Tempo comum XXXII Semana
Evangelho:
Mc 12, 38-44
38 Dizia-lhes ainda nos Seus ensinamentos: «Guardai-vos dos escribas,
que gostam de andar com roupas largas, de serem saudados nas praças 39
e de ocuparem as primeiras cadeiras nas sinagogas e os primeiros lugares nos
banquetes, 40 que devoram as casas das viúvas, sob o pretexto de
longas orações. Serão julgados com maior rigor». 41 Estando Jesus
sentado defronte do cofre das esmolas, observava como o povo deitava ali
dinheiro. Muitos ricos deitavam em abundância. 42 Tendo chegado uma
pobre viúva, lançou duas pequenas moedas, que valem um quarto de um asse. 43
Chamando os Seus discípulos, disse-lhes: «Em verdade vos digo que esta pobre
viúva deu mais que todos os outros que deitaram no cofre, 44 porque
todos os outros deitaram do que lhes sobrava, ela porém deitou do seu
necessário tudo o que possuía, tudo o que tinha para viver».
Comentário:
Aquelas duas moedas que a
pobre viúva deitou no gazofilácio...!
Quantas vezes tenho
hesitado em dar as minhas duas moedas a quem precisa mais delas que eu; fico
"agarrado" a elas como se delas dependesse a minha vida!
E as duas moedas que não
tenho e que... tanto gostaria de ter!
Não estou já, também,
"agarrado" a elas?
Desprendimento,
desprendimento! Tão longe, cada vez mais longe!
Preso às coisas, às
pessoas, às ideias, ao passado, ao futuro, ao que fui, ao que gostaria de ter
sido, ao que, eventualmente ainda posso vir a ser!
Preso a mim mesmo, às
"minhas coisas", aos meus projectos, às quiméricas façanhas que
hei-de, um dia, praticar... sim... no fim de tudo... eu... eu... eu!
Senhor, ajuda-me a pensar
nos outros em vez de estar aqui, mergulhado nos meus problemas, girando à volta
de mim mesmo, concentrado apenas no que me diz respeito. Os outros! Todos os
outros. Os que conheço, de quem sou amigo ou familiar e aqueles que me são
desconhecidos. Todos são Teus filhos como eu, logo, todos são meus irmãos. Se
somos irmãos somos também herdeiros, convém portanto que me preocupe com
aqueles que vão partilhar a herança comigo.
(AMA, Meditação, Mc 12,
38-44, 2006)
Leitura espiritual
Humildade
3. A virtude cristã da
humildade
Não
é possível deter-se no estudo dos muitos aspectos em que a humildade aparece no
Antigo Testamento.
A
ideia predominante está ligada à profissão da fé em Deus, que nas suas
intervenções na história dos homens abate os soberbos, enquanto escolhe e resgata
os humildes e os que foram humilhados. É a ideia que reaparece no cântico da
Mãe de Jesus: o Senhor olhou para sua
pobre serva, manifestou o poder do seu braço, desconcertou os corações dos
soberbos. Derrubou do trono os poderosos e exaltou os humildes [i],
assim como na Primeira Carta de S. Pedro e na de S. Tiago [ii].
Mas
a razão de fundo dos ensinamentos do Novo Testamento sobre a humildade está em
que Jesus Cristo andou pelos caminhos da humildade; que Ele mesmo Se propõe
como exemplo quando diz: recebei a minha
doutrina, porque Eu sou manso e humilde de coração [iii],
e que S. Paulo ilustra no hino da Carta aos Filipenses [iv].
Esta
dinâmica de humilhação e exaltação inspira os ensinamentos do Senhor quando
convida a não escolher para si os primeiros lugares [v],
na parábola do fariseu e do publicano [vi],
na exortação para sermos como meninos [vii],
em diversos discursos polémicos contra os chefes do povo [viii],
e na recomendação de servir aos demais e não se deixar servir por eles [ix].
O
critério, segundo o qual a virtude cristã da humildade regula as tendências
humanas de que vimos falando, continua a ser o da verdade.
A
humildade não tolera a falsidade acerca das próprias qualidades positivas ou
negativas.
Mas
à luz dos ensinamentos do Senhor é possível compreender com maior exactidão
qual é a nossa verdadeira posição ante Deus e ante os demais.
O
cristão está bem consciente de que tudo recebeu gratuitamente de Deus, tanto o
ser e a vida, como a justiça e a graça.
Com
a sua doutrina acerca da justificação, S. Paulo põe em evidência que, vendo as
coisas em toda a sua profundidade, não existe em nós nenhuma verdadeira
justiça, senão aquela pela qual o próprio Deus nos faz justos por meio de Jesus
Cristo.
Não
temos nada que não tenhamos recebido [x].
Somente
nos podemos gloriar da Cruz de Cristo [xi].
Quaisquer
que sejam as nossas obras, corresponde-nos assumir diante de Deus uma atitude,
de profunda adoração e de amorosa gratidão, porque só em virtude da sua
gratuita acção salvífica em Cristo podemos ser por Ele aceites.
Qualquer
atitude presumida e de autossuficiência privar-nos-ia da sua graça e
deixar-nos-ia encerrados na nossa pobre miséria.
A
humildade vem a ser assim a outra face do amor de Deus, a da caridade.
O
orgulhoso nem ama a Deus, nem consegue receber o amor que Deus lhe dá.
Deo omnis gloria:
para Deus toda a glória; isso significa que nada temos de bom que não venha de
Deus, Verdade e Amor subsistente.
A
humildade ensinada pelo Senhor é também o outro lado da caridade para com o
próximo.
Quem
está consciente de ser nada diante da majestade de Deus, evita o orgulho e o
desprezo dos outros, sabe compreender os outros, incluindo os seus erros.
Somente
alguém que pensa que nunca se equivocou, se horroriza com os erros dos outros
(se os outros fossem como eu, as coisas não iriam tão mal).
A
humildade é em todo o caso verdade, verdadeiro conhecimento de si mesmo, e por
isso não impede reconhecer as boas qualidades que se possuem, mas leva a não
esquecer que foram recebidas de Deus como dons para pôr generosamente ao
serviço dos outros.
O
Senhor condena a falsa humildade de quem esconde o talento recebido [xii],
que se devia ter feito frutificar ao serviço de Deus e dos demais.
Essa
fecundidade chega através da direcção espiritual, onde o Espirito Santo modela
a alma: sicut lutum in manus figuli [xiii]
(como o barro nas mãos do oleiro).
Os
ensinamentos de S. Paulo acerca dos fortes e dos débeis na fé e na ciência [xiv]
mostram, eloquentemente, que as próprias qualidades e até o bem precioso da
legítima liberdade cristã, não se hão-de ver como barreira que nos protege das
exigências dos demais, mas como um recurso que se põe gostosamente ao seu
serviço.
Cristo
carregou sobre si o peso dos nossos pecados, entregando a sua vida por nós, e
também assim nos deu o exemplo da humildade de coração.
Em
termos práticos a humildade tem múltiplas manifestações, que não é possível
tratar aqui em detalhe.
Sobre
elas escreveram coisas de grande valor os Padres da Igreja, os Santos e os que
se têm ocupado ao longo da história da teologia espiritual.
Para
concluir estas reflexões, limitar-nos-emos a reproduzir uma página de S.
Josemaria Escrivá, cuja eloquência torna inútil quaisquer comentário.
Deixa-me
que te recorde, entre outros, alguns sinais evidentes de falta de humildade:
-
pensar que o que fazes ou dizes está mais bem feito ou mais bem dito do que o
que os outros fazem ou dizem;
-
querer levar sempre a tua avante;
-
discutir sem razão ou, quando a tens, insistir com teimosia e de maus modos;
-
dar a tua opinião sem ta pedirem ou sem a caridade o exigir;
-
desprezar o ponto de vista dos outros;
-
não encarar todos os teus dons e qualidades como emprestados;
-
não reconhecer que és indigno de toda a honra e estima, inclusive da terra que
pisas e das coisas que possuis;
-
citar-te a ti mesmo como exemplo nas conversas;
-
falar mal de ti mesmo, para fazerem bom juízo de ti ou te contradizerem;
-
desculpar-te quando te repreendem;
-
ocultar ao Director algumas faltas humilhantes, para que não perca o conceito
que faz de ti;
-
ouvir com complacência quem te louva, ou alegrar-te por terem falado bem de ti;
-
doer-te que outros sejam mais estimados do que tu;
-
negar-te a desempenhar ofícios inferiores;
-
procurar ou desejar singularizar-te;
- insinuar na conversa palavras de louvor
próprio, ou que dão a entender a tua honradez, o teu engenho ou destreza, o teu
prestígio profissional...;
- envergonhar-te por careceres de certos
bens... [xv].
a. rodríguez
luño
2012/03/16
Bibliografia
básica:
Gioacchino
Pecci (León XIII), A prática da humildade, Nebli, Madrid 2007.
S.
Josemaria, Amigos de Deus, nn. 94-109.
S.
Josemaria, Caminho, capítulo sobre a humildade (nn. 589-613).
Angel
Rodríguez Luño, Ética General, 4ª ed., Eunsa, Pamplona 2001, pp. 163-164 (sobre
as tendências reguladas pela humildade) e 250-253 (sobre a virtude da
humildade) estas páginas não existem nas edições anteriores.
Enrique
Colom - Angel Rodríguez Luño, Scelti in Cristo per essere santi. I. Morale
fondamentale, 1ª ristampa della 3ª edizione, Edizioni Università della Santa
Croce, Roma 2008, pp. 153-154 (sobre as tendências reguladas pela humildade;
essas páginas não existem na 1ª e na 2ª edição italianas nem na edição em
língua espanhola).
Angel
Rodríguez Luño, Scelti in Cristo per essere santi. III. Morale speciale, Edizioni
Università della Santa Croce, Roma 2008, pp. 333-337 (sobre a virtude da humildade).
Joseph
Pieper, As virtudes fundamentais, Rialp, Madrid 1980, pp. 276-281
© ISSRA, 2009 (original em espanhol
publicado em www.collationes.org)
Nota: Revisão gráfica e da
tradução por ama.
[ii] Cfr. 1Pe 5, 5 e Tg
4, 6.
[iv] (Fl 2, 5-11):
Dedicai-vos mutuamente a estima que se deve em Cristo Jesus. Sendo Ele de
condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se
a si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens. E,
sendo exteriormente reconhecido como homem, humilhou-se ainda mais, tornando-se
obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso Deus o exaltou soberanamente e
lhe outorgou o nome que está acima de todos os nomes, para que ao nome de Jesus
se dobre todo joelho no céu, na terra e nos infernos. E toda língua confesse,
para a glória de Deus Pai, que Jesus Cristo é Senhor.
[x] Cfr. 1 Cor 4, 4 e
Rm 3, 27-28.
[xiii] Jr 18, 6; cfr. 18,
1, 1-6.
[xiv] Cfr. Rm 14 e 1 Co
8.
[xv] S. Josemaria,
Sulco, n. 263.