[i] São Lucas, Evangelista
Introdução ao Evangelho segundo São Lucas
São Lucas é o autor do terceiro Evangelho. É este um dado firme da Tradição cristã, confirmado pelos estudos realizados sobre o texto do próprio Evangelho. Entre os abundantes testemunhos da Tradição sobressaem os de Orígenes, Clemente de Alexandria, Tertuliano, Santo Ireneu e Eusébio; citaremos apenas dois, especialmente Significativos: um pela sua antiguidade, e o outro, pela relevância do seu autor, São Jerónimo.
O primeiro é um documento cristão do século II, escrito em latim e conhecido como Fragmento Muratoriano, em que se pode ler: «O terceiro livro do Evangelho é segundo
Lucas, médico (...), escreveu segundo o que tinha ouvido, já que ele também não conheceu o Senhor em carne mortal, e assim, tendo indagado o que esteve ao seu alcance, começa a tratar desde o nascimento de João»[i].
São Jerónimo escreve pelo ano 400 na sua obra Liber de viris illustribus I: «Lucas, médico antioqueno, conhecedor da língua grega, como demonstram os seus escritos, seguidor do apóstolo Paulo e companheiro das suas viagens, escreveu um Evangelho...»[i]. E nos Commentariorum in Evangelium Matthei libri quattuor acrescenta: «O terceiro, Lucas, médico, de Antioquia da Síria, discípulo do apóstolo Paulo, compôs o volume na Acaia e na Beócia; nele, com uma visão mais ampla, repetia algumas coisas de outros e, como confessa no prólogo, descrevia coisas ouvidas, não vistas»[i].
Desde os primeiros séculos os documentos do Magistério da Igreja, de acordo com a Tradição, atribuíram o terceiro Evangelho a São Lucas; assim, o Concílio de Laodicéia
(pelo ano 360), o Decreto do Papa Gelásio (anos 492-496), o Concílio de Florença (ano 1411) e o Concílio de Trento (ano 1546).
Além disso, pormenores internos do próprio Evangelho apoiam a tradição sobre o seu autor, ou seja, confirmam que foi precisamente São Lucas quem o escreveu; - o autor deste Evangelho redige em língua grega com grande elegância, especialmente quando escreve com mais independência das suas fontes de informação, como, por exemplo, no prólogo;
- reflecte os seus conhecimentos médicos nos relatos de curas, tanto pelos termos que emprega como pela descrição das doenças, que é em geral mais precisa que a dos outros evangelistas;
- é o mesmo autor dos Actos dos Apóstolos, que, pelos dados que contém, só pode ser atribuído a São Lucas; - e, finalmente, o autor é discípulo de São Paulo, pela grande afinidade que se adverte - tanto na linguagem como na doutrina - entre as cartas do Apóstolo e o terceiro Evangelho.
Apoiando-se em todos estes_ argumentos, a Pontifícia Comissão Bíblica, a 26 de Junho de 1912, assegurava que «o testemunho claro da Tradição, já desde os princípios da Igreja maravilhosamente concorde e apoiado em múltiplos argumentos, a saber, no testemunho expresso dos Santos Padres e dos escritores eclesiásticos, nas citações e alusões que nas suas obras se encontram, no uso dos antigos hereges, nas versões dos livros do Novo Testamento, em quase todos os códices manuscritos antiquíssimos e em razões internas tomadas do próprio texto dos livros sagrados, obriga-nos a afirmar com certeza que Marcos, discípulo e intérprete de Pedra, e Lucas, médico, ajudante e companheiro de Paulo, são em verdade autores dos Evangelhos que respectivamente lhes são atribuídos»[i].
Uma vez estabelecida a autenticidade geral do terceiro Evangelho, a Pontifícia Comissão Bíblica reafirmou depois, em concreto, a autenticidade de passos postos em dúvida por alguns hereges antigos e certos críticos modernos; e no mesmo dia 26 de Junho de 1912 respondeu: que não era «lícito duvidar da inspiração e canonicidade das narrações de Lucas acerca da infância de Cristo (Lc 1 e 2) nem da aparição do anjo a confortá-lo do suor de sangue (Lc 22,43 s.); nem que se possa demonstrar com razões sólidas segundo opinaram alguns antigos hereges com a aprovação de certos críticos modernos - que tais narrações não pertencem ao genuíno Evangelho de Lucas»[i].
Este documento do Magistério afirma, pois, na sua primeira parte, a inspiração e a canonicidade de tais passos; e, na segunda, confirma a sua autenticidade.
A figura apostólica de São Lucas
Sabemos pela Tradição que São Lucas nasceu em Antioquia de Síria. Parecem confirmá-lo os Actos dos Apóstolos, que o mostram como grande conhecedor da Igreja de Antioquia. São Lucas procede, pois, da gentilidade, não do judaísmo; assim o dá a entender São Paulo no epílogo da carta aos fiéis de Colossos[i], quando distingue entre Aristarco, Marcos e Jesus, « que são da circuncisão», e Epafras de Colossos, Lucas o médico amado e Demas.
Ignoramos quando se converteu, ainda que seja possível que muito cedo; mas, em qualquer dos casos, não foi testemunha directa da vida do Senhor, já que o próprio São
Lucas, no prólogo ao seu Evangelho, se exclui a si mesmo do número daqueles que foram testemunhas oculares da pregação de Cristo.
Nos Actos dos Apóstolos, Lucas aparece como discípulo e companheiro de São Paulo: narra certos acontecimentos na primeira pessoa do plural, incluindo-se entre os que faziam parte dessas viagens. Por exemplo, para anunciar o Evangelho vai com o Apóstolo à Macedónia[i]; nesta região, na cidade de Filipos, Paulo e Silas são açoitados, encarcerados e finalmente expulsos da cidade; ao narrar estes factos Lucas fala na terceira pessoa, o que indica que não participou neles, mas permaneceu em Filipos[i]. Aqui se voltaria a juntar com São Paulo; no seu regresso[i] acompanhá-lo-ia a Jerusalém e visitaria São Tiago e os presbíteros[i]. Mais tarde vai também a Roma com São Paulo, quando o Apóstolo apela para César[i].
Na segunda Epístola a Timóteo, São Paulo afirma que só Lucas está com ele durante o seu segundo cativeiro em Roma[i], e em Filémon 24 conta-o entre os seus colaboradores.
Uma antiga tradição diz que São Lucas pregou o Evangelho na Bitínia e na Acaia depois da morte de São Paulo. E o Martirológio Romano assinala que «tendo padecido muito
pelo nome de Cristo, morreu cheio do Espírito Santo».
Canonicidade
Desde os primeiros tempos a Igreja considerou o Evangelho de São Lucas como livro sagrado: lia-se nos leccionários litúrgicos e aparece nos elencos mais antigos dos livros canónicos, que a Igreja recebeu como inspirados por Deus. Assim, no século IV, o Concílio de Laodicéia ordena que se leiam publicamente na Igreja apenas os livros canónicos do Antigo e do Novo Testamento; entre estes encontram-se os «quatro Evangelhos: segundo Mateus, segundo Marcos, segundo Lucas, segundo João». O mesmo dirão os Concílios de Hipona e o III de Cartago, ambos de fins do século IV[i].
O Decreto do Papa São Dâmaso, que recolhe as actas do Concílio Romano do ano 382, volta a incluir nas listas dos livros sagrados «um livro dos Evangelhos segundo Mateus, um livro segundo Marcos, um livro segundo Lucas, um livro segundo João»[i].
Nos princípios do século V o Papa Santo Inocêncio I respondia com a carta Consulenti tibi a algumas questões sobre as quais tinha pedido parecer Exupério, Bispo de Tolosa; e, a propósito do cânon da Sagrada Escritura, indica-lhe num anexo os livros que a compõem; entre eles figuram os quatro Evangelhos[i].
O Decreto Pro Iacobitis (da Bula Cantate Domino) contém uma profissão de fé assinada pelos jacobitas no Concílio de Florença (século XV); afirma-se que «sob a inspiração do
próprio Espírito Santo falaram os santos de um e do outro Testamento»; e a seguir enumeram-se pormenorizadamente todos os livros da Sagrada Escritura. Ao começar pelos do Novo Testamento, diz assim: «Os quatro Evangelhos, segundo Mateus, Marcos, Lucas e João; os Actos dos Apóstolos escritos pelo evangelista Lucas...»[i].
O Concílio de Trento, no seu Decreto sobre os livros sagrados e as tradições apostólicas (ano de 1546) define solenemente o cânon dos livros sagrados. Para evitar dúvidas inclui o índice completo de tais livros, consignando os santos Evangelhos na forma já tradicional: «Os quatro Evangelhos segundo Mateus, Marcos, Lucas e João». O Concílio termina o decreto com esta fórmula solene: «E se alguém não recebesse como sagrados e canónicos estes livros íntegros com todas as suas partes, segundo tem sido costume ler na Igreja católica..., seja anátema».[i]
Data de Composição
Segundo a Tradição cristã é claro que São Lucas escreveu o seu Evangelho depois de São Mateus e de São Marcos. Apoiando-se neste dado, os documentos do Magistério da
Igreja, citam-no em terceiro lugar. Segundo uma Resposta da Pontifícia Comissão Bíblica de 26 de Junho de 1912, foi escrito antes da queda de Jerusalém, no ano 70, em poder das tropas romanas[i].
A mesma Pontifícia Comissão Bíblica precisa mais a data fundando-se na argumentação seguinte: São Lucas, no prólogo dos Actos dos Apóstolos, menciona expressamente o seu primeiro livro, isto é, o Evangelho. Portanto é evidente que o Evangelho é anterior ao livro dos Actos. Por outro lado, o livro dos Actos termina ao descrever a situação de São Paulo na véspera de ser libertado do seu primeiro cativeiro romano; isto parece indicar que São Lucas acabou então a redacção dos Actos. Como a data da libertação de São Paulo do seu primeiro cativeiro em Roma foi o ano de 63, o Evangelho de São Lucas deve ter sido escrito não mais tarde que no ano 62 ou em princípios do ano 63. Outros autores inclinam-se a fixar a data de composição do Evangelho de São Lucas entre-os anos 67-70.
Historicidade
Os dados da Tradição e do Magistério da Igreja acerca da historicidade dos Evangelhos já foram expostos mais acima. A historicidade do Evangelho de São Lucas em concreto
foi indicada pela Pontifícia Comissão Bíblica na sua Resposta já citada de 1912, onde diz: «Os ditos e os factos que, segundo a pregação de Pedro, esmerada e graficamente narra Marcos e com toda a sinceridade expõe Lucas, informado exactamente de tudo desde a sua origem por testemunhas inteiramente fidedignas, que foram desde o princípio testemunhas oculares e ministros da palavra (Lc 1,2 ss.), reclamam com direito aquela plena fé histórica que lhes prestou sempre a Igreja»[i]. A veracidade histórica funda-se na intenção do escritor sagrado de escrever uma verdadeira histórica com a qual ilustrar e confirmar na fé os seus leitores. O prólogo do terceiro Evangelho, segundo o costume dos historiadores gregos e latinos[i], prova que São Lucas escreve como historiador. Emprega o termo narração (diégesis)[i]para dar a entender já desde o princípio que escreve segundo um género histórico. Apoiam-no também as suas referências à história profana, os dados cronológicos que dá no princípio do Evangelho[i] e o modo de composição, pois confessa que quer escrever ordenadamente (kathescês)[i]. Busca cuidadosamente as fontes da história que narra: as testemunhas desses acontecimentos. E certo que o faz com um fim superior: mostrar que está bem fundado o ensino catequético que levou os cristãos à fé. Mas este fim que se propõe exige precisamente a veracidade dos factos que narra o Evangelista.
São Lucas escreve a história não para satisfazer a mera curiosidade dos leitores, mas para ensinar a História da Salvação, contemplada desde a Encarnação de Cristo até à difusão do Evangelho entre os gentios. Narra esta História no Evangelho e nos Actos dos Apóstolos, livros que constituem na realidade uma só obra literária. Descreve «as coisas que se realizaram entre nós»[i] e o cumprimento da acção salvífica de Deus na história, pois «era preciso» que assim sucedesse[i]. Um olhar às palavras que emprega São Lucas manifesta que o tema da Salvação é fundamental na sua obra: a Santíssima Virgem Maria exulta de alegria em Deus seu Salvador[i]; os anjos, no Nascimento, anunciam que «hoje vos nasceu, na cidade de David, o Salvador, que é o Cristo, o Senhor»[i]; Deus suscitou esse poder salvador[i] «para nos salvar dos nossos inimigos»[i]; assim o anunciará o Baptista para que o povo conheça a Salvação, que consiste no perdão dos pecados[i]; vêem-na os olhos de Simeão quando conhece o Menino Jesus[i]; vê-la-ão todos os homens, segundo tinha profetizado Isaías[i], e alcança-a Zaqueu com a visita do Mestre[i]. São Lucas emprega o verbo salvar trinta vezes no Evangelho e nos Actos dos Apóstolos, vendo a Salvação não só na Cruz mas em todos os acontecimentos finais: Morte, Ressurreição e Ascensão de Cristo com a subsequente evangelização[i]. Nesta perspectiva de História salvífica São Lucas ordena os ensinamentos recebidos dos que tinham sido testemunhas dos acontecimentos. Deve pôr-se em realce a importância do livro dos Actos dos Apóstolos, como continuação do Evangelho, pois naquele mostra-se que a Salvação se completa com a vinda do Espírito Santo, com cujo impulso se difunde o Evangelho pelo mundo.
Conteúdo
Quase metade do conteúdo do Evangelho de São Lucas não aparece nos outros três Evangelhos. Como próprio de São Lucas sobressaem os seus relatos da infância de Jesus (Caps. 1 e 2); a apresentação de muitos episódios do ministério público do Senhor no enquadramento de uma longa viagem desde a Galileia a Jerusalém[i]; e algumas parábolas, como, por exemplo, a do filho pródigo (Lc 15,11-32), a do administrador infiel (Lc 16,1-13), a de Lázaro e o rico avarento (Lc 16,19-31); e também é próprio de Lucas o relato da aparição de Jesus Ressuscitado aos discípulos de Emaús (Lc 24;13-35).
A ordem que segue São Lucas na redacção do seu Evangelho é semelhante sobretudo à de São Marcos, e pode distribuir-se segundo o seguinte esquema:
1. Breve prólogo, em que expõe a finalidade do livro e as fontes que usou (Lc 1;1-4).
2. Dois longos capítulos, aos quais se costuma chamar «evangelho da Infância de Jesus» pelo seu conteúdo (Lc 1,5-2,52). Os relatos da infância de Jesus em São Lucas e em São Mateus completam-se mutuamente, pois cada Evangelho fixa-se em diferentes momentos e acontecimentos do Nascimento e dos primeiros anos do Salvador.
3. Preparação de Jesus para o Seu ministério público, por meio do baptismo das mãos de João e do jejum no deserto, onde é tentado pelo diabo (Lc 3,11-4,13).
4. Extenso ministério público de Jesus Cristo na Galileia, onde começa a Sua pregação, realiza muitos milagres, escolhe os Doze, os vai formando, surgem as primeiras reacções de incompreensão e de repulsa por parte de escribas e fariseus, em contraste com a adesão do povo, seguem-no os discípulos, e Pedra confessa que Jesus é o Messias. Nesta secção narram-se também outros episódios importantes, como a Transfiguração do Senhor e as duas primeiras predições da Paixão e Ressurreição (Lc 4,14-9,50).
5. Característico de São Lucas é - como vimos - o conjunto de narrações enquadradas como num longo caminhar do Senhor desde a Galileia para Jerusalém, que abarca uns dez capítulos do Evangelho (Lc 9,51-19,27). Nesta secção encontramos uma boa parte da pregação de Nosso Senhor, dirigida aos discípulos, às multidões e inclusive aos escribas e fariseus. Assim, exorta à mansidão e à misericórdia (p. ex., na parábola da
ovelha perdida e na do filho pródigo), e à confiança na divina Providência. Encontramos a doutrina fundamental sobre a humildade, sobre a sinceridade, a pobreza (p. ex., na parábola do rico avarento), a penitência, sobre a aceitação da cruz de cada dia, a necessidade de ser agradecidos (episódio dos dez leprosos), de evitar o escândalo e o dever de perdoar ao próximo. Também se recolhem aqui outros ensinamentos de Jesus: acerca da oração (p. ex., o Pai Nosso), da disposição para prestar contas a Deus a todo o momento, da necessidade da fé e da conversão sincera para alcançar a salvação (p. ex., o episódio do cego de Jericó e do publicano Zaqueu), e, sempre, o exemplo vivo do Mestre, que o discípulo de Jesus deve imitar.
Todo este ensino está entrelaçado com episódios da vida de Nosso Senhor (como a missão dos setenta e dois discípulos) e a realização de milagres, que confirmam a Sua doutrina. Igualmente, esta longa secção contém o anúncio de futuras perseguições aos discípulos, a profecia da destruição de Jerusalém pelo seu endurecimento diante da misericórdia divina, e a terceira predição da Paixão e Ressurreição.
6. O Evangelho de São Lucas ocupa-se a seguir do ministério público de Jesus em Jerusalém (Lc 19,288-21,38), com um conteúdo parecido ao dos outros dois Sinópticos.
Jesus entra na Cidade Santa aclamado pelo povo, expulsa do Templo os vendedores e defende-se das acusações dos Seus adversários, que Lhe dão ocasião de expor a doutrina sobre a natureza do Reino de Deus (questão do tributo a César) e sobre a ressurreição dos mortos. Encontra-se aqui o chamado «discurso escatológico» sobre a destruição futura de Jerusalém e o fim dos tempos.
7. Finalmente, os relatos da Paixão, Morte, Ressurreição e Ascensão (Caps. 22 a 24). Alguns acontecimentos foram transmitidos só por São Lucas, como são o suor de sangue durante a agonia de Getsemani, a promessa do Paraíso ao bom ladrão, e - como vimos - a aparição do Ressuscitado aos discípulos de Emaús.
Características Literárias e Teológicas
A Constituição Dei Verbum, do Concílio Vaticano lI, no n. 19, ao falar do carácter histórico dos Evangelhos, diz: «Os autores sagrados, porém, escreveram os quatro Evangelhos, escolhendo algumas coisas entre as muitas transmitidas por palavra ou por escrito, sintetizando urnas, desenvolvendo outras, segundo o estado das Igrejas, conservando, finalmente, o carácter da pregação, mas sempre de maneira a comunicar-nos coisas autênticas e verdadeiras acerca de Jesus. Com efeito, quer relatassem aquilo de que se lembravam e recordavam, quer se baseassem no testemunho daqueles que desde o princípio foram testemunhas oculares e ministros da palavra', fizeram-no sempre com intenção de que conheçamos a 'verdade' das coisas a respeito das quais fomos instruídos (cfr Lc 1,2-4)».
Cada um dos evangelistas legou-nos, a seu modo, como um retrato de Cristo: é sempre o mesmo Jesus Cristo, ainda que contemplado em diversas perspectivas. Os hagiógrafos, sempre sob à inspiração do Espírito Santo, escolheram por vezes os mesmos factos, as mesmas palavras - sobretudo os Sinópticos -; outras vezes, porém, narram palavras ou factos diferentes do Senhor que não se encontram nos outros Evangelhos. Também fazem resumos e orientam a sua obra tendo em conta os ouvintes a quem se dirigem de maneira imediata, ainda que o destino do escrito seja universal. Por isso um Evangelista sublinha certos aspectos que não estão tão em relevo nos outros.
Quando falamos de notas características de um Evangelho queremos fixar-nos nessa orientação e nesses aspectos peculiares que deu ao seu trabalho, ainda que seja sempre Deus o autor principal.
Quanto ao estilo literário do terceiro Evangelho, já São Jerónimo observava que Lucas manejava a língua grega com mais perfeição gramatical que os outros evangelistas[i]. Com efeito, ordinariamente evita as palavras e expressões hebraicas, aramaicas e latinas, substituindo-as pelas equivalentes gregas. São Lucas costuma transcrever de uma maneira mais fina e correcta os modismos vulgares. Por outro lado, silencia pormenores que poderiam ser molestos para algumas pessoas, ou cenas de certa crueza. Estes e outros pormenores manifestam a delicadeza e elegância do seu espírito.
Outra característica notória de São Lucas é a sua acusada sensibilidade por perfilar bem o enquadramento histórico de certos factos[i]. Lucas narra alguns factos numa perspectiva peculiar. Quiçá o mais característico seja a apresentação da vida de Cristo na terra como um caminhar para Jerusalém, donde, no dia da Ascensão, subirá ao Céu,
do qual a Cidade Santa era a figura terrestre. Põe também em realce a universalidade do Evangelho e da Igreja, a divindade de Cristo Profeta e Salvador, a figura entranhável de Santa Maria, alguns aspectos da vida cristã, como o espírito de pobreza, a oração perseverante, a misericórdia, a alegria, etc.
O caminho para Jerusalém
Jerusalém ocupa um lugar destacado no terceiro Evangelho: São Lucas começa e termina os relatos da infância de Jesus com duas cenas no Templo de Jerusalém: o anúncio a Zacarias e o episódio do Menino Jesus perdido e encontrado entre os doutores. Nas tentações do deserto São Lucas apresenta uma ordem diferente da de São Mateus, de maneira que estas tentações terminam em Jerusalém. Já desde o começo da Sua vida pública Jesus começa a caminhar para Jerusalém, onde culminarão os acontecimentos salvadores. Nessa palavra: caminhar, repetida no Evangelho[i], quis-se ver uma expressão de São Lucas para orientar a narração como uma longa viagem para a Cidade Santa. Só São Lucas omite as aparições de Jesus Ressuscitado na Galileia, talvez para dar mais relevo às aparições em Jerusalém. Finalmente, o Evangelho encerra-se com uma cena situada no mesmo lugar em que tinha começado, o Templo: «E eles adoraram-no e regressaram a Jerusalém com grande alegria. E estavam sempre no Templo bendizendo a Deus»[i].
O segundo livro de São Lucas, os Actos dos Apóstolos, começa com o relato da Ascensão do Senhor e da vinda do Espírito Santo em Jerusalém. Depois narra a propagação da fé e a difusão da Igreja pelo mundo, sob a constante acção do Espírito Santo. Poderíamos dizer que nos acontecimentos que narra nos dois livros, São Lucas vê cumprida a profecia de Isaías: «Sucederá nos últimos tempos que o monte da casa de Yahwéh será confirmado no cume dos montes, e será exaltado sobre os outeiros e acorrerão a ele todas as gentes, e virão multidões de povos, dizendo: Vinde, subamos ao monte de Yahwéh, à casa do Deus de Jacob e Ele nos ensinará os Seus caminhos e iremos pelas suas sendas, porque de Sião há-de sair a Lei e de Jerusalém a Palavra de Yahwéh»[i]. Jerusalém é, pois, a Cidade Santa acerca da qual tinham profetizado os enviados de Deus e em que Jesus é, como eles, rejeitad0[i].
Importância da Ascensão
Apenas São Lucas e São Marcos narram a Ascensão do Senhor. São Marcos de uma maneira brevíssima[i]. São Lucas, porém, relata duas vezes este facto[i] e com pormenores muito relevantes: no Evangelho, Jesus despede-se dos discípulos abençoando-os como Sumo-sacerdote, sendo a Ascensão o fim da Sua vida terrestre. No livro dos Actos dos Apóstolos a Ascensão constitui a passagem do Senhor Ressuscitado para a glória, donde enviará o Espírito Santo, dando começo à vida da Igreja.
Podemos dizer que todo o Evangelho de São Lucas tende para a Ascensão: é o estado final para o qual caminha Jesus. Há uma série de passos no Evangelho que parecem fazer referência à Ascensão: a Transfiguração, em que Jesus fala com Moisés e Elias[i] da Sua «saída» - êxodo - que será levada a cabo em Jerusalém; os três aparecem «em forma gloriosa». Em 9,51 diz-se: «Quando estava para se cumprir o tempo da Sua partida, Jesus decidiu firmemente caminhar para Jerusalém». Em Lc 24,26 afirma-se a necessidade da Paixão de Cristo para entrar na Sua glória.
São Lucas, como os outros evangelistas, fala da Morte de Cristo, da sua necessidade, do valor redentor do Seu Sangue[i], mas considera de modo muito marcado a Morte do Senhor como passagem para a glória e para a exaltação.
Universalidade do Evangelho e da Igreja
Ao longo dos dois livros de São Lucas mostra-se que os bens messiânicos anunciados pelos profetas têm o seu cumprimento em Cristo e na Sua Igreja, onde Ele continua a viver, e atingem não só os Judeus mas todos os povos do mundo.
A universalidade da salvação realizada por Jesus Cristo está amplamente contemplada por São Lucas nos Actos dos Apóstolos. Mas já no Evangelho encontramos afirmações
sobre essa universalidade da salvação, especialmente em passos proféticos e no modo em que se fala dos gentios: assim, no Cântico de Simeão[i], proclama-se que a salvação foi posta «ao alcance de todos os povos» e é «luz para se revelar aos pagãos». Só São Lucas aplica à missão de João Baptista o texto de Isaías 40,5 «e verá toda a criatura a salvação de Deus»[i]. Na sinagoga de Nazaré, Jesus anuncia a futura pregação aos Judeus[i]. Pode comprovar-se o paralelismo deste passo com Act 13,46; onde os Apóstolos, rejeitados pelos Judeus, se dirigem aos gentios. Em Lc 24,47 o Senhor explica aos Seus discípulos que estava profetizado que Ele devia padecer e ressuscitar, e que se pregaria em Seu nome a conversão e o perdão dos pecados a todos os povos.
São Lucas não traz o texto de Mt 10,5 acerca dos samaritanos: «Não vades a terra de gentios, nem entreis em cidades de Samaritanos», que parecia limitar a missão dos discípulos à terra de Judeus. Jesus repreende os Seus discípulos que pedem um castigo para os samaritanos[i]; põe como exemplo de verdadeiro próximo o bom samaritano[i]; e dos dez leprosos que Jesus curou, o que volta a agradecer-lhe é samaritano[i].
Os quatro Evangelhos ensinam o carácter universal da salvação de Cristo; não obstante, pode dizer-se que aparece em São Lucas com notável relevo. É sabido que Nosso Senhor pregou quase exclusivamente aos Judeus. Os pagãos receberão mais tarde o Evangelho por meio dos Apóstolos. O Senhor contava com isso e nas Suas palavras e mandatos aos Doze prevê este plano para o anúncio da mensagem de Salvação: primeiro os Judeus, depois os pagãos[i]. Depois da Ressurreição Jesus constitui os Seus discípulos em testemunhas diante de todo o mundo[i].
JESUS, PROFETA E SALVADOR
A Cristo chama-se Profeta em Lc 9,19; 13,33; 24,19. Jesus Cristo, por ser Deus e Homem verdadeiro, é o Profeta por excelência: ninguém como Ele pode falar em nome de Deus[i]. Já no Antigo Testamento os Profetas eram movidos pelo Espírito de Deus. São Lucas sublinha a união profunda e misteriosa do Espírito Santo com o ministério profético de Nosso Senhor: assim, no Baptismo de Jesus, que marca o começo do Seu ministério público, o Espírito Santo desce visivelmente sobre Ele[i]. Depois das tentações no deserto, Jesus volta à Galileia por impulso do Espírito[i]. Na sinagoga de Nazaré[i], ao ler o texto de Isaías 61,1 que diz: «o Espírito do Senhor está sobre Mim, pois Me ungiu. Enviou-Me a anunciar a Boa Nova aos pobres...», Jesus aplica-o a Si mesmo dizendo que n'Ele se cumpriu esse passo da Escritura.
Ao longo do Evangelho de São Lucas está presente o ensino de que Jesus Cristo é o Salvador dos homens. No Evangelho da infância[i] sobressai o cumprimento em Cristo
das antigas promessas de Salvação, feitas por Deus aos Patriarcas e aos Profetas do povo eleito: o Menino que nasceu é o Salvador por tantos séculos esperado. Assim o contemplamos no Benedictus, no Magnificat, no anúncio aos pastores, no Cântico de Simeão.
A salvação manifesta-se na cura de doenças, como nos casos da hemorroíssa[i] e do cego de Jericó[i]; na ressurreição da filha de Jairo[i]; na libertação da possessão
diabólica, como a do geraseno[i]; no perdão dos pecados, como à mulher pecadora[i] e a Zaqueu, a quem Jesus anuncia que chegou a salvação para ele[i]. Mas a salvação exige a fé no poder de Jesus Cristo e, não obstante a sua manifestação nos milagres que acabamos de mencionar, realiza-se de modo definitivo na outra vida[i]. Assim, salvar-se é entrar no Reino de Deus, libertos por Cristo da escravidão do pecado, do demónio e da morte.
A Santíssima Virgem Maria
O terceiro Evangelho apresenta-nos a Mãe de Cristo com uma luz peculiar, desvelando com grande delicadeza traços da grandeza e formosura da alma de Maria Santíssima.
Provavelmente por estas circunstâncias se considerou São Lucas como pintor da Virgem Santíssima, no sentido próprio da palavra. Em qualquer dos casos, o Evangelho de São Lucas é fundamental para a doutrina acerca da Santíssima Virgem e também para a devoção à Mãe do Salvador, assim como é a fonte inspiradora de boa parte da arte cristã a este respeito. Nenhum personagem da história evangélica - excepto naturalmente Jesus - é descrito com tanto amor e admiração como Maria Santíssima.
Com efeito, nenhuma criatura humana recebeu graças tão altas e singulares como a Santíssima Virgem: Maria é a «cheia de graça» (Kecharitomene)[i]; o Senhor está com
ela[i]; achou graça diante de Deus[i]; concebeu por obra e graça do Espírito Santo[i], e foi Mãe de Jesus[i] sem deixar de ser Virgem[i]; intimamente unida ao mistério redentor da Cruz[i], será proclamada ditosa por todas as gerações, pois o Todo-poderoso operou nela grandes coisas[i]. Com razão uma mulher do povo louvou entusiasmada e de forma muito expressiva a Mãe de Jesus[i].
A tão altos dons divinos Nossa Senhora correspondeu com a mais generosa fidelidade: Santa Isabel chama-a bem-aventurada porque acreditou[i]; a Virgem Santíssima recebe com humildade o anúncio do Arcanjo acerca da sua dignidade de Mãe de Deus[i]; pergunta com simplicidade como comportar-se para agradar em tudo a Deus[i]; aceita submissamente os planos divinos[i]; apressa-se a ajudar os outros[i]; sabe agradecer gozosamente os dons recebidos[i]; observa com fidelidade as leis de Deus[i] e os costumes piedosos do seu povo[i]; aflige-se profundamente pela perda do Menino e queixa-se a Ele com uma grande ternura[i], mas aceita serenamente o que naquele momento não consegue entender[i]. Maria Santíssima soube ter essa admiração contemplativa diante dos mistérios divinos, que conservou e meditou no seu coração[i]. Como disse S.S. Paulo VI: «A Senhora é o 'modelo' sublime não só da criatura redimida pelos méritos de Cristo mas também o 'modelo' de toda a humanidade que peregrina na fé»[i].
Acabamos de indicar que a Salvação, na sua plenitude, é escatológica, isto é, realiza-se de modo definitivo no Céu. Mas essa Salvação começou já nesta vida: o seguidor de Cristo, vivendo neste mundo, no seio da Igreja, deve imitar a vida de Jesus Cristo na terra, cujas acções e palavras são ao mesmo tempo modelo e mandato para o cristão.
Daí que se juntem no Evangelho escatologia e exortação à vida cristã. Esta consideração é comum a todo o Novo Testamento, mas pode encontrar-se realçada de algum modo por São Lucas.
A expressão «hoje, agora cumpriu-se...», empregada com certa frequência no Evangelho de São Lucas, indica-nos que todo o anúncio evangélico é apresentado como cumprimento do tempo messiânico[i]. O cristão tem de carregar todos os dias com a sua Cruz[i] e viver a virtude da paciência[i]. De igual modo deve praticar a pobreza para responder ao chamamento do Senhor[i] e alcançar a bem-aventurança[i] e a vida eterna[i]. Para seguir Jesus Cristo é preciso desprender-se de tudo[i]. De nada servem as riquezas em si mesmas quando são convertidas em fim[i]. É necessário viver a abnegação e a renúncia como os primeiros discípulos que, depois da pesca miraculosa no lago de Genesaré; deixam todas as coisas e O seguem[i], ou como o publicano Levi (Mateus), que, ao ouvir O chamamento do Mestre, se levanta e, deixadas todas as coisas, O segue[i].
Finalmente, podem indicar-se como acentuações do terceiro Evangelho a necessidade da oração perseverante, do amor misericordioso e da alegria interior em todas as circunstâncias. Também nisto as palavras e as acções de Jesus são normas para a vida do cristão. Com efeito, há vários textos exclusivos do Evangelho de São Lucas em que se menciona a oração de Cristo, e em momentos muito solenes, p. ex.: no Baptismo, antes da escolha dos Apóstolos, na Transfiguração, na Cruz. E em Getsemani Jesus exorta os discípulos a orar para não cair na tentação. Os cristãos devem praticar o amor, a mansidão, a misericórdia: «Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso»[i]; São Lucas dedica todo um capítulo (o 15.°) a três parábolas que tratam da misericórdia divina; as palavras que vêm a seguir às bem-aventuranças são um discurso sobre o amor, inclusivamente aos inimigos[i].
Os quatro Evangelhos, que recolhem o anúncio da Salvação e que são precisamente «boa nova», estão impregnados, por isso, do gozo da Redenção operada por Cristo. Esta nota de alegria pode apreciar-se mais facilmente no Evangelho de São Lucas. Com efeito, a sua linguagem tem uma variedade de matizes para indicar o gozo e a alegria muito difíceis de exprimir em português. Assim, por exemplo: um anjo do Senhor anuncia a Zacarias que terá um filho «e muitos se alegrarão no seu nascimento[i]; o arcanjo Gabriel, na anunciação a Maria, começa com a saudação «salve», que literalmente significa alegra-te[i]; e aos discípulos, a quem anuncia as perseguições que hão-de sofrer por amor do Filho do Homem, o Mestre anima-os: «Alegrai-vos naquele dia e regozijai-vos»[i]. O nascimento do Baptista será alegria e gozo para Zacarias[i]; o anjo anuncia aos pastores uma grande alegria[i]; e no Céu há alegria por um pecador convertido[i]; Isabel proclama que o seu filho saltou de gozo no seu seio[i]; finalmente, o Evangelho, depois de narrar a Ascensão do Senhor, termina com estas palavras: «E eles, tendo-se prostrado diante dele, voltaram para Jerusalém com grande alegria e estavam continuamente no Templo a bendizer a Deus»[i]. (coligido por ama a partir de notas da Bíblia anotada pela Univ. de Navarra, e outras)