, 30-35
30 Mas eles disseram-Lhe: «Que milagre fazes Tu, para
que o vejamos e acreditemos em Ti? Que fazes Tu? 31 Nossos pais comeram o maná
no deserto, segundo está escrito: “Deu-lhes a comer o pão do céu”». 32 Jesus respondeu-lhes:
«Em verdade, em verdade vos digo: Moisés não vos deu o pão do céu, mas Meu Pai
é que vos dá o verdadeiro pão do céu. 33 Porque o Pão de Deus é Aquele que
desceu do céu e dá a vida ao mundo». 34 Então disseram-Lhe: «Senhor, dá-nos
sempre desse pão». 35 Jesus respondeu-lhes: «Eu sou o pão da vida; aquele que
vem a Mim não terá jamais fome, e aquele que crê em Mim não terá jamais sede.
Comentário:
«O Pão da Vida»!
Que extraordinário
alimento, concreto, verdadeiro, sublime.
Porque alimenta de facto a
nossa vida interior!
Porque é a própria
Verdade!
Porque não existe outro
que se lhe compare!
Sem ele não vivemos, sem o
receber não nos convertemos, ainda que por breves momentos, no próprio Jesus
Cristo que Se nos oferece.
(ama,
comentário sobre Jo 6, 30-35, 2015.04.21)
Leitura espiritual
SANTO
AGOSTINHO – CONFISSÕES
LIVRO
DÉCIMO
CAPÍTULO
XVI
A
memória do esquecimento
E
quando falo do esquecimento, e reconheço do que falo, como poderia eu
reconhecê-lo se dele não me lembrasse? Não falo do som da palavra, mas da
realidade que ela exprime. Se eu a tivesse esquecido, não seria capaz de
reconhecer o significado de tal som. Por isso, quando me lembro da memória é
por ela própria que se me apresenta; mas quando me lembro do esquecimento, este
e a memória estão presentes simultaneamente: a memória, com que me recordo, e o
esquecimento, de que me recordo.
Mas,
que é o esquecimento, senão falta de memória? E como pode ele estar presente na
minha lembrança. Se a sua lembrança significa não lembrar? Mas se nos
lembramos, o que guardamos na memória, e se nos é impossível reconhecer o que
significa a palavra esquecimento, quando a ouvimos, a não ser que dele nos
lembremos, logo a memória é a que retém o esquecimento. Ele está na memória,
pois de contrário, nós o esqueceríamos; mas, ele presente, nós esquecemo-nos.
Segue-se que ele não está presente na memória por si mesmo, quando nos lembramos
dele, mas pela sua imagem. De contrário, o esquecimento não faria com que nos lembrássemos,
mas com que nos esquecêssemos. Mas, enfim, quem poderá descobrir, quem poderá
compreender o modo como isto se realiza?
Mas, Senhor, esgota-me
esta busca e é, portanto, sobre mim mesmo que me canso; tornei-me para mim
mesmo uma terra de dificuldades e árduos labores. Por que não exploro agora as
regiões do firmamento, nem meço as distâncias dos astros, nem busco as leis do equilíbrio
da terra. Sou eu que me lembro, eu, o meu espírito. Não é de admirar que esteja
longe de mim quanto o que não sou eu. Todavia, que há mais perto de mim do que
eu próprio? No entanto, é-me impossível compreender a natureza da minha
memória, sem a qual nem poderia pronunciar meu próprio nome.
Que direi então, desde que
tenho a certeza que lembro do esquecimento? Diria talvez que não está na minha
memória o que recordo? Ou talvez direi que o esquecimento está na minha memória,
para que não o esqueça? Ambas as hipóteses são grandes absurdos. Vejamos uma terceira
hipótese: poderei eu afirmar que a minha memória retém a imagem do
esquecimento, e não o esquecimento em si, quando dele me lembro? Com que
fundamento, pois, poderei dizê-lo, se para que se grave na memória a imagem de
um objecto, é necessário que este esteja presente antes, de onde emana a imagem
a ser gravada? É assim que me lembro de Cartago, e assim de todos os outros
lugares por onde passei; assim me lembro do rosto dos homens que vi e das coisas
que os meus sentidos me deram a conhecer; assim me lembro ainda da dor física,
coisas cujas imagens a memória fixou quando estavam presentes, para que eu as
pudesse contemplar e repassar em espírito, quando eu as evocasse na sua
ausência.
Se, pois, é a imagem do
esquecimento que está na memória, e não ele próprio, é evidente que nalgum
momento esteve presente para que a sua imagem fosse fixada. Mas, se estava presente,
como podia gravar na memória a sua imagem, se o esquecimento apaga com a sua presença
tudo o que lá está impresso? Contudo, seja qual for o mecanismo desse fenómeno,
e por mais incompreensível e inexplicável que seja, estou certo de que me
lembro do esquecimento, que apaga da memória, todas as nossas lembranças.
CAPÍTULO
XVII
Deus
e a memória
Grande é o poder da
memória! E ela tem algo de terrível, meu Deus, na sua complexidade infinita e profunda.
E isto é o espírito, e isto sou eu mesmo. Que sou, pois meu Deus? Qual a minha
natureza? Vida vária e multiforme, de amplidão imensa. Eis-me na minha memória,
nos seus campos, antros, inumeráveis cavernas, tudo isso infinitamente cheio de
toda espécie de coisas, também inumeráveis. Umas gravadas em imagens, como os
corpos; outras, estão sob a forma de não sei que noções e sinais, como os afectos
da alma, que a memória conserva quando a alma já não os sente, embora tudo o
que está na memória esteja também no espírito. Percorro em todas as direcções
este mundo interior, vou de um lado para outro, e nele me aprofundo o mais possível,
sem lhe encontrar os limites, tão grande é a vida que reside no homem mortal!
Que hei-de fazer, pois,
meu Deus, minha verdadeira vida? Ultrapassarei também esta faculdade que se
chama memória? Ultrapassá-la-ei para chegar a ti, doce luz? Que dizes?
Subindo em espírito a ti,
que estás acima de mim, ultrapassarei também esta minha força, que se chama
memória, pois quero atingir-te onde és acessível, e unir-me a ti por onde possa
fazê-lo.
Também os animais e as
aves têm memória, porque de outro modo não voltariam aos seus ninhos e tocas,
nem fariam outras coisas habituais, e nem mesmo poderiam adquirir hábitos sem a
memória. Passarei, pois, além da memória para chegar àquele que me separou dos
animais e me fez mais sábio que as aves do céu. Passarei além da memória, mas
onde te hei-de achar, ó Deus verdadeiramente bom, suavidade segura? Onde te
hei-de encontrar? Se te encontro sem a minha memória, estou esquecido de ti, e
se não me lembro de ti, como te poderei encontrar?
CAPÍTULO
XVIII
A
memória das coisas perdidas
Uma mulher perdeu uma
dracma, e procurou-a com a sua lanterna. Mas se não se lembrasse dela, não
haveria de encontra-la; de facto, se dela não lembrasse, como poderia saber, ao
achá-la, que era aquela?
Lembro-me de ter procurado
e achado muitas coisas perdidas, sei disso porque, estando eu à procura, me
diziam: “Por acaso é esta?” “Por acaso é aquela?” – e eu sempre respondia que não,
até encontrar o que procurava. Se não tivesse fixado a lembrança do objecto,
fosse o que fosse, ainda que me fosse mostrado, não o encontraria, pois não o
poderia reconhecer. E sempre que perdemos e achamos alguma coisa acontece o mesmo.
Se alguma coisa desaparece
de nossa vista, e não da memória – como sucede com um corpo visível –
conservamos interiormente a sua imagem e o procuramos até que apareça a nossos olhos.
Quando for encontrado, será reconhecido de acordo com essa imagem interior. Não
podemos dizer que encontramos um objecto perdido se não o reconhecemos; nem o
podemos reconhecer se dele não nos lembramos. Tinha pois desaparecido da nossa
vista, mas era conservado pela memória.
CAPÍTULO
XIX
A
memória das lembranças
E quando a própria memória
perde uma lembrança, como acontece quando nos esquecemos de algo e procuramos
recordá-la, o que se passa? Onde, afinal, a procuramos senão na própria
memória? E se esta, por acaso, nos oferece uma coisa por outra, a repelimos até
que apareça o que buscamos. E assim que aparece dizemos: “É isto”. E assim não
diríamos se não a reconhecêssemos, e não a reconheceríamos se dela não houvesse
registo. É certo, portanto, que já a havíamos esquecido. Ou será que ela não se
apagara totalmente de nossa memória, por meio da parte que nos ficou impressa
procuramos a outra? A memória, nesse caso, teria ciência de não poder, como de
ordinário, fornecer a lembrança em seu conjunto e, mutilada, reclamaria e parte
faltosa. É o que sucede quando vemos uma pessoa conhecida, ou nela pensamos sem
poder recordar o seu nome. Se outro nome nos apresenta ao espírito, não o
associamos à tal pessoa; por isso o afastamos, até que se apresenta um que concorde
com nossa representação habitual da pessoa.
Mas donde nos vem este
nome, senão da memória? Mesmo quando nos é sugerido por outrem, é pela memória
que reconhecemos; não o aceitamos como um conhecimento novo, mas recordando-o,
confirmamos ser esse o nome que nos disseram. Se fosse totalmente apagado da alma,
nem mesmo avisados o reconheceríamos.
Não podemos pois, afirmar
que nos esquecemos completamente daquilo de que nos lembramos ter esquecido. De
nenhum modo poderíamos resgatar uma lembrança perdida se o seu esquecimento
fosse total.
CAPÍTULO
XX
A
memória da felicidade
E como hei-de buscar-te,
Senhor? Quando te procuro, meu Deus, estou à procura da felicidade.
Procurar-te-ei para que a minha alma viva, porque o meu corpo vive da minha
alma, e a minha alma vive de ti. Como então devo buscar a felicidade? Porque
não a possuirei até que possa dizer “basta”. Como, pois, procurá-la? Talvez
pela lembrança, como se a tivesse esquecido, guardando contudo a lembrança do
esquecimento? Ou pelo desejo de conhecer algo desconhecido ou por nunca tê-lo
vivido, ou por tê-lo esquecido a ponto de nem ter consciência do seu
esquecimento?
Mas não será justamente a
felicidade que todos querem, sem excepção? E onde a conheceram para a desejarem
tanto? Onde a viram para assim a amarem? O que é certo é que está em nós a sua
imagem. Mas não sei como isto se dá. E há diversos modos de ser feliz: quer possuindo
realmente a felicidade, quer possuindo apenas a sua esperança. Este último modo
é inferior ao dos que são realmente felizes, embora estejam melhor que os não
felizes nem na realidade, nem na esperança. Mesmo estes, todavia, não
desejariam tanto a felicidade se esta lhes fosse completamente estranha, e é
certo que a desejam. Não sei como a conheceram, e portanto ignoro a noção que
têm dela. O que me preocupa é saber se essa noção reside na memória, pois, se é
lá que reside, é sinal de já fomos felizes alguma vez. Por ora não busco saber se
todos fomos felizes individualmente, ou se o fomos naquele que pecou primeiro,
e no qual todos morremos, e de quem nascemos na infelicidade. O que procuro
saber é se a felicidade reside na memória, porque certamente não a amaríamos se
não a conhecêssemos. Mal ouvimos esta palavra, e todos confessamos que
desejamos a mesma coisa; e não é o som da palavra que nos deleita. Quando um
grego a ouve pronunciar em latim, não se alegra, porque ignora o seu sentido.
Mas nós alegramo-nos ao ouvi-la, como ele se a ouvisse em sua língua. A
felicidade, com efeito, não é grega nem latina; mas gregos e latinos, assim
como todos que falam outras línguas, desejam alcançá-la.
Logo, a felicidade é
conhecida de todos; e se fosse possível perguntar-lhes a uma voz: ”Quereis ser
felizes?” – todos, sem hesitar, responderiam que sim. E isso não aconteceria se
a memória não tivesse em si a realidade, expressa por essa palavra.
(Revisão
de versão portuguesa por ama)